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Judith Butler em Roe vs Wade, os direitos trans e a guerra à educação

Foto: Stefan Gutermuth

A filósofa e teórica do gênero diz que a restrição dos direitos ao aborto faz parte de um projeto para restaurar o patriarcado.

Alona Ferber

Tradução de Sara Wagner York, revisão de Sonia Corrêa e Carla Rodrigues

As consequências da decisão do Supremo Tribunal dos EUA de 24 de junho que revogou Roe vs Wade, a medida que havia garantido abortos seguros e legais nos EUA desde 1973, ainda está sendo sentida em todo o país. Não foi exatamente uma surpresa, uma vez que uma minuta da decisão foi vazada em maio, mas a reação de muitas pessoas ainda foi de choque. A decisão sobre do aborto foi uma das grandes vitórias feministas do século XX, e Roe vs. Wade subscreveu outros direitos, incluindo ao casamento gay e o acesso à contraceptivos. Desde a decisão, o presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva para proteger o acesso ao aborto e o Congresso aprovou um projeto de lei para proteger o casamento entre pessoas do mesmo sexo em nível federal, embora não esteja claro se o projeto de lei vai sobreviver à votação do Senado. O que significa a derrogação de Roe para o progresso? E para onde vai o feminismo? A New Statesman trocou e-mails sobre isto com a filósofa e feminista Judith Butler, professora Maxine Elliot de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia, Berkeley. A troca foi editada para efeitos de maior coesão e clareza.

Alona Ferber: O que lhe passou pela cabeça quando soube que que Roe vs Wade tinha sido revogada?

Judith Butler: Pergunto-me se a revogação do direito ao aborto, no plano federal, nos EUA, pertence a essa classe de acontecimentos mundiais a que podemos chamar de chocantes e totalmente previsíveis. Vimos os ganhos da ala direita, a politização da igreja evangélica, o seu novo entendimento com o Vaticano e a sua enorme influência sobre os funcionários eleitos e nomeados. Vimos também os democratas moderados descuidarem de seu apoio ao direito ao aborto — ou de fundamentá-lo — por medo de perder votos. Tornou-se cada vez mais comum ouvir referências a “crianças não nascidas” na grande imprensa e na cultura popular, o que significa que os conservadores foram bem sucedidos nos seus esforços para fazer com que a revogação parecesse possível, mesmo necessária. Não concordo com as análises que atribuem a culpa da revogação às feministas ou pessoas trans ou à falecida juíza do Supremo Tribunal Ruth Bader Ginsburg. Esse virarmos — nos contra nós próprias é demasiadamente fácil, equivocado e impede-nos de fazer o que é mais necessário — analisar e derrotar a extrema direita. Para fazê-lo, precisamos formar aliança que deixem espaço para forte desacordos. Podemos avançar lutando entre nós, mas temos que avançar.

AF: O que as pessoas precisam compreender sobre as tendências sociais e as forças que levaram a esse momento, e o que ele significa para a proteção dos direitos pelos quais as feministas lutaram tão arduamente?

JB: Roe vs Wade foi decidido com base nos direitos de privacidade, e isso significa uma decisão privada da mulher exercer os seus direitos de aborto sem intervenção do Estado. A privacidade é uma base complicada para os direitos reprodutivos. Tende a focalizar mais o indivíduo do que a classe, e a privilegiar a liberdade pessoal em detrimento das liberdades coletivas. Quando a juíza Ginsburg estabeleceu a discriminação com base no “sexo” como violação do direito constitucionalmente garantido, a ser tratada igualitariamente, ela sublinhou que a igualdade era a base para as vitórias legais feministas. E se o acesso a certos tipos de cuidados de saúde, incluindo o aborto, for uma questão de igualdade? Se os homens têm cuidados de saúde adequados, e as mulheres não, então as mulheres, ou outras pessoas que estão grávidas, sofrem discriminação. Algo semelhante está acontecendo com os cuidados de saúde das pessoas trans. Se as pessoas que não são transexuais recebem os cuidados de saúde de que necessitam, e as pessoas transexuais enfrentam discriminação nos serviços de saúde, então sofrem discriminação.

Consideremos, então, que quando dizemos que a negação dos direitos ao aborto é discriminação com base no sexo, podemos estar dizendo que o sexo desempenha um papel no julgamento que nega esses direitos e é injusto. Não precisamos decidir se a negação dos direitos ao aborto capta corretamente o sexo — provavelmente não. Portanto, não é com base no sexo que ocorre a discriminação. A discriminação faz referência ao sexo de formas injustas e discriminatórias, e o único “sexo” que legalmente importa é o que é figurado e operativo numa ação de discriminação.

Assim, quando algumas feministas fazem agora afirmações como “a opressão patriarcal das mulheres está fortemente enraizada nos nossos sistemas reprodutivos”, pode parecer que esses sistemas reprodutivos são a causa da opressão. Isso é um pensamento confuso, errado, e não faz avançar os objetivos feministas. É a organização social da reprodução que leva à conclusão se o aborto pode ou não acontecer. O Estado afirma que tem interesses no útero, e figura o útero como sua província, em lugar de reconhecer que o útero é a província das pessoas que os têm. É precisamente às forças antifeministas que figuram o útero dessa forma que devemos nos opor. Caso contrário, atribuímos a existência de sistemas opressivos à biologia, quando deveríamos perguntar como esses sistemas opressivos contorcem as reivindicações biológicas para os seus próprios fins.

