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O aborto no Uruguai, uma experiência em primeira pessoa

Por Florencia Roldán*

A Lei 18.987 de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) foi promulgada, no Uruguai, em outubro de 2012. Permite, pela vontade única da mulher “a interrupção da gravidez por pessoa idônea, que constate a vontade da mulher, utilizando técnicas e critérios de qualidade que garantam a segurança do procedimento, em instituições autorizadas de atenção integral do Sistema Nacional Integrado de Saúde”.

A lei também estabelece os novos princípios e normas de atuação que as instituições médicas e o pessoal de saúde devem incorporar diante dessa situação: por um lado, o dever de sigilo quanto à identidade da mulher. Por outro lado, as instituições solicitam que a vontade desta mulher seja expressa por meio de consentimento informado. Da mesma forma, embora a lei obrigue a todas as instituições do Sistema Nacional Integrado de Saúde a cumprirem com a normativa através da coordenação de equipes técnico-profissionais e administrativas, prevê a possibilidade de que profissionais manifestem objeção de consciência com respeito aos procedimentos de interrupção voluntária da gravidez. O centro de saúde, caso tenha todos os/as médicos/as objetores/as, deve conseguir profissionais que não o sejam e/ou transferir a mulher a outro serviço.

Poderão ter acesso todas as mulheres uruguaias naturais e estrangeiras legais(1), com comprovados mais de um ano de residência no país. Embora nada seja especificado quanto à idade, prevê o direito de adolescentes respeitando sua autonomia progressiva, e de mulheres com deficiência, frente uma gravidez indesejada.

O procedimento IVG consiste em quatro etapas:

IVG 1, que implica apresentar-se à instituição do Sistema Nacional Integrado de Saúde que lhe corresponde e informar ao médico/a sobre as circunstâncias que impedem a continuidade da gravidez. Estas podem ser situações de dificuldades econômicas, sociais, familiares ou de idade que, em sua opinião, a impeçam de continuar com a gravidez em curso.

IVG 2: o médico deve marcar para o mesmo dia, ou para o dia seguinte, consulta com equipe interdisciplinar que deve ser composta por pelo menos um/a ginecologista, um/a profissional de saúde mental e um/a da área social. A tarefa atribuída a esta equipe é acompanhar e criar um espaço de apoio, para informar sobre as características, riscos e alternativas ao aborto, para que a mulher possa tomar uma decisão consciente e responsável.

No IVG 3, a mulher tem no mínimo cinco dias para refletir e se ela continuar com a decisão de interromper a gravidez o/a médico/a irá coordenar o que for necessário para praticar a interrupção, mediante a entrega a ela dos medicamentos mifepristona e misoprostol, com as devidas orientações.

E o IVG 4, implica informar-se sobre os métodos anticoncepcionais disponíveis, e realizar os contrôles correspondentes a um pós aborto, como a realização de um ultrassom, que garante que o procedimento esteja concluído.

Há três exceções que isentam a mulher do cumprimento de alguns dos requisitos estabelecidos acima: risco de morte para a mulher, malformação fetal que implique impossibilidade de vida extra-uterina ou gravidez decorrente de estupro, mediante ação judicial. Assim, os abortos realizados que não cumpram os requisitos anteriores e não se encontrem em nenhuma das situações excepcionais, serão ilegais e estão sujeitos a penalizações.

Florencia Roldán

O aborto em primeira pessoa:

Eu fiz um aborto há 4 anos. Tinha 27 anos, já era formada em Ciências Políticas, tinha um emprego seguro e parceiro estável. Fui a um centro médico, onde me realizaram um exame de sangue que deu um resultado positivo para gravidez. Imediatamente pedi uma consulta com um ginecologista que fez um ultrassom para saber o número de semanas de gestação. Ali mesmo solicitei a entrevista com uma equipe interdisciplinar (formada por ginecologista, assistente social e psicólogo/a) que me orientou sobre o procedimento. Após essa entrevista, e de acordo com o que determina a lei, me foram dados cinco dias para refletir sobre a minha decisão de abortar ou levar adiante a gravidez. Convicta da minha decisão, depois dos cinco dias, voltei ao posto médico onde me entregaram a medicação e orientação para a interrupção da gravidez, a ser feita em casa. Tomei primeiro o mifepristona e após 12 horas o misoprostol, quatro doses, a cada 6 horas, até se completar o procedimento. Então vieram os exames médicos, e tudo terminou bem.

