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Histórias viscerais – por Sergio Ramírez (El País)

Foto: MARIA JOAO GALA

Nota do SPW: O artigo de Sergio Ramírez, publicado no El País, é muito instigante para quem se depara com o momento político por que passa o Brasil, às vésperas de uma eleição nacional sob ataque incessante do presidente da República, que brada a ameaça de um golpe com o pretexto de um sistema de votação frágil. Não resistimos à perspicácia e ao conhecimento histórico de Ramírez e traduzimos o artigo, que rememora episódio muito peculiar e insólito – ocorrido no século XIX – da liturgia política macabra na América Latina. Como se sabe, o coração de Dom Pedro I foi trazido ao Brasil no âmbito das comemorações do bicentenário da Independência (1822-2022). Nesses tempos estranhos e funestos, a víscera em formol tem inspirado mais cuidado do que as urnas eletrônicas. Leia abaixo o artigo.

Por Sergio Ramírez

Aqueles que morreram no odor da santidade transferiram a fama dos seus poderes milagrosos para as suas vísceras, falanges, membros e outras partes do seu corpo, e assim foram desmembrados e espalhados em santuários e igrejas, um coração dentro de uma armadura de ouro incrustado com pedras preciosas, um braço ou uma perna dentro de uma armadura de prata, um dedo no dedal de um ourivesaria. Aconteceu até aos mais humildes dos servos de Deus, como São João da Cruz, ou aos mais cultos, como Santa Teresa.

Mas também acontece com santos leigos embalsamados, como Eva Perón; ou com presidentes todo-poderosos quando reclamam a eternidade para além da sua morte; ou com imperadores, quando os seus corpos, ou as suas vísceras, se revelam úteis, mesmo séculos mais tarde, em termos eleitorais. Vamos dar um passo de cada vez.

Na manhã de 6 de Agosto de 1875, o Presidente do Equador, Gabriel García Moreno, do lado conservador, que em breve iniciaria o seu terceiro mandato, regressava a pé ao Palácio Nacional depois de comungar na igreja de Santo Domingo, quando foi baleado e pirateado até à morte por um partido de conspiradores do lado liberal.

No dia seguinte, o cadáver presidiu o seu próprio funeral. Vestido com o uniforme de um comandante supremo, com o bicórnio de penas na cabeça e a faixa no peito, ele apareceu sentado na cadeira presidencial no altar principal da catedral, enquanto os reitores cantavam o ofício dos mortos e o protocolo de funerais de estado ditado por ele próprio era observado. 

Essa fotografia ainda existe, provando que o romancista não está a mentir. Composta para esconder a palidez da morte, as suas sobrancelhas repintadas, os seus olhos estreitados e a sua boca grotescamente aberta, atrás dele posa uma guarda de grenadiers, com as suas altas tampas de pele de urso, baionetas desenhadas e estranhamente revestidas de aventais forenses.

Houve tentativas falhadas de canonizar García Granados, um católico devoto. Enterrado na Catedral de Quito, os caprichos da política levaram a temores de profanação, e o corpo foi secretamente movido de um esconderijo para outro, até aterrar na igreja de Santa Catalina de Siena, onde foi descoberto, cem anos após a sua morte, numa cripta do lado direito do altar-mor. 

O coração, que lhe fora retirado para o conservar como relíquia, foi escondido separadamente numa coluna do claustro do Pastor de Buen, juntamente com o do Arcebispo de Quito, Monsenhor José Ignacio Checa y Barba, que morreu quando bebeu o vinho envenenado do cálice durante o serviço da Sexta-feira Santa de 1877.  Este foi também um assunto que a realidade deu ao romancista.

E aqui está a outra história. Na igreja da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, no Porto, o coração de D. Pedro de Alcântara, Rei de Portugal e Imperador do Brasil, após a proclamação em 1822 da independência desta imensa colônia americana que era em si um continente, um caso único na história da América Latina de um monarca venerado como herói, é mantido sob cinco chaves.

Dom Pedro, banido do Brasil, morreu em 1834 no Palácio Real de Queluz, em Portugal, consumido pela tuberculose. Mas antes disso ele ditou a sua famosa carta aberta aos brasileiros: “A escravatura é um mal, e um ataque aos direitos e dignidade da espécie humana, mas as suas consequências são menos prejudiciais para aqueles que sofrem em cativeiro do que para a Nação cujas leis o permitem. É um cancro que devora a sua moralidade”. 

E deixou o seu coração na igreja da Lapa, enquanto o seu corpo foi enterrado no Panteão Real da Dinastia Bragança, na igreja de San Vicente de Fora. Em 1972, no 150º aniversário da independência do Brasil, a ditadura militar, evocando a sua reputação de “rei soldado” e não de inimigo da escravatura, conseguiu que os ossos do imperador fossem transportados de Portugal e levados com grande pompa pelo país antes de serem enterrados no mausoléu imperial de Ipiranga, em São Paulo, o local onde proclamou o Brasil livre do jugo de Portugal. Estava então a fazer uma campanha na qual era obrigado a descer do cavalo a cada curva, sofrendo de diarreia.

Se a ditadura conseguiu apoderar-se dos ossos do “rei soldado”, agora o Presidente Jair Bolsonaro, que não faz segredo do seu desejo pelo regime militar, conseguiu que a Câmara Municipal do Porto lhe emprestasse o coração de D. Pedro para as celebrações do segundo centenário da independência. 

Bolsonaro, que procura ser reeleito, proclama que se sente imortal, que só Deus o pode retirar do poder, e ameaça um golpe de Estado se perder. As eleições presidenciais, nas quais está atrás de Lula da Silva nas sondagens, realizam-se a 2 de outubro, e a celebração da independência a 7 de Setembro.

O coração será transportado num avião da Força Aérea Brasileira, e Bolsonaro irá certamente recebê-lo no aeroporto para tirar partido eleitoral, e exibir triunfantemente a urna de voto em comícios.

Uma oportunidade maravilhosa para um homem tão visceral.

Texto originalmente publicado em El País em 16 de agosto de 2022, traduzido por pela equipe SPW. Acesse o post original aqui.



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