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Qual a real extensão da lei anti-aborto publicada por Trump

Sonia Correa analisa o conteúdo explícito e as entrelinhas do decreto da Casa Branca que proíbe o financiamento de organizações estrangeiras que promovam a interrupção da gravidez
 

Foto: Kevin Lamarque/Reuters – 02.03.2016

Ativistas americanas contra a criminalização do aborto

Manifestantes levantam cartazes à favor do aborto em Washington

O presidente americano, Donald Trump, publicou no dia 23 de janeiro um memorando presidencial para “assegurar que recursos fiscais dos EUA não sejam usados para financiar organizações ou programas que promovam aborto coercivo ou esterilização involuntária” no exterior.

O fato de o memorando ter sido o segundo publicado pelo novo presidente dos EUA depois de ter tomado posse, três dias antes, em Washington, mostra a urgência que os republicanos imprimem ao assunto.

Para muitas das organizações que trabalham com direitos reprodutivos em todo o mundo, a medida em si já era esperada. Apesar disso, um detalhe chamou a atenção. O presidente americano empregou deliberadamente o termo “coercivo” no texto, o que dava a entender que a medida pudesse se referir apenas a procedimentos feitos contra a vontade das pacientes.

Mas especialistas em saúde viram no uso da expressão uma “pegadinha”, entre as quais Sonia Correa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política.

“O que importa nesse texto é o primeiro parágrafo, no qual ele diz, dentro de um parêntesis, que o presidente dos EUA restaura o Mexico City Policy. O parêntesis do texto é o que importa. Ele só mencionou ‘aborto e esterilização coercitivas’ como uma pegadinha, pois ninguém vai achar que o que está entre parêntesis é o que importa”, disse Sonia Correa ao Nexo, do Rio de Janeiro, por telefone.

O parêntesis contém a reedição de uma lei, conhecida nos EUA como Mexico City Policy, criada em 1984 pelo então presidente americano Ronald Reagan, que impede de maneira abrangente que organizações estrangeiras que promovam o aborto, em geral, recebam financiamento americano.

“Essa não é uma invenção do Trump. É a reedição de algo que tem 30 anos ou mais, e reflete o jogo de forças das vozes conservadoras da sociedade americana com relação ao tema do aborto e da sexualidade, com efeito real na saúde materna e na saúde das crianças, além do financiamento de programas de HIV Aids nos lugares mais pobres do mundo”, disse a pesquisadora, na entrevista a seguir:

O que é o chamado Mexico City Policy?

Sonia Correa O texto da Mexico City Policy foi definido pelo governo [Ronald] Reagan [presidente dos EUA de 1981 a 1989], no contexto da Conferência de Populações e Desenvolvimento, realizada na cidade do México, em 1984. Naquele momento, os EUA usaram a oportunidade da conferência para fazer uma declaração pública de que estavam suspendendo o financiamento para o Fundo de População das Nações Unidas, e isso vinha da pressão interna de setores conservadores que apoiavam Reagan.

A origem do termo “coercivo” no texto de Trump remonta ao argumento político que foi usado por Reagan nos anos 1980 para editar a Mexico City Policy. A justificativa para suspender o financiamento a ONGs que promovessem o aborto no exterior foi o fato de que o Fundo de Populações das Nações Unidas oferecia recursos para a China, que implementava um programa de planejamento familiar com esterilização forçada e aborto [a política de filho único]. Ao mencionar esterilização forçada e o aborto forçado – seja a Mexico City Policy, seja sua reinstalação dela agora, por Trump – há um recado para a China, que é o único país do mundo onde existem práticas extensivas de aborto e de esterilização forçados. É uma menção geopolítica sutil. Não sei se eles [os chineses] darão alguma bola para isso. Mas, dentro da irracionalidade desse presidente, é isso que o termo empregado significa.

E que organizações estão na mira dessa medida?

Sonia Correa Essa política diz respeito especificamente ao financiamento de organizações não governamentais estrangeiras. A lista é vastíssima. São programas materno-infantis e de HIV-Aids, são recursos para combate a epidemias e endemias e global health (saúde global) em geral. A regra vai afetar todos os financiamentos feitos a essas ONGs via Usaid [sigla em inglês para Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional] e Departamento de Estado, inclusive o Escritório Americano de Coordenação Global para a Aids e para a Diplomacia em Saúde, que coordena a política global de HIV, além de duas divisões operativas do Departamento de Saúde e de Serviço Humano, que são o Centro para o Controle e a Prevenção de Doenças, em Atlanta, e o Instituto Nacional de Saúde, ambas instituições com uma gigantesca carteira de financiamento, basicamente de pesquisa.

Ao jogar a norma presidencial sobre essas instituições, o governo americano cria problemas e restrições que nós sequer podemos dimensionar agora de maneira adequada. Essa política penalizará a oferta de aconselhamento e de informação sobre aborto em muitos países, mesmo onde o aborto é legal, onde ele é parte dos programas de planejamento familiar. Ou seja, se você tem uma clínica de planejamento familiar e o aborto no país é legal, mas essa clínica recebe dinheiro da Usaid, ela não poderá dirigir essa pessoa para um serviço de aborto legal.

O que ainda não está claro é se essa nova política de Trump vai ser aplicada ainda a outras agências do governo, que usam recursos de outras fontes, e a organizações multilaterais [como agências das Nações Unidas]. Essa é uma discussão aberta.