Desde 2013, quando a lei começou a ser implementada, a qualidade do atendimento tem melhorado, os caminhos que devem ser percorridos pelas mulheres foram estabelecidos e barreiras foram enfrentadas. No início havia departamentos no país onde 100% de ginecologistas se declaravam opositores/as, hoje isso já não ocorre.

O que foi contado acima demonstra que a lei do aborto no Uruguai funciona bem. A minha experiência não é isolada e atrevo-me a dizer que grande parte das mulheres que passaram por este processo o fizeram com as garantias previstas em lei. No entanto, essa lei está longe de ser a que desejamos.

O que precisa avançar

Embora a lei estabeleça que busca promover a autonomia das mulheres, em seu artigo 3º afirma que as mulheres devem explicar “as circunstâncias derivadas das condições em que ocorreu a concepção, as situações de dificuldades econômicas, sociais ou familiares ou de faixa etária que, a seu critério, a impedem de continuar com a gravidez em curso”. E que “a equipe interdisciplinar, agindo em conjunto, deve informar a mulher sobre o disposto na lei, a forma como é feita a interrupção da gravidez e os riscos inerentes a esta prática. Da mesma forma, informará sobre as alternativas ao aborto provocado, incluindo os programas de apoio social e econômico disponíveis, bem como sobre a possibilidade de entregar o/a filho/a para adoção”. Isso evidencia uma intenção de desestimular a decisão da mulher, oferecendo alternativas ao aborto e estabelecendo condições entre as quais a interrupção da gravidez é pertinente ou não.

Também é importante destacar que o aborto continua a ser crime, tipificado no Código Penal de 1938, em seus artigos 325 e 325 bis. O que essa lei faz é estabelecer os critérios pelos quais a pena de crime de aborto não será aplicada. O que aumenta o estigma sobre as pessoas que abortam.

O recurso à objeção de consciência estabelecido no artigo 11º da lei tem sido utilizado abusivamente por ginecologistas, tornando-se uma barreira ao acesso ao aborto legal, o que dificulta a universalização da prática em todo o país.

A objeção de consciência é um recurso individual, que não deveria causar dano direto a outras pessoas, porém tem sido utilizada em massa por ginecologistas no Uruguai. Entendemos que não se busca exceção à regra, busca-se mudar a regra, de modo a ultrapassar uma ação ou reivindicação de natureza pessoal ou individual, para uma forma de questionar, por outros meios, o que não foi alcançado no âmbito parlamentar e democrático.

Médicos/as estão cientes de que o aborto clandestino é inseguro e do perigo por que milhares de mulheres tiveram que passar. Não é certo antepor um modo de pensar ante os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres quando o que está em jogo são as nossas vidas e a maneira como queremos vivê-las.

As organizações feministas estão constantemente vigilantes para que não se perca o direito de interromper legalmente a gravidez. O presidente do novo governo de coalizão, Luis Lacalle Pou, fez declarações contraditórias sobre a lei. Durante a campanha política, ele prometeu não revogá-la, mas após assumir o cargo disse que seu governo levará a cabo uma agenda “pró-vida”, isto é, anti-direitos. O mesmo aconteceu com vários deputados da coalizão governamental, que fizeram declarações em semelhante direção.

Para finalizar, queremos saudar àquelas que sempre se manifestaram, as bravas e as audaciosas, as determinadas e decididas, aquelas que defendem a descriminalização e a legalização do aborto, e que nunca se rendem.

28 de setiembre, día por la despenalización del aborto en América Latina y el Caribe. 

*Florencia Roldán é integrante da organização uruguaia Cotidiano Mujer e da Articulación Feminista Marcosur (AFM).

(1) A lei integral de violência baseada em gênero estabelece, em seu artigo 43, que as mulheres migrantes em situação de violência podem aceder à IVG.

A tradução do espanhol foi feita por Carla Gisele Batista

Texto originalmente publicado por Mulheres em Movimento, da Folha de Pernambuco



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