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Notas sobre o webinário: “Democracias em disputa: América Latina”

Abaixo, apresentamos a tradução ao português da relatoria sobre o webinário “Democracias em disputa: América Latina”. O debate foi realizado no dia 7 de maio de 2024, como parte do projeto Diálogos Pendentes e Emergentes. O relatório original, em espanhol, está disponível neste link.

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Em 2024, mais de 60 países realizarão eleições em diferentes níveis de governo1. As disputas não serão apenas eleitorais, mas também sobre o próprio significado das democracias com uma luta pelo poder político e narrativo entre múltiplos actores, incluindo populistas, que instrumentalizaram o conceito e as práticas democráticas para erodir a democracia a partir de dentro. É então um ano decisivo que, desde o campo progressista, nos confronta com a vontade de mobilizar as maiorias para defender a democracia e os direitos humanos.

Com o objetivo de debater este intenso ciclo eleitoral, retomamos as conversas do Fórum de Debates Pendentes e Emergentes, uma iniciativa regional conjunta do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch), Akahatá, Promsex, Puentes e Synergia, convocando um série de debates que serão realizados ao longo do ano. Nossa expectativa é que essas conversas possam contribuir para que ativistas e pesquisadores que atuam na área de gênero, sexualidade e direitos humanos situem melhor suas ações e projetos naquele que é, sem dúvida, um cenário complexo e ao mesmo tempo muito incerto2.

Este ciclo de debates começou com um panorama eleitoral da América Latina cujo conteúdo é apresentado em relatório da jornalista argentina Mariana Carbajal.

Eleições na América Latina

O debate sobre a dinâmica eleitoral na América Latina ofereceu um panorama regional e uma análise específica dos processos eleitorais no México (2 de junho) e no Uruguai (outubro). Foi moderado por Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e contou com as falas do advogado e cientista político Juan De la Puente, que abriu a conversa com uma perspectiva regional; de Fernanda Díaz de León, da organização Ipas Latinoamérica y el Caribe (Ipas LAC), que analisou o contexto eleitoral no México; e Pablo Álvarez, do Observatório Uruguaio da Mulher e da Saúde (MYSU), que fez um balanço da situação no Uruguai.

Sonia inaugurou o evento questionando sobre o futuro das democracias. Ela nos convidou a pensar nesse cenário eleitoral complexo, ainda indefinido, “como uma paisagem em movimento, na qual há muitas forças e dinâmicas em jogo e um grau bastante razoável de imprevisibilidade”. Ela disse também que devemos nos preparar para “resultados negativos”, observando, entretanto, que não devemos nos alinhar esquematicamente com visões que preveem “pura catástrofe”.

Em seguida, Sonia apresentou um mapa do ciclo de eleições programadas para este ano, esclarecendo que algumas eleições importantes ainda não foram realizadas3. Como, por exemplo, as eleições locais no Brasil, que ocorrerão em um contexto em que Jair Bolsonaro foi derrotado, está sob a mira da justiça e correndo o risco de ser preso, mas ao mesmo tempo a ultradireita, que é sua base eleitoral e política, ainda está muito ativa. Mas também as eleições para o Parlamento Europeu, que devem ocorrer no início de junho. 

Ao mesmo tempo, ela destacou que algumas das eleições de 2024 que já ocorreram mostram resultados bastante paradoxais. Por exemplo, o retorno ao poder, após quase uma década, da direita moderada em Portugal, mas que não obteve maioria na Assembleia Nacional, enquanto houve um crescimento significativo do partido de extrema direita Chega. Após as eleições, havia preocupações de que o Chega pudesse fazer parte de um governo de coalizão, como aconteceu no Uruguai em 2019, mas isso não ocorreu. Além disso, Sonia destacou o crescimento do partido Livre, que representa a nova esquerda, e enfatizou a importância da comemoração do 50º aniversário da Revolução dos Cravos em 25 de abril, interpretando-a como um sinal de que a sociedade portuguesa parece estar mobilizada contra o retorno do fascismo ou a ascensão do neofascismo.

Ela também comentou sobre os contextos da Turquia e do Reino Unido, onde foram realizadas eleições locais no primeiro semestre do ano. Ela ressaltou que os resultados indicam que tanto o regime de Erdoğan quanto os Brexiters da direita britânica parecem estar perdendo terreno. No Reino Unido, mais especificamente, as pesquisas projetam uma possível vitória do Partido Trabalhista por uma margem de até 20% dos votos nas eleições gerais convocadas para o início de julho. 

