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A contribuição do serviço social para a garantia do direito ao aborto previsto em lei no Brasil

Luciene Santos*, em colaboração a MULHERES EM MOVIMENTO

Mulheres em movimento no 28 de setembro – Dia de Ação Global pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro (10)

É fundamental que assistentes sociais se posicionem contra a ofensiva conservadora que meninas e mulheres vêm sofrendo na atual conjuntura brasileira, principalmente, no tocante à política de saúde da mulher, através de retrocessos nas legislações historicamente conquistadas e dos ataques misóginos e fundamentalistas que interferem frontalmente nos direitos sexuais e nos direitos reprodutivo. Assim, para a categoria profissional de assistentes sociais, majoritariamente feminina, o debate sobre a vida e os direitos das mulheres não pode ser pautado por fundamentos religiosos.

Esse contexto de conservadorismo é danoso para o conjunto da população, sobretudo, para as mulheres, pois se operacionaliza em ataques aos direitos humanos e repercute em não efetivação de políticas estratégicas. Isto porque a história das mulheres é marcada pela desigualdade hierárquica e a opressão, justificada pela condição de “inferioridade” que lhe foi atribuída nos diferentes modelos de sociedades. Segundo Beavouir (2016), “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes, pois é necessário que as mulheres se mantenham vigilantes durante toda a vida”. A burguesia conservadora continua a ver na emancipação da mulher um perigo que lhe ameaça a moral e os interesses.

No trabalho da/do assistente social, não só na área da saúde, mas, em todas as outras, precisamos considerar as necessidades concretas da classe trabalhadora, reforçar o caráter pedagógico da nossa intervenção profissional e não abrir mão das nossas bandeiras de luta, dentre as quais a laicidade do Estado, a descriminalização do aborto e a garantia do abortamento nos casos já estabelecidos, ou seja, previstos em lei.

A atuação profissional coloca assistentes sociais diante de situações de abortamento, seja na área da saúde – principal espaço de interligação com a problemática do aborto – seja na assistência e nos serviços especializados de atendimento a meninas e mulheres em situação de violência. Espera-se da categoria, portanto, o compromisso ético e político com os princípios democráticos que norteiam a profissão, e que devem ser sobrepostos a valores individuais de cunho moralista, pois a autonomia sobre o próprio corpo e o direito de escolha e de decisão cabe apenas à mulher.

Texto recente divulgado pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), informa que o DATASUS – Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (SUS)  – somente de janeiro a junho de 2020, demonstrou que o SUS atendeu a 80 mil casos de procedimentos de abortamentos incompletos, enquanto realizou mil abortamentos previstos em lei.

Em pesquisa nacional, realizada em 2016 sobre o aborto no Brasil estima-se que uma a cada cinco mulheres fez aborto até os 40 anos de idade. Já no ano de 2015, mais de 500 mil mulheres praticaram aborto em nosso país. A estimativa em relação à morbidade é de que o aborto é a 4ª causa de morte materna, o que demonstra que a problemática do aborto é uma questão de saúde pública.

O código penal de 1940 garante o direito ao abortamento previsto em lei nas situações decorrentes de violência sexual, quando a gestação traz risco de morte para a mulher, e mais recentemente, nos casos de anencefalia. No Brasil, a legislação que visa assegurar os direitos constitucionais às mulheres tem se estabelecido e aprimorado ao longo dos anos, especialmente, no âmbito das políticas de saúde, justiça e segurança pública. Esta articulação busca garantir o direito das mulheres à assistência integral e humanizada, multiprofissional e interdisciplinar, no SUS e nas redes socioassistenciais que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, do qual fazem parte a justiça e a segurança pública. Mas, pesquisa recente sobre acesso à informação e aborto legal mostra a dificuldade de acessar os serviços, inclusive nos casos previstos em lei. A pesquisa demonstra que muitas mulheres ficam desamparadas e sem saber a quais locais recorrer, caso necessitem interromper a gestação.

A maior prevalência dos casos de abortamento no Brasil é, sem dúvida, entre as mulheres negras e pobres, público usuário majoritário do Serviço Social nos diversos espaços em que está inserido. Por isso, é preciso tratar desse tema com a seriedade e a responsabilidade que o assunto exige, entendendo-o como uma expressão da questão social, envolta pelas relações sociais capitalistas, racistas e patriarcais.

Assistentes sociais têm importante papel na garantia do acesso ao abortamento legal, na difusão de informações sobre direitos sexuais e reprodutivos e na luta pela descriminalização do aborto.

No abortamento previsto em lei, nas situações que envolvem estupro, apenas a palavra da mulher é o suficiente para a autorização do procedimento e, nos demais casos, apenas é necessário o laudo médico, conforme diversas normas técnicas elaboradas, dentre elas a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde (2005, atualizada em 2012).

Assistentes sociais que atuam nas diversas políticas públicas, dentre elas, na política de saúde, realizam o acolhimento com escuta qualificada, garantindo o sigilo, a confidencialidade e a autonomia da mulher. Na atuação em serviços especializados e de referência em situações de violência, existe uma perspectiva que norteia a prática cotidiana desses atendimentos ou dos procedimentos de abortamentos humanizados previstos em lei. Essa atuação exige uma postura ética e comprometida com a desconstrução da culpabilização da mulher, muito comum na nossa sociedade patriarcal e misógina, o não juízo de valor, a não realização de julgamento moral ou inquirição da palavra da mulher, e a abstenção de atitudes preconceituosas e/ou discriminatórias.

Nós, assistentes sociais, reforçamos a defesa dos princípios éticos fundamentais assumidos pela categoria profissional no seu código de ética e no projeto ético-político, alinhando-nos  ao fortalecimento dos direitos sociais.

Corroboramos com a defesa do afastamento de teses que discriminem e cerceiem a liberdade e a autonomia das/dos sujeitos, pois esta defesa é um compromisso ético que deve ser assumido no exercício do espaço sócio ocupacional. Estas profissionais devem estar orientadas pela luta por direitos e a emancipação humana.

Temos portanto, um compromisso profissional e ético-político que tem como parâmetro a luta histórica da classe trabalhadora, as lutas das mulheres e dos movimentos feministas e a defesa dos direitos sociais, cujas reivindicações e conquistas devem ser mantidas, fortalecidas e ampliadas.

*Luciene Maria Silva dos Santos, é feminista, mestra em Serviço Social (UFPE), assistente social do planejamento familiar com atuação em Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, coordenadora do Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa (Recife), integrante do Instituto Ressignificando Vidas.

Referências bibliográficas presentes no texto:

BEAUVOIR. Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Volumes 01 e 02. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 3º ed. 2016.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral para as Mulheres, 2004. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf; Acesso em 15 ago.2019.

CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. – (Biblioteca básica de serviço social; v.08).

CFESS MANISFESTA. Dia Internacional das Mulheres. Disponível em:  http://www.cfess.org.br/visualizar/manifesta ;  Acesso em 29 set.2020.

NORMA TÉCNICA. Prevenção e Tratamento dos Agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, 2ª edição, 2005. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_pessoas_violencia_sexual_norma_tecnica.pdf ; Acesso em 28 set.2020.

A-informacao-e-aborto-legal-mapeando-desafios-nos-servicos-de-saude/. Disponível no site https://artigo19.org/blog/ ; Acesso em 28 set.2020.

Texto originalmente publicado em Mulheres em Movimento, Folha de Pernambuco. Acesse o post original aqui.



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