Por que um presidente que foi eleito por maioria – dentro de um determinado sistema eleitoral, seja ele qual for – e que defende uma promessa que foi apresentada em campanha não poderia implementar essas medidas, uma vez que ele é respaldado por seus eleitores e que o dinheiro em questão é um dinheiro do contribuinte americano?

Sonia Correa Primeiro, ele não foi eleito pela maioria dos eleitores, mas por apenas 30% da população. Ele foi escolhido pelo colégio eleitoral. É um presidente que, seja em relação a essa medida ou a qualquer outra, teria de ser bastante cauteloso. Quantitativamente, ele não representa o conjunto da população americana.

Outra coisa é que isso representa uma interferência indevida, uma condicionalidade indevida na atuação de organizações cujas ações não estão sob a jurisdição da norma americana. E pior ainda: a norma americana em si, que é a decisão da Corte, de 1973, não proíbe o aborto. Portanto, se trata de um exercício imperialista, porque a regra não se aplica [ao financiamento de] ONGs americanas, mas às estrangeiras. ONGs americanas contestariam isso na Suprema Corte, pois é uma norma contrária às leis sobre aborto nos EUA até o momento.

Desde sua criação, em 1984, essa política vigorou por 17 anos. Começou com Reagan e vigorou no [governo de George H. W.] Bush pai [que governou os EUA de 1989 a 1993]. Ela foi suspensa pelo [presidente americano Bill] Clinton [que governou de 1993 a 2001]. Mas, durante um ano, foi reinstalada por um Congresso de maioria republicana, no período em que Clinton era pressionado por um pedido de impeachment.

À época, o governo dos EUA tinha uma dívida em contribuições financeiras às Nações Unidas, e fez uma barganha, condicionando a liberação de fundos para o pagamento dessa dívida à reedição dessa lei. Esse arranjo vigorou por um ano, mas Clinton a suspendeu por meio de um ato administrativo. Por fim, Bush reinstalou em 2000. A Regra da Mordaça como ficou conhecida a norma, acabou suspensa pelo presidente Obama em 2009, e agora foi re-editada por Trump.

É provável que haja contestação jurídica no caso deste memorando?

Sonia Correa Não, porque ele só se aplica a organizações estrangeiras. As organizações americanas não podem contestar isso.

O aborto é a única área na agenda reprodutiva em que essas restrições aparecem?

Sonia Correa Há uma regra semelhante nos EUA para prostituição. Quem recebe dinheiro da Usaid não pode defender os direitos da prostituição, não pode dizer que a prostituição é direito, que a prostituição é trabalho. Essa regra foi acoplada a recursos transferidos para governos nacionais, recursos para políticas sobre Aids.

Em 2005, o governo brasileiro disse não a isso. Foi um boom internacional. Foi a primeira grande resposta dada ao governo americano, que dizia “nós não aceitamos a regra porque prostituição não é crime no Brasil, porque nós temos programas de apoio ao trabalho sexual, prevenção no campo do HIV” e, então, corajosamente, o governo brasileiro glosou, suspendeu, não assinou seu acordo com a Usaid por causa da cláusula sobre prostituição.

Estados soberanos podem fazer isso. ONG também. Mas o custo disso é não receber o dinheiro. Em 1987-1988, eu estava na SOS Corpo, uma organização feminista do Recife. Uma organização americana, a Pathfinder, nos ofereceu um recurso que viria da Usaid para realizar um trabalho sobre saúde e sexualidade entre adolescentes. Nós fizemos o acerto com a Pathfinder. E, quando o contrato chegou, essa cláusula da Mexico City Policy estava no contrato. Nós dissemos “não”. Mandamos dizer que não aceitávamos a regras, e não aceitávamos o dinheiro. É claro que as organizações podem fazer isso, mas com o custo que isso implica, que é de cortar programas, reduzir atividades, reduzir pessoas. Ou seja, é uma coerção financeira.

Quando eu visitei a sede da organização, em Boston, as pessoas queriam me conhecer pois nós éramos, até então, a única organização do mundo que tinha recusado esse dinheiro com base nas imposições da cláusula.

Essa decisão americana terá impactos para além dos financiamentos? Pode inspirar legislações parecidas, por exemplo?

Sonia Correa Claro. Ela tem um peso simbólico e político enormes, porque se trata do país mais poderoso do mundo, com o volume de recursos que os EUA têm, ativando em todos os lugares do mundo as forças contrárias ao aborto, dando a elas um sentimento de empoderamento.

Assim como o [deputado federal pelo PSC do Rio de Janeiro, Jair] Bolsonaro ficou feliz, as forças contrárias ao aborto aplaudem e se sentem fortemente respaldadas pelo homem mais poderoso do mundo. Não basta o papa [Francisco, que também se opõe ao aborto], agora eles têm mais um [Trump].

No Brasil, isso reverbera no discurso político. Essas forças estão super articuladas. Não sei, hoje, no Brasil quanto há de dinheiro da cooperação americana na área de saúde. Na nossa região, em geral, não há grande volume de recursos dessa natureza, vindos da cooperação americana, para planejamento familiar, com exceção talvez de Honduras, Guatemala, El Salvador.

Mas [o impacto] será sobretudo na África e em alguns países asiáticos, na Índia. É aí que as contingências vão chegar mais rápido.

ESTAVA ERRADO:A primeira versão desta entrevista dizia que a ONG SOS Corpo, de Recife, havia rejeitado fundos da Usaid em 1998. A data correta é 1987-1988. A informação foi corrigida no dia 1º de fevereiro às 11h51.

Fonte: Nexo



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