Na América Latina, entretanto, de acordo com Sonia, os sinais têm sido menos auspiciosos. O ano de 2024 começou sob os efeitos dos processos eleitorais do ano passado, especialmente no Equador e na Argentina, que poderiam ser descritos como “bastante catastróficos”. Seguiram-se as eleições em El Salvador, que consolidaram a autocracia de Bukele, e depois no Panamá, “cujos resultados também são preocupantes”. 

Panorama da América Latina: a dificuldade de capturar as tendências regionais

Juan de la Puente destacou três fatores que definem a situação atual da América Latina: 

  • A dificuldade de estabelecer tendências regionais devido às excepcionalidades que surgiram nos últimos anos, como em El Salvador, Argentina, Peru e Chile.
  • O declínio da influência dos EUA na região, exemplificado pela longa ausência de um embaixador boliviano nos EUA e o aumento da influência econômica chinesa em toda a região. 
  • A ausência de modelos alternativos ao neoliberalismo nos últimos 20 anos, o que teve um grande impacto sobre os movimentos progressistas.

Como tendência, ele destacou, acima de tudo, como a ultradireita está contribuindo para a erosão do pacto democrático, observando que essa “erosão” não se deve apenas ao autoritarismo da direita. Em outras palavras, uma variedade maior de situações e eventos deve ser incluída nesse balanço, como o autoritarismo de esquerda na Venezuela e na Nicarágua, a corrupção estatal na Guatemala e no Peru, as crises das experiências progressistas no Equador e no Chile e o recente “desastre” do campo de esquerda na Argentina.

Por outro lado, de acordo com Juan, é necessário não esquecer os exemplos de políticas democráticas eficazes na região, como a formação de coalizões antiautoritárias em países como Colômbia, Brasil, México e Honduras. Essas coalizões, lideradas por figuras como Petro, Lula, AMLO e Xiomara Castro são, apesar de suas limitações, “promessas” de mudança e de recuperação de um senso de unidade nacional “como um elemento que acompanha a defesa da democracia ou a luta contra o autoritarismo”.

Ele também alertou sobre a mudança em curso nos processos eleitorais na América Latina, que se afastam das disputas baseadas em programas detalhados “com maior identidade partidária” para a formação de coalizões mais amplas como uma estratégia em resposta ao autoritarismo. Ele avaliou que isso ainda não está desenhado nos horizontes eleitorais de 2024 na região, mas considera que esse deve ser um caminho a ser seguido no futuro. Não menos importante, ele observou que o atual cenário político regional acarreta uma clara diversificação ou mesmo polarização dos protestos sociais, pois ao mesmo tempo em que há manifestações contra o neoliberalismo, há também uma proliferação de protestos de natureza conservadora, ou seja, de forças de ultradireita, como se viu durante a pandemia. Em relação a esse paradoxo, ele acrescentou:  

“O que quero dizer com isso é que as eleições talvez não sejam mais e não serão mais suficientes, a curto e curto prazo, para renovar a democracia na região. Para elucidar o exercício do poder que hoje está preso em uma espécie de asfixia do presidencialismo, no esgotamento dos segundos turnos em vários países, estão em curso jogos muito mais abertos que vão além do processo eleitoral”. 

Juan também destacou que a visão de que a região está polarizada não é falsa, mas é incompleta. Há países em que as opções políticas não implicam necessariamente um contraste entre direita e esquerda: “Portanto, a polarização, a ascensão da ultradireita, a erosão do pacto democrático não são faces da mesma moeda, mas faces de um dado que rola em cada país com uma propriedade e originalidade espetaculares”. Em outras palavras, os contextos são muito importantes, porque essas dinâmicas são semelhantes, têm elementos comuns, mas se manifestam de forma muito diferente dependendo das condições locais. 

Por outro lado, ele ressaltou que vencer um segundo turno de eleições não garante mais a estabilidade do presidente eleito, citando exemplos recentes na América Latina. Ele enfatizou que tanto as mobilizações democráticas quanto as conservadoras podem influenciar o poder político, como visto nos casos de Dilma no Brasil e Castillo no Peru. Em tais contextos, a qualidade da democracia depende mais da transparência eleitoral e da capacidade de mobilizar a sociedade antes e depois das eleições, enfatizou. 

