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Entrevista Jaime Barrientos: estallido chileno

Direitos LGBT, economia política e forças anti-gênero

No Brasil a violência está muito presente na vida das pessoas LGBT. Qual o cenário no Chile?

Jaime: Se analisamos as mudanças do ponto de vista social e político em relação a direitos das pessoas LGBT, sobretudo nas leis, temos um cenário muito favorável. Há mudanças positivas, mas as pessoas não vivenciam ou percebem da mesma forma estas mudanças. Todavia há coisas que fazer. Se comparamos com outros países, Brasil ou México, por exemplo, é evidente que a violência estrutural e estatal não é a mesma. É muito menor no Chile. Este cenário pode mudar, por várias questões. Uma delas é o avanço dos movimentos anti-gênero na região.

O Chile tem um conjunto de diferenças com outros países. Não temos um aumento tão vertiginoso de movimentos evangélicos pentecostais. Paralelamente, a igreja católica está muito afetada pela crise dos abusos sexuais. Tem tido pouca voz nas discussões sobre aborto e sobre identidade de gênero. A direita política, que funcionava como bloco, começou a ter problemas internos, a se fragmentar e dividir. A extrema direita, herdeira das ideias de Pinochet, sobretudo nas últimas eleições, começou a mostrar a face. E um dos seus líderes, um político muito rico, se apresentou como candidato presidencial, obtendo uma porcentagem muito reduzida de votos, mas demonstrando que há pessoas que acreditam nas suas ideias. Com tudo o que tem acontecido recentemente, ele ganhou mais visibilidade, mais protagonismo público, jornalistas mostraram recentemente como ele é importante no lobby anti-gênero na região.

Este grupo tem muito poder econômico e começa a fazer alianças políticas com evangélicos. As coisas podem acontecer rapidamente, como em outros países. Até agora a direita que nos governa, cujo principal interesse é o econômico, salvo o tema do aborto que às vezes tensiona, é pró diversidade sexual. É uma direita bem particular. Mas no futuro pode ser que esses grupos de extrema direita venham a ter mais representatividade.

Há, inclusive, pessoas contrárias às manifestações que se iniciaram com o Estallido social, porque as veem como desordem.

Jaime: Exatamente. Grande parte dos avanço foi provocado por grupos de mulheres nas universidades, garotas feministas, pessoas LGBTs, que desde o ano passado foram se mobilizando e pressionando o Estado a se mover. Mas isto não é suficientemente reconhecido. O Estallido social é muito importante, mas há um conjunto de coisas que vinham acontecendo antes. O que o movimento feminista provocou nas universidades foi muito significativo. Problematizou casos de abuso e assédio que eram naturalizados. O país está sendo remexido nestes últimos tempos.

No Chile, o campo educativo é um dos principais campos de batalha ideológica, porque Pinochet privatizou a educação. Quando ele se foi e retomamos a democracia, todos os governos posteriores mantiveram o modelo. A democracia cristã, de centro, e toda a centro esquerda começaram a ganhar dinheiro com este modelo. E até agora, tanto a direita quanto a esquerda, salvo o Partido Comunista, não tocaram na liberdade de ensino. A ideia é que são os pais que escolhem em que colégio e que tipo de educação devem ter seus filhos, o que em princípio soa bem, se as escolas fossem iguais para todo mundo. Não tocaram nesse princípio. E os movimentos anti-gênero se agarraram a ele. A educação é um campo importante em que os pais devem resguardar a liberdade de aprendizagem dos seus filhos. E essa liberdade inclui, em princípio, a não ideologização dessa educação. Para a direita, e também para parte da esquerda, a não ideologização de gênero. Mas se permite a ideologização religiosa, que não é considerada ideologização.

As escolas têm que ter aula de religião?

Jaime: No Chile, o negócio da educação, sobretudo antes da universidade, é administrado em parte pelas diversas congregações religiosas (cerca de 30% das escolas). A maioria são escolas de elite. Então aí, em geral, se ensina religião de forma obrigatória. Mas nas escolas públicas a religião é optativa. Se ensinada, é a católica.

 

Lei de Identidade de Gênero

Existem políticas para tornar a lei uma conquista concreta?

