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Três cartas e um coringa: Bolsonaro e o caso Marielle

por Isabela Kalil

Compartilho aqui alguns apontamentos a partir da repercussão pública da reportagem do Jornal Nacional, veiculada em 29 de outubro, que noticiou que o nome do presidente Jair Bolsonaro aparecia diretamente citado na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes. Estes dados fazem parte da pesquisa que tenho realizado sobre os processos de engajamento e desengajamento dos eleitores de Jair Bolsonaro, com foco nas estratégias de comunicação utilizadas por Bolsonaro e seus apoiadores.

Sobre a repercussão pública mais imediata nas horas seguintes à veiculação da reportagem, ganhou destaque no Twitter a hashtag #BolsonaroAssassino em resposta às mensagens de apoio de #BolsonaroEstamosContigo. No dia seguinte à veiculação da matéria do Jornal Nacional, o próprio Ministério Público do Rio de Janeiro desmentiu a testemunha que aponta o nome do presidente na investigação. Isso ocorreu após o presidente solicitar a intervenção direta por parte de seu Ministro da Justiça, Sérgio Moro, nos rumos das investigações.

A partir das reações da base de apoio do presidente, é possível identificar a mobilização de três narrativas principais que se articulam. Quando se observa as estratégias de comunicação de Bolsonaro e seus apoiadores, é possível interpretar um padrão nos usos e combinações destas narrativas.

Por esta razão, proponho aqui a analogia com um baralho para ajudar a pensar a mobilização destas narrativas como “cartas” de um repertório limitado de possibilidades. Com isso, defendo que menos do que um número ilimitado de “cartas”, Bolsonaro e seus apoiadores mais próximos operam com padrões de repetição das mesmas narrativas que são “jogadas” no debate público, a depender do contexto em questão, conforme explicarei a seguir.

Minha proposta é que pensemos nas cartas como narrativas que são “lançadas” e, algumas vezes, depois “retiradas” do debate público. Isto ocorre, na maioria das vezes, quando Bolsonaro afirma algo e depois desmente a si mesmo publicamente. Variações deste mesmo padrão ocorrem em situações nas quais o presidente se arrepende, se desculpa ou recua em alguma de suas ações ou posições. O mesmo ocorre com a equipe do governo quando alguém afirma algo e é desmentido pelo presidente ou o contrário.

Um terceiro padrão ocorre quando, por exemplo, um de seus filhos fala em nome de Bolsonaro ao usar o perfil pessoal do presidente nas redes sociais. Neste sentido, é menos relevante nos perguntarmos quem de fato utiliza o perfil pessoal do presidente no Twitter. O mais importante neste caso é a possibilidade de que qualquer ação ali realizada possa ser “desfeita” ao se afirmar que não foi responsabilidade ou desejo do presidente. Além disso, essa estratégia leva em conta, na maioria das vezes, as possíveis reações de seus apoiadores e críticos.

Especificamente sobre o episódio envolvendo a repercussão da reportagem do Jornal Nacional, a análise de uma amostra dos tuites compartilhados com a hashtag #BolsonaroEstamosContigo nos dias 29 e 30 de outubro de 2019 revela a presença de três narrativas principais, a saber: 1) referências à perseguição que Bolsonaro estaria sofrendo por parte de seus adversários políticos, especialmente a Rede Globo, 2) referências ao atentado da facada sofrido durante a campanha presidencial, 3) referências ao assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Cada uma destas “cartas” se relaciona com o reforço de determinados padrões e respostas específicas da opinião pública.

  • A carta do leão cercado pelas hienas – o padrão da imobilidade

Essa é a estratégia de comunicação mais utilizada e uma das mais antigas do governo Bolsonaro. Desde o início do processo de perda de apoio de seus eleitores, mais visível a partir do mês de abril, Bolsonaro sustenta a narrativa de que tem sido vítima de forças que o impedem de governar. Cito alguns exemplos: em julho, ao tratar do contingenciamento de gastos na educação, Bolsonaro chegou a falar pela primeira vez do risco de sofrer impeachment. Durante a reforma da previdência chegou a culpar a “velha política” e até os parlamentares pela demora na votação. Em uma crise deflagrada por ele mesmo, o presidente chegou a declarar guerra contra seu próprio partido político, o PSL.

O episódio mais emblemático deste padrão foi a veiculação em sua conta pessoal do Twitter de um vídeo em que o presidente aparece representado como um leão. Na cena, o leão aparece cercado de hienas representando aqueles que seriam seus adversários políticos. A mensagem é a de que Bolsonaro estaria sendo vítima de uma conspiração que inclui seu próprio partido, movimentos sociais, outros partidos, canais da imprensa, canais de mídia independente, a OAB e até a Suprema Corte.

Ainda sobre o vídeo, o próprio Bolsonaro afirmou ter sido alertado pelo governador do Rio de Janeiro sobre os rumos da investigação do caso de Marielle. Portanto, Bolsonaro sabia da possibilidade de divulgação das novas informações pela imprensa quando o vídeo foi publicado. O vídeo foi apagado poucas horas depois e Bolsonaro chegou a se desculpar publicamente. Mas a mensagem foi amplamente difundida nas redes sociais. E chegou, inclusive, a ser veiculada em escala nacional no horário nobre da TV no mesmo noticiário em que a Globo tratou das investigações da morte de Marielle. Neste caso, a carta foi “retirada” depois de ter desempenhado seu efeito tanto para apoiadores como para os “inimigos” políticos mencionados no vídeo em questão.