No mesmo contexto, de acordo com ele, podemos estar testemunhando o fim do ciclo do “constituentismo” na América Latina. Um exemplo disso é o Chile, onde o processo constituinte terminou sem uma nova constituição. Embora 78% tenham votado inicialmente para mudar a constituição, a proposta final foi rejeitada por 56%, o que sugere fragmentação e falta de uma política de longo prazo no país.

Por fim, Juan levantou a necessidade de renovar e transformar a democracia e a economia na América Latina, além de simplesmente defender instituições possivelmente obsoletas e modelos neoliberais. Ele enfatizou a importância crucial do debate sobre autoritarismo e democracia, por um lado, e, por outro, “abordar as demandas de uma sociedade radicalizada diante da negligência do Estado, da fome e da insegurança”. Ele mencionou que, de acordo com vários relatórios, as sociedades atuais apoiam a democracia, mas também votam em líderes que podem enfraquecê-la. Mesmo que isso seja paradoxal, Juan considera que “não há espaço para pessimismo”. 

“A vitória de Lula, a vitória de Arévalo na Guatemala, a derrota da Coalizão Conservadora no México, nos dão espaço para discutir um momento diferente na América Latina, onde provavelmente não há muita clareza em relação à clareza das propostas, mas há espaço para uma nova defesa da democracia a partir da perspectiva da unidade nacional”, disse ele. 

Perspectivas eleitorais no México e a extrema direita transnacionalizada

Fernanda Díaz de León iniciou sua intervenção com uma descrição do mapa dos partidos políticos e suas alianças, destacando a flagrante indefinição do conteúdo programático das diferentes propostas com vistas às eleições de 2 de junho. Ela enfatizou que esse é o maior processo eleitoral da história do país devido ao enorme número de cargos em jogo: mais de 19.000 em nível federal, local e municipal, incluindo a Presidência da República e 9 dos 32 governos locais; 500 assentos para deputados e 128 assentos para senadores no Congresso Federal e eleições para 31 dos 32 congressos estaduais em sua totalidade. Além disso, ela fez uma breve apresentação das principais forças políticas em jogo no cenário eleitoral. Começando pelos partidos, Fernanda descreveu brevemente o PT, o Movimiento Ciudadano e o Partido Verde: 

  • PT (Partido del Trabajo): Embora pequeno, com uma longa tradição no México, ele se autodenomina um partido de esquerda. 
  • O Movimiento Ciudadano ganhou força recentemente e atualmente governa os estados de Nuevo León e Jalisco, que são duas das entidades mais importantes em termos políticos e econômicos depois da Cidade do México. Embora também se identifique como de esquerda, nesses estados que governa, não apresentou nem apoiou nenhuma iniciativa para descriminalizar o aborto. 
  • Partido Verde: esse partido está agora aliado ao Morena. Apresenta-se como um partido ambientalista, mas seu foco não é necessariamente a defesa do meio ambiente ou dos direitos econômicos e sociais. Em vez disso, busca manter seu registro como partido e ter acesso a financiamento público.

Em seguida, falou sobre os jogos maiores e mais competitivos. 

  • O PRI (Partido Revolucionario Institucional): Por mais de 80 anos, o PRI governou o México até que a alternância com o Partido de Ação Nacional (PAN) começou em 2000. Na história moderna, o PRI ocupou uma posição central na política mexicana, mas, desde 2000, teve altos e baixos em termos de popularidade e poder.
  • O PRD (Partido de la Revolución Democrática) foi implantado a partir do PRI na década de 1980. Ele governou a Cidade do México várias vezes e foi responsável pela descriminalização do aborto em 2007 (o primeiro estado a fazê-lo). Historicamente, era um partido de esquerda, cuja influência diminuiu drasticamente nos últimos anos, principalmente após a ascensão do Morena4.
  • O PAN representa o antigo partido de direita cujas origens estão na chamada Guerra Cristero da década de 1920. Ele voltou à vida política após a reforma eleitoral do final da década de 1990. O PAN foi o ponto de entrada da organização católica de extrema direita El Yunque para se infiltrar nas estruturas governamentais durante os governos de Vicente Fox (2000-2006) e Felipe Calderón (2006-2012).
  • O Morena (Movimiento de Regeneración Nacional) foi criado em 2011 como um movimento político para apoiar a candidatura de López Obrador, então membro do PRD, à presidência. Em seguida, registrou-se como um partido, recrutando seus quadros e eleitorado principalmente do PRD. O Morena se posiciona à esquerda do cenário político regional, mas na política interna estabeleceu “alianças questionáveis”, por exemplo, com o Partido Evangélico Encontro Social, que já perdeu seu registro eleitoral. Entretanto, antes de sua extinção, muitos de seus deputados se juntaram às fileiras do Morena. Uma dessas figuras é Lili Telles, que agora se mudou para o PAN (Partido de Ação Nacional), mas foi senadora pelo Morena e é bem conhecida por suas posições contra os direitos sexuais e reprodutivos. 