Jaime: Todas as universidades, até as mais conservadoras, como a Católica, têm hoje em dia políticas que as comprometem com a população LGBT. Isso não existia. E penso que é um êxito do próprio movimento feminista na universidade, que conseguiu incluir protocolos de não discriminação e de inclusão das pessoas trans. Mas no Chile não temos políticas de discriminação positiva. O Estado criou regulamentação, normativas para a inclusão, contra a homofobia e a transfobia, para a atenção médica, a atenção nos serviços públicos. Não avançou muito mais. Mas é importante porque não existia e agora existe.

Algumas instituições fizeram mais esforço, capacitaram, mas se requer muito mais. Por exemplo, a polícia por muito tempo recebeu formação em temas de diversidade sexual e de gênero. No entanto o Estallido social mostrou que a polícia segue tendo comportamento violento, não necessariamente físico, mas também, contra gays, lésbicas, pessoas trans, que envolve ainda violência psicológica, humilhação. A formação mostrou-se insuficiente. Creio que pode haver uma mudança no caso dos trans, porque a lei se acompanha de implementação de um conjunto de políticas em diversos âmbitos, em educação e  saúde. Essa implementação começa a ser feita agora. Nesse momento as instituições do Estado estão convocando organizações para formar os seus quadros. Oxalá sejam mudanças reais. Para mim, deveria haver uma instituição que resguardasse isso, o que não existe. É um desafio.

Tipo um ministério?

Jaime: Sim, um ministério ou uma secretaria dentro de um. Acabo de fazer para a UNESCO um informe sobre crianças e adolescentes do Chile e constatei que, sobretudo na América do Sul, não existem políticas que abordem a educação sexual. Chile se compara a El Salvador e Guatemala. Os outros países têm ou tiveram, caso do Brasil agora. No fundo, o princípio é de que há que resguardar aos pais a definição da educação dos filhos. Então, continua a transmissão de estereótipos quanto a homens e mulheres, a falta de formação sobre a incidência e prevenção de HIV e AIDS. No ano passado, com o movimento feminista, esses foram temas abordados. Mas essas formações devem fazer parte de processos de socialização que precisam começar antes da universidade. Esse é um grande desafio que tem o país. Mas até agora não há nenhum sinal de que isso vá mudar.

Com a lei, a mudança de sexo pode ser feita no serviço de saúde?

Jaime: O que a lei permite para as pessoas maiores de 18 anos é facilitar o processo de mudança de sexo. Entre 14 e 18 anos também, mas com o consentimento dos pais. Facilitou, mas seguem dependendo de certificação médica para iniciar o processo de transição. O Estado, no entanto, ainda não está custeando. As pessoas têm que se auto-financiar, o que é um problema para as mais pobres. A patologização das pessoas trans no contexto da saúde, com a necessidade de certificação médica, é complicada. Por outro, lado há um grupo de médicos que se formou nestes temas e trabalha no serviço público, criando unidades especializadas em atenção às pessoas trans. Ainda que com uma lógica médica, mas já é um grande avanço. O Ministério da Saúde, por seu lado, tem um departamento voltado à inclusão das diversidades, com médicos e psicólogos comprometidos que estão tratando de organizar protocolos. Existem boas experiências, mas por disposição pessoal. Ainda não há recursos ou políticas.

 

Constituinte, mobilização e perspectivas

Como você está vendo o processo da Constituinte e a organização dos movimentos?

Jaime: Vejo o futuro próximo muito complicado, por várias razões. Em primeiro lugar, o governo atual não tem disposição para modificar o modelo econômico. Vão manter o seu programa. A cidadania pede mudanças ao modelo e o governo responde dizendo que fez mudanças para mudar a vida dos chilenos, mas nenhuma dessas mudanças são as que a cidadania quer. As mobilizações vão continuar e a maioria da população está a favor das mobilizações. Tão pouco a classe política, salvo o Partido Comunista, está disposta a apoiar. Como parte das decisões são no Congresso, está  muito difícil avançar. O país necessita ter uma nova Constituição, a que temos vem do governo militar. O neoliberalismo está presente em toda a nossa vida social, política e econômica. A direita e grande parte da esquerda ganhou muito dinheiro com isso. O sistema educativo, por exemplo, não foi modificado na época da presidenta Bachelet porque parte da centro esquerda se enriqueceu com a educação. Não há muita oposição para que se implemente uma mudança real e efetiva da Constituição. Não sou otimista. No fundo há que modificar o papel do Estado. Fizeram desse país o que temos hoje. E nos tornamos cúmplices porque começamos a viver melhor, comprar mais coisas. Mas às custas de outras coisas, outras pessoas.