Este padrão reforça a ideia de certa imobilidade de Bolsonaro frente aos desafios, adversidades e adversários políticos. O padrão de imobilidade foi amplamente utilizado durante a campanha. Basta lembrar que Bolsonaro esteve hospitalizado, portanto, imobilizado, em boa parte de sua campanha. Esta imobilidade inclusive tornou justificável sua ausência nos debates televisivos. Já eleito, este padrão de imobilidade torna justificável o não cumprimento de promessas de campanha ou a não satisfação de parte de seus eleitores.

Além disso, o vídeo coloca seus apoiadores no centro da cena. Isso ocorre quando um leão mais jovem, nomeado de “conservador patriota” entra em cena para salvar o leão mais velho (Bolsonaro) das hienas. A finalidade deste vídeo é dupla e trata de convocar as forças de sua base eleitoral para apoiá-lo. E, ao mesmo tempo, indicar quais inimigos devem ser atacados. Esta é uma forma de apontar adversários que podem sofrer ataques virtuais e pautar possíveis protestos e mobilizações da direita.

  • A carta do novo homem – o padrão do renascimento

Outra narrativa que voltou a ganhar destaque é aquela que relembra a facada e o caso envolvendo Adélio Bispo que responde pela tentativa de homicídio de Bolsonaro. Neste sentido, Bolsonaro não seria apenas vítima de uma conspiração política, mas sua vida estaria em risco. A forma como a facada foi tratada na campanha eleitoral foi um fator decisivo para conquistar o voto feminino e de outros eleitores mais resistentes, conforme já apontei em outros trabalhos. A forma como o episódio da facada foi tratado na campanha teve como efeito “humanizar” a figura de Bolsonaro entre os eleitores que não estavam convencidos com sua faceta mais viril, ao explorar a condição mais frágil do candidato.

Além disso, o episódio da facada foi explorado como um ponto de virada na conduta de Bolsonaro durante a campanha. Ter sobrevivido ao atentado foi explorado como uma espécie de renascimento e uma justificativa para que o candidato assumisse um tom mais ameno no final de sua campanha. Depois de um ano desde o evento, Bolsonaro passou a comemorar a data como um segundo aniversário, já que teria nascido de novo ou se tornado um novo homem após o evento. Não por coincidência, essa narrativa foi evocada pela Ministra Damares, que atua em interlocução direta com os grupos de mulheres bolsonaristas. Esta narrativa também é carregada de sentido religioso, já que Bolsonaro teria sobrevivido por um milagre, por ele atribuído a Deus.

  • Mas e o PT? – o padrão do espelho

O caso do assassinato do prefeito petista Celso Daniel já havia voltado à tona alguns dias antes em razão da publicação da reportagem de capa do último número da revista Veja. De acordo com a reportagem, Marcos Valério teria citado em depoimento o ex-presidente Lula como um dos mandantes do assassinato do então prefeito de Santo André, Celso Daniel. Em entrevista a outros canais de comunicação, o delegado responsável pelas investigações desmente a versão de que Marcos Valério teria feito essa afirmação em depoimento, desmentindo a matéria da Veja.

O fato é que esta suspeita de que Lula teria sido mandante deste crime foi amplamente mobilizada pelos apoiadores de Bolsonaro. E esta foi uma das primeiras respostas quando surgiu a citação do nome de Bolsonaro no caso Marielle. Este padrão se repete em diversas situações em que Bolsonaro se vê em suspeição e acusa Lula de ter agido de forma similar. Assim, a imagem tanto do Partido dos Trabalhadores, quanto o próprio Lula funcionam como uma espécie de espelho para rebater acusações recebidas por Bolsonaro.

De volta ao caso de Marielle e Anderson

Considerando que, no dia seguinte à divulgação da matéria do Jornal Nacional, o próprio Ministério Público do Rio de Janeiro afirmou que a testemunha que implicaria Bolsonaro estaria mentindo, o presidente vê sua tese de que está sendo perseguido injustamente ganhar respaldo. Com isso, Bolsonaro enfim consegue colocar em suspeição qualquer acusação contra si mesmo que venha da imprensa. Entre aquela base que se mantém fiel a Bolsonaro, tais suspeitas e acusações de seu envolvimento na morte de Marielle podem funcionar como uma espécie de “segunda facada”. E, com isso, manter sua base de apoio unida em uma situação na qual Bolsonaro estaria sendo vítima de forças que o imobilizam ou tentam imobilizá-lo.

No entanto, mesmo a suspeita de envolvimento na execução de Marielle são suficientemente graves. Isso sem falar na gravidade da intervenção direita do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, no caso em que o presidente poderia se tornar um potencial investigado. Ou ainda nas acusações de que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, estaria interferindo no caso e manipulando as investigações de modo a prejudicar Bolsonaro, seu potencial rival político.

O fato é que em um cenário de crescente perda de apoio e disputas com seus ex apoiadores, Bolsonaro não tem mais clareza do alcance de sua base. Ações como a transmissão ao vivo de seu vídeo no meio da madrugada em sua viagem ao exterior é uma forma também de medir seu atual alcance político. Bolsonaro não sabe mais exatamente o alcance de sua base de apoio. Ele precisa testar, a live desesperada (um pouco de orquestração e um pouco de real desespero) é a forma de medir esse alcance.

Quando Bolsonaro afirma que está reduzindo “o espaço democrático da esquerda”, ele joga suas cartas para testar o quão longe consegue avançar ainda mais na diminuição acelerada do espaço democrático, já que não existem espaços separados da direita e da esquerda. E, por fim, que diante de todas as questões políticas em jogo, que não percamos de vista o absurdo das execuções de Marielle e Anderson e a necessária busca por justiça.

Imagem: Sofia Santana



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