De acordo com Fernanda, em maio, todos os prognósticos previam que a candidata do Morena, Claudia Sheinbaum, venceria contra uma coalizão formada pelo PRI, PRD e PAN, que, até 2018, eram inimigos históricos. Muito significativamente, liderando a oposição estava outra candidata, Xóchtil Gálvez. Essas projeções foram confirmadas, tornando Sheinbaum a primeira mulher na história do México a ocupar a presidência.

Fernanda também forneceu informações sobre a extrema direita mexicana. Ela mencionou, por exemplo, Eduardo Verástegui, um ativista político mexicano de extrema direita que lidera ofensivas contra o gênero no país. Verastegui tentou concorrer à presidência, mas não conseguiu obter o registro eleitoral porque não conseguiu as assinaturas necessárias. Apesar desse fracasso, ele anunciou a criação de um partido de extrema direita que poderia eventualmente representar uma ameaça nas eleições de 2030. 

Fernanda, acima de tudo, aprofundou a análise do El Yunque, como uma sociedade secreta ultra-católica e paramilitar. Ao fazer isso, ela esclareceu um ponto-chave: não é que a América Latina seja alvo desses movimentos ultraconservadores, mas sim que a região, e em particular o México, com o caso do El Yunque, tem sido um ninho para a produção de pensamento, estratégia e formações de ultradireita que há muito dialogam com a Europa, especialmente com a Espanha. 

Ela destacou, por exemplo, que, em 2021, o Projeto de Jornalismo Investigativo da Intolerance Network revelou que, por meio de El Yunque e desde os governos do PAN, o México se estabeleceu como o epicentro de uma ampla rede de extrema-direita que mais tarde se expandiu para a Espanha e hoje tem uma forte estrutura global com presença em 50 países. Em 2001, na Espanha, Ignacio Arzuaga, que já fazia parte dessa rede, fundou a HazteOír e, mais tarde, em 2013, seu braço digital CitizenGo, que agora é amplamente influente na região, na Europa e também na África. De acordo com Fernanda, embora o tecido da ultradireita seja muito antigo e denso no México, “depois dos períodos do PAN de 2000 a 2012, essas forças não conseguiram ganhar tração eleitoral em nível federal, além de certos estados que são tradicionalmente católicos”. 

Dito isso, suas conexões transnacionais não são desprezíveis. Isso também se deve ao fato de que essas redes transnacionais são altamente organizadas, têm fluxos financeiros significativos e há muito tempo desestabilizam a vida política e a democracia em outros países da região. Um dos grupos mais influentes dessa rede é a Atlas Network, cujos pontos principais são a ideologia neoliberal, uma agenda antidemocrática e a redução e o enfraquecimento do Estado. Suas conexões regionais incluem o chileno Sebastián Piñera, o argentino Mauricio Macri, os mexicanos Vicente Fox e Felipe Calderón, bem como o colombiano Iván Duque e os espanhois José María Aznar e Mariano Rajoy. 

Por fim, Fernanda examinou os paradoxos de AMLO, uma liderança que termina sua presidência com 70% de popularidade, mas que também corroeu as instituições da democracia, como os mecanismos eleitorais e judiciais nacionais. Ele também desqualificou, com frequência, o papel das organizações da sociedade civil e do feminismo.

Quando perguntada sobre o que esperar do governo de Claudia Sheinbaum, Fernanda acredita que, com base na análise feita pela Ipas-LAC e discutida com outros movimentos, ela não espera uma mudança significativa em termos de direção da política em um sentido amplo. Sobretudo, ela avalia que o governo de Sheinbaum na Cidade do México “tem sido um dos mais repressivos contra as manifestações de mulheres, por exemplo”, e persistem dúvidas sobre como será sua relação com os feminismos. Além disso, em termos de direitos sexuais e reprodutivos especificamente, Fernanda destacou que durante seu mandato como governadora houve pouco progresso, apesar de, durante esse período, uma decisão da Corte ter descriminalizado o aborto em nível nacional. 