O que se espera é que haja um sinal do Estado e da classe política de que vai haver alguma modificação do modelo que temos. É fundamental mudar as aposentadorias e o sistema de educação. Já são três meses de mobilização, a aprovação do presidente segue baixa, a tensão da cidadania segue alta, as pessoas estão cansadas dos efeitos negativos que têm os protestos, sobretudo quando há violência, mas não estão cansadas dos seus ideais.

Muitas das pixações e cartazes fazem acusações de evasão.

Jaime: Por que inicialmente supermercados, farmácias e bancos foram atacados? Porque são acusados de grandes roubos. Há muita injustiça, parcialidade da lei em favor dos ricos. Você pode dizer que é pior em outros países. Mas aqui, para as pessoas comuns, é muito importante. As pessoas seguem mobilizadas porque acreditam que assim poderemos ter um país mais justo, mais equitativo.

E quanto ao movimento de estudantes?

Jaime: Eu diria que o movimento estudantil vem dando sinais, há tempos, da necessidade de mudança do sistema educativo, das formas de ingresso. Por que as mobilizações agora? Porque se não for neste momento, não vai haver mudança. Eu, particularmente, não sou contrário a este sistema de seleção. Não é o único a ser modificado, no entanto. Há que ter escolas mais equivalentes para que todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades de saírem bem nas provas. Como a formação é muito diferenciada qualitativamente, há diferença de condições para chegar às provas. As formas de manifestação foram se incrementando para poder gerar impacto. E o Estado responde com mais repressão. E isso aumenta a escalada de violência.

Há um conjunto de outras formas de protesto que lamentavelmente não se visibilizam da mesma forma: intervenções artísticas, intervenções nas ruas, lastesis. As ruas e as paredes vão estar marcadas e isso tem um sentido político. E estão sempre mudando. Nas cercanias da Praça da Dignidade, quase todas as noites aparecem novos cartazes, novas fotos, algumas muito impactantes, fortes. Não estão sujando as paredes, estão fazendo intervenções. Tudo o que fazem com as estátuas são intervenções para mostrá-las de outra forma, para ressignificar. Eu creio que é a forma de reconstruir esse espaço físico também.

Como percebe a participação feminista nesta “explosão”?

Jaime: O que queremos é um país diferente, o que pressupõe transformações do modelo político, econômico e social. Muitas das apostas e demandas dos movimentos feministas são fundamentais para pensar e instalar como nos construímos como país. Uma destas coisas é a paridade de gênero, que tem que se dar de forma transversal em todo o país. Não podemos nos repensar de outra forma. As pensões são importantes, assim como pensar como podemos relacionar-nos de uma outra forma. Agora, a tradução em lei vai encontrar mais adesão para algumas coisas que em outras. O tema do aborto, por exemplo, foi muito disputado. Houve muita resistência não somente da direita, mas também da centro-esquerda. A própria presidenta Bachelet teve muita dificuldade em fazer avançar a proposta. Eu digo isso porque as demandas dos movimentos podem traduzir-se em coisas muito diferentes. Tem coisas que podem transitar melhor que outras. No caso do aborto, as pesquisas mostraram que havia mais aceitação para algumas condições/circunstâncias mas não para a legalização. Por isso, os 3 causais. Não necessariamente era a melhor lei, mas ainda assim saiu.

E quanto às jovens feministas?

Jaime: Neste país, os processos de mobilização recentes, todos foram dirigidos por jovens. As mobilizações estudantis de 2011 e agora também. De alguma forma, as pessoas de minha geração (acima de 40), que ficaram muito marcadas pela ditadura, tornaram-se  mais tranquilas. A paixão está presente entre os mais jovens. Nesse sentido, considero que há um fator geracional sim, que dá este impulso!



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