AF: Na sua opinião paralela à decisão que derrubou Roe vs Wade, o juiz Clarence Thomas deu a entender que outras decisões da Corte sustentadas pelo direito à privacidade também podem estar em risco, incluindo o direito ao casamento gay. A decisão parece ser uma prova poderosa de retrocesso no progresso do feminismo, igualdade de gênero e direitos LGBTQIA+. Concorda?

JB: Penso que estamos a testemunhar algo mais sério e perigoso do que um retrocesso, um backlash. Este é um “projeto de restauração” que tem como objetivo final a reconstrução de uma ordem que alguns sentem ter sido desmantelada por legislações progressistas e por novas formas de reflexão nas instituições de ensino. Não apenas o patriarcado deveria ser restaurado, protegido contra o seu desmantelamento, mas também a supremacia branca e o casamento exclusivamente heterossexual. Thomas falou por si próprio quando escreveu que pensava que a Suprema Corte deveria agora reconsiderar as decisões que proibiram a criminalização do uso da anticoncepção ou informar sobre ela, assim como a criminalização de atos de “sodomia” ou que sustentam os direitos ao casamento homossexual. Na sua opinião, os “direitos a um processo justo” foram mal interpretados para proteger as liberdades contra a intrusão do Estado.

O que Thomas pede aqui é mais intervenção do Estado, restrição de liberdade, ou o indeferimento das reivindicações de liberdade em cada um destes casos. Ele também deixa claro que, restringindo estas reivindicações, o restabelecimento da ordem poderia ser alcançado: a sodomia voltaria a ser inadmissível; ninguém procuraria um aborto; o casamento voltaria a ser uma instituição exclusivamente heterossexual.

AF: Talvez isto seja completamente óbvio, mas você acha que a igreja é um dos, se não o principal motor deste “projeto de restauração”? Existem outros motores significativos desta restauração?

JB: Eu diria que os supremacistas brancos e os republicanos Maga (Make America Great Again) também travam uma guerra contra as instituições educativas, sejam a escola primária e secundária, seja o ensino superior, acusando os esquerdistas de inculcar ideologia. Assim sendo, temos de compreender o ataque aos movimentos pela justiça racial, pelo direito ao aborto, pela justiça na saúde, pela proteção legal para os migrantes, e também o apoio ao lobby das armas e à indústria de armamento, como estando vinculados à revogação de Roe. Alguns dos mesmos argumentos estão claramente em jogo.

AF: Os ativistas nos dizem que atividade online pode hoje colocar as pessoas que procuram serviços de aborto em risco de serem processadas. Será que precisamos pensar sobre a ideia de liberdade, e mesmo de direitos, de uma forma diferente, em razão das tecnologia que utilizamos hoje?

JB: A vigilância pode facilmente tornar-se um problema se os Estados que proíbem o aborto procurarem assegurar que ninguém atravesse suas divisas para ter acesso ao aborto em outro local. Mas a vigilância, como sabemos, é tanto patrocinada pelo Estado como pelas empresas, e pode ser que esta última forma de vigilância seja igualmente perigosa. Na minha opinião, o argumento da privacidade, por mais importante que seja, não deveria ser a principal forma de abordar questões de igualdade e justiça reprodutiva. Precisamos estabelecer os vínculos entre a discriminação contra as mulheres e as pessoas LGBTQIA+ em todas as questões de saúde, como fizeram as feministas latino-americanas. Compreendo que a lei nem sempre pode funcionar com a mesma flexibilidade que a teoria social, mas certamente já é tempo de ressituar o direito ao aborto no marco de um movimento robusto a favor da justiça social e econômica.

AF: Onde você vê esperança quando pensa no que pode ainda acontecer?

JB: Talvez a questão mais importante seja a de fazer coalizões onde não pensávamos que fossem possíveis. Não dizendo que é fácil. Mas este é um momento em que tanto o feminismo como as pautas LGBTQIA+ estão sendo censuradas em instituições educacionais, em que direitos duramente conquistados estão sendo revogados, e em que os cuidados de saúde estão sendo restringidos ou negados tanto pela política social quanto por custos econômicos. O ataque à “ideologia de gênero” em todo o mundo promove o fechamento de clínicas de aborto; chamar as feministas de “assassinas”; há ataques ao ensino sobre a vida de gays e lésbicas nas escolas; e ataques à saúde trans para crianças. O ataque aos estudos críticos sobre raça é apenas mais uma instância em que a supremacia branca levanta sua cabeça monstruosa, acusando historiadoras/es e teóricas/os críticos de promoverem métodos perigosos e ameaçarem a segurança nacional. Estamos juntes como alvos de uma Direita muito bem coordenada, por isso talvez devamos decidir como nos queremos reunir, e para que objetivo. É claro que temos de lutar pelos direitos ao aborto, mas assim que compreendermos que esse é um dos muitos direitos que pertencem ao arco mais amplo da justiça reprodutiva, e que a justiça reprodutiva faz parte da luta complexa e dinâmica pela justiça, então estaremos no caminho de imaginar uma força transformadora que poderá igualar-se e superar as forças que promovem o ódio e a desigualdade.

Tradução originalmente publicada por Sara Vagner York

Link da matéria original: https://www.newstatesman.com/international-content/2022/07/judith-butler-roe-v-wade-more-dangerous-backlash



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