Ela também disse que, de uma perspectiva feminista – incluindo o estado precário do sistema de saúde, a persistência da violência estrutural e a crescente presença dos militares nas políticas públicas – não se pode projetar o que poderia acontecer em um segundo governo Morena sem levar em conta as incongruências que marcaram a presidência de AMLO e o governo de Claudia na Cidade do México. Por esse motivo, a perspectiva da sociedade civil é continuar se mobilizando para construir o Estado de Direito e uma democracia forte e participativa, que continuarão em risco. 

Uruguai: o provável retorno da Frente Ampla

Antes de abordar mais diretamente o contexto uruguaio, Pablo Álvarez fez um comentário geral sobre o clima político regional, destacando que, em sua opinião, a região está passando por uma espécie de cansaço com o pensamento político hegemônico: 

“Há alguns anos, muitos de nós falávamos que o velho não estava morrendo e o novo não estava nascendo. Hoje talvez seja um pouco pior, porque o velho não terminou de morrer e o novo não terminou de se anunciar. Estamos em uma crise que não deve ser obliterada porque as análises que fazemos devem ser orientadas para uma vocação transformadora, além do tempo em que estamos”.

E, retomando uma das observações iniciais de Juan, ressaltou que essa crise deve ser inserida no novo cenário geopolítico, já que estamos diante da queda ou do esgotamento da hegemonia norte-americana. Isso porque, em outros momentos da história regional, as contradições geopolíticas condicionaram as contradições, as crises e as trajetórias nacionais, como ocorreu durante a Guerra Fria. No entanto, de acordo com Pablo, deve-se observar que a dinâmica geopolítica atual envolve tensões e confrontos – entre os EUA e a China, entre a Rússia e o Ocidente, sem mencionar as tensões menos debatidas entre China e Índia na Ásia -, mas que elas não são expressas tão claramente em nível nacional. E isso deve ser objeto de mais atenção de nossa parte. Entre outros motivos, porque, no momento, devido às distâncias geográficas e culturais, os modelos asiáticos não parecem razoavelmente adaptáveis aos nossos países. Mas isso não significa que não possam ser no futuro, como já acontece em outros contextos, como o da África. 

Voltando sua atenção para o Uruguai, Pablo mencionou que o processo eleitoral no Uruguai começa em 30 de junho com as eleições internas que definem os candidatos individuais de cada partido para a eleição nacional, que será realizada em outubro e que eventualmente terá um segundo turno em novembro. No Uruguai, são necessários 50% mais um dos votos para vencer as eleições presidenciais no primeiro turno, enquanto as maiorias parlamentares podem ser alcançadas com um resultado de 47 ou 48% pelo método de cálculo de ponderação.  

Analisando a disputa desse ano a partir de uma perspectiva histórica, entre o início do século XX e o final da década de 1990, o Partido Colorado foi o principal partido do Uruguai. Por outro lado, a Frente Ampla, criada em 1971, que é a unidade da esquerda política do país, teve uma ascensão constante desde então, chegou ao poder em 2004 e permaneceu lá até 2019, quando foi derrotada por uma coalizão de direita liderada pelo Partido Nacional. É interessante mencionar que a Frente Ampla é uma experiência única no continente porque, sob esse guarda-chuva, há um espectro que vai desde anarquistas, comunistas, ex-guerrilheiros e outras forças de esquerda até a democracia cristã.  

Voltando ao contexto eleitoral de 2019, a coalizão de direita que saiu vitoriosa incluiu o Partido Colorado e também o recém-surgido partido de ultradireita Cabildo Abierto, que obteve 11% dos votos poucos meses após sua criação. Conforme analisado em nosso estudo de 2020 para o programa de pesquisa da SPW5, o Cabildo Abierto surgiu como um novo ator político que condensou a narrativa ultraconservadora da época. É o único partido político do país que se define explicitamente como contrário à “ideologia de gênero” e ao direito ao aborto, cuja liderança é um ex-oficial militar de alto escalão e que apela tanto para a estrutura quanto para a “família militar”, em linha com o negacionismo da ditadura.

No contexto regional, é interessante notar que o Cabildo tem uma ideologia ultraconservadora, mas não manifesta adesão ao discurso neoliberal, o que o diferencia de outras forças de ultradireita da região. Essa linha é muito típica da cultura política uruguaia, onde o Estado é defendido por quase todos os partidos políticos, mas também está associada a uma lógica de profundo espanholismo e, nesse aspecto, o Cabildo pode ter semelhanças com o Vox ou El Yunque, embora haja diferenças.  

Apesar dessa ascensão da direita em 2019, para as eleições de 2024, as pesquisas indicam que a Frente Ampla poderá vencer, com projeções de 45% dos votos. Por outro lado, os dados indicam que o Cabildo Abierto pode se enfraquecer como força eleitoral. Mesmo que haja uma margem relativamente alta de eleitores indecisos, a competição eleitoral é bastante favorável para a Frente Ampla, mesmo com uma chance de vitória no primeiro turno. Essas projeções contrastam fortemente com as tendências em outros países onde também houve um rápido crescimento da extrema direita, como Brasil, Chile, Argentina e El Salvador. 

Além das projeções eleitorais, Pablo observou que o Uruguai também se destaca na região com relação à valorização da democracia, embora, de acordo com o Latinobarómetro, desde 2010 tenha havido um declínio significativo com relação a essas porcentagens, que atingiram seu nível mais baixo em 2018. Outro aspecto importante a ser considerado é que o Uruguai é um país historicamente secular, onde a separação entre o Estado e a Igreja foi muito precoce, enquanto nos últimos tempos a perda de confiança na Igreja Católica aumentou drasticamente. Em contraste, as forças armadas, que, desde a transição democrática, haviam perdido grande parte da confiança do público, ganharam credibilidade nos últimos anos, e isso é, em parte, o que explica a eleição do Cabildo Abierto.

Para entender esse ganho de credibilidade, é importante considerar que no Uruguai, assim como em outros países, como o Brasil e agora o México, os governos progressistas investiram muito na aproximação das forças armadas com a população, uma estratégia que, de certa forma, as “humanizou”. De acordo com Pablo, pode-se dizer que, nesses casos, houve uma espécie de lavagem militar. Além disso, e talvez mais importante, ele observou que essa maior confiança nas forças armadas está associada, em todos os casos, a crises de segurança pública, das quais a extrema direita também se beneficia. Nesse sentido, deve-se considerar que esse é o resultado de um descuido democrático significativo por parte das forças progressistas, já que passamos as últimas décadas concentrados em debates sobre a redistribuição da riqueza, minimizando os problemas de segurança e medo.   

Por fim, Pablo destacou que no cenário uruguaio também há situações de desinformação, notícias falsas e lawfare. Em outras palavras, novas dinâmicas de busca de objetivos políticos por meio da articulação da mídia, mentiras e ações judiciais. Para ilustrar essa “novidade”, ele mencionou um caso complexo que começou com uma denúncia feita por uma mulher trans, relacionada ao governo de coalizão e que tem um grande número de seguidores nas redes sociais, contra o principal senador do governo de coalizão, que estava envolvido em casos de abuso sexual e exploração sexual de menores. A denúncia levou à prisão do senador, que foi acusado em outubro de 2023 por vários desses crimes. No entanto, a mesma influenciadora anunciou e copatrocinou uma denúncia contra o candidato que seria o mais votado nas primárias da Frente Ampla (e de fato foi), acusando-o de ter tido relações sexuais com uma mulher trans sem pagar pelo serviço e de exercer violência contra ela. Feita no contexto pré-eleitoral, a nova acusação criou um grande pandemônio, mas logo depois a acusadora negou a acusação, e foi possível mostrar e demonstrar a falsidade da acusação e a intencionalidade do episódio. De acordo com Pablo, o novo escândalo tinha a intenção de impedir ou afetar o desempenho eleitoral da Frente Ampla, mas também é usado para atacar a lei que foi votada em anos anteriores sobre violência de gênero que inclui pessoas trans. O episódio sugere que o processo eleitoral será intenso e tenso. Ou seja, mesmo que os resultados das pesquisas sejam positivos, a democracia uruguaia também está em disputa.

Breves observações sobre a discussão final

Após as apresentações, muitas perguntas foram feitas e as respostas de Juan, Fernanda e Pablo foram bastante extensas. Um conjunto de perguntas girou em torno das distorções apontadas em relação ao governo AMLO e aos limites e possibilidades do governo Sheinbaum que tomará posse em outubro. Mas as discussões finais examinaram, acima de tudo, os problemas e paradoxos relativos a como definir esquerda e direita hoje. E, ao fazer isso, as respectivas posições desses campos em relação a algumas das principais questões das democracias atuais, como a já mencionada crise de segurança pública, mas também a corrupção. 

Embora não seja possível resumir aqui esses ricos intercâmbios, consideramos produtivo resgatar os comentários finais de Pablo Álvarez sobre o que está acontecendo no Uruguai em relação à maneira como a ultradireita se apropriou e desfigurou as concepções centrais do que é democracia. No Uruguai, a direita tem encontrado muita dificuldade para contestar a vocação democrática da esquerda e, por isso, faz esse ataque usando os exemplos de esquerdas regionais que não são democráticas. Isso também não funciona muito bem, pois a Frente Ampla assumiu uma posição crítica em relação a esses regimes, especialmente as políticas repressivas de Ortega na Nicarágua. 

No entanto, a direita e a ultradireita uruguaias estão engajadas em um forte ataque ideológico à questão da liberdade. Eles não o fazem no estilo brutal e grotesco de Milei ou Bolsonaro, mas o fazem. Em relação a essa cruzada específica, Pablo enfatizou enfaticamente que a esquerda é desafiada a abraçar a ideia de liberdade, ou melhor, a lembrar com grande vigor que a liberdade é uma ideia progressista e transformadora. Segundo ele, é urgente fazer isso porque, de alguma forma, abandonamos a liberdade como um ponto inegociável de nossa visão de mundo: “Como esquerda, não podemos defender uma ideia de distribuição, ou melhor distribuição de recursos, de mais igualdade, ou a luta contra a desigualdade, abdicando do princípio da liberdade”.  

Notas de rodapé

1 –  Veja o mapa interativo criado pela Idea International em https://www.idea.int/initiatives/the-2024-global-elections-supercycle

2 – Em diálogo com este ciclo de debates, os boletins periódicos do SPW também dedicarão atenção ao ciclo eleitoral de 2024. O primeiro abrange as eleições que decorreram entre janeiro e junho de 2023 e está disponível em https://sxpolitics.org/ptbr/politica-sexual-de-janeiro-a-junho-de-2024/13751
O segundo aponta as tendências da política sexual neste cenário de mudanças, disponível aqui https://sxpolitics.org/ptbr/politica-sexual-de-janeiro-a-junho-de-2024-parte-2/13781

3 – O mapa está disponível na nota de rodapé 1.

4 – É importante informar que, devido ao número muito baixo de cadeiras conquistadas nas eleições de 2024, o PRD perdeu seu registro eleitoral. 

5 – Disponível em: https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/Ebook-Uruguai%2020200203.pdf

Mini-bios dos palestrantes e da autora do relatório 

Juan De la Puente, advogado e cientista político, professor das Universidades San Martín e San Marco, em Lima, consultor de políticas para o Sistema das Nações Unidas, colunista do jornal La República, dirige o portal de assuntos públicos Pata Amarilla e acaba de publicar o livro La humanidad vigilada, un alegato en favor del interés público (A humanidade vigiada, um apelo a favor do interesse público). Juan tem se dedicado a oferecer uma visão panorâmica da América Latina.
Fernanda Díaz de León, que falou sobre o contexto no México, é especialista na elaboração de leis e políticas públicas com uma perspectiva de gênero e direitos humanos. Ela é professora e palestrante convidada em cursos e seminários em várias universidades do país e também em fóruns convocados por legislaturas estaduais no México. Atualmente, é Diretora de Políticas da organização Ipas Latinoamérica y el Caribe
Pablo Álvarez é cientista político, membro do Observatório MYSU, ex-legislador nacional do Uruguai, ex-diretor geral do Ministério da Educação e Cultura e, posteriormente, coordenador geral do Escritório de Planejamento e Orçamento da Presidência da República. 
Mariana Carbajal é uma jornalista, escritora, consultora de comunicação e gênero e ativista feminista da Argentina. Desde 1991, ela escreve para o jornal Página/12 sobre questões de gênero e direitos das mulheres e LGBT+ e é editora do boletim semanal Feminismos. Ela é uma das fundadoras da Red PAR, Red Periodistas de Argentina en Red por una Comunicación no Sexista, e fez parte do coletivo Ni Una Menos.


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