Sxpolitics [PTBR]

Dignitas Infinita: uma primeira leitura

Por Sonia Corrêa

Os textos do Vaticano nunca são singulares. Sempre remetem para definições anteriores, que são muito importantes para entender o substrato profundo de cada novo texto. Embora isso também se aplique à declaração Dignitas Infinita, não é possível, no contexto desta breve nota, fazer essa genealogia, mas é importante não perdê-la de vista.  O novo texto doutrinal, assim como outros que o antecedem, também tem muitas camadas. Essa nota, porém, examina apenas algumas delas.

No que pode ser considerado como sua camada principal, a declaração se dedica com muito afinco a arrolar argumentos para prevenir “as frequentes confusões” que se verificam nos dias atuais em relação ao uso do termo “dignidade”. Resgatando a relação entre dignidade e razão estabelecida por Tomás de Aquino no século 13, estabelece uma concepção de dignidade ontológica e inalienável de cada mulher e de cada homem,  afirmando que esse seria o entendimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Sobretudo, diferencia de maneira contundente esse conceito de dignidade de outras concepções como a dignidade moral, a dignidade social e a dignidade existencial, estabelecendo, com vigor, que a dignidade ontológica seria a verdadeira e que não pode jamais ser “cancelada”. 

Numa segunda camada, estabelecido esse axioma, ele é aplicado a questões candentes dos tempos de agora, como: pobreza, guerra, trabalho dos migrantes, tráfico de pessoas, mas também abuso sexual, violência contra as mulheres, aborto, gestação de substituição, eutanásia e suicídio assistido, “teoria de gênero”, mudança de sexo e violência digital.

Numa terceira camada, o texto esclarece como, na visão do Vaticano, essas realidades do mundo contemporâneo infringem sua concepção preferencial de dignidade ontológica e a-histórica. Ao fazer isso, explicita algumas definições, algumas das quais são cruciais para compreender as visões da Declaração com relação aos “problemas” citados e que vamos examinar mais de perto, ainda que de maneira preliminar: aborto, teoria do gênero e mudança de sexo. Nessa nota breve é preciso sublinhar ao menos duas dessas definições. A primeira delas afirma que:

“O ser humano não cria a sua natureza, que é dom recebido. Pode cultivar, desenvolver e enriquecer as próprias capacidades. Exercendo a liberdade para cultivar as riquezas da sua natureza, a pessoa humana se constrói no tempo. Mesmo se não é capaz de atuar com todas suas capacidades, a pessoa subsiste sempre como “substância individual… À sua imagem de Deus o criou, o homem e a mulher.  A humanidade tem uma qualidade específica que a torna irredutível à pura materialidade. A “imagem” (corporal) não define a alma ou as capacidades intelectivas, mas a dignidade do homem e da mulher.”

E a segunda desenvolve os seguintes argumentos:

(Hoje) o conceito de dignidade humana também é ocasionalmente mal utilizado para justificar uma proliferação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais estão em desacordo com aqueles originalmente definidos e, muitas vezes, são colocados em oposição ao direito fundamental à vida. Essa perspectiva identifica a dignidade com uma liberdade isolada e individualista que pretende impor desejos e propensões subjetivas particulares como “direitos” a serem garantidos e financiados pela comunidade. Entretanto, a dignidade humana não pode se basear em padrões meramente individualistas, nem pode ser identificada com o bem-estar psicofísico do indivíduo. Em vez disso, a defesa da dignidade humana baseia-se nas exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem da arbitrariedade individual ou do reconhecimento social.

Em seguida, o texto retorna à Declaração Universal de 1948 para afirmar que, nos seus desdobramentos posteriores, o conceito de dignidade humana tem sido usado de modo abusivo para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, não raro em contraste com o direito fundamental à vida, como se fosse devido garantir a expressão e a realização de toda preferência individual ou desejo subjetivo. Nessa sessão, o texto enfatiza o caráter relacional da dignidade humana – o que é muito positivo, mas ao fazê-lo uma vez mais fustiga o que define como “liberdade autorreferencial e individualista, que pretende criar os próprios valores, prescindindo das normas objetivas do bem e da relação com os outros seres viventes”.

O que diz a declaração sobre aborto?

A argumentação desenvolvida para condenar o aborto se distingue de documentos anteriores sobre a matéria por não recorrer abertamente à gramática da “cultura de morte” que prevaleceu nos discursos da Igreja sobre aborto desde ao menos os anos 1990. Mas critica o uso da terminologia “interrupção da gravidez” como sendo um eufemismo cujo objetivo é ocultar a realidade de que o aborto é que deve ser nomeado como tal, ou seja: “ O aborto provocado é a morte deliberada e direta, por qualquer meio que seja, de um ser humano na fase inicial de sua existência, desde a concepção até o nascimento.” 

Esse apelo a chamar as coisas pelo “próprio nome” se faz urgente, segundo a Declaração porque: “A aceitação do aborto na mente popular, no comportamento e até mesmo na própria lei é um sinal revelador de uma crise extremamente perigosa do senso moral, que está se tornando cada vez mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando o direito fundamental à vida está em jogo”. Dito de outro modo, o foco principal do texto é o que temos nomeado como a despenalização social do aborto e, assim sendo, é possível prever um forte investimento do Vaticano e seus aliados no sentido de conter, por todos os meios possíveis, essa dinâmica de transformação legal e cultural.

O que diz a declaração sobre a “teoria do gênero” e “mudança de sexo”? 

No que diz respeito às seções específicas sobre esses dois temas, há que fazer duas observações iniciais. A primeira delas é que texto usa o termo teoria de gênero e nunca recorre diretamente à categoria acusatória “ideologia de gênero”, gravada em textos papais anteriores e que, desde o começo dos anos 2010, é a língua franca das políticas antigênero. Vale dizer que o termo foi usado já na erupção primeira das mobilizações populares contra o “gênero’ na Manif pour Tous, na França (2013), e em seguida na Eslovênia. Mas, de maneira geral, permaneceu relativamente marginal aos textos doutrinais da igreja. 

Esse giro semântico definitivo que poderia eventualmente ser visto como suavização da abordagem doutrinal tem, ao meu ver, outro sentido. Sinaliza para uma firme disposição do Vaticano de incitar embates mais frontais com a produção de conhecimento crítico sobre gênero, cujas potenciais consequências devem ser objeto de muita atenção.

A segunda observação é que a elaboração acerca de por que a “teoria do gênero” seria uma forma de conhecimento antagônica à dignidade ontológica começa com uma ressalva curiosa. Segundo o texto, “cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, cuidando de evitar “toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência”. Ou seja, em consonância com muitas das declarações de Bergoglio, o texto expressa tolerância em relação à homossexualidade. Mas em seguida volta, sem maior pudor, a elucubrar sobre a “problemática dos novos direitos”:

“..tentativas realizadas nas últimas décadas para introduzir novos direitos, deram espaço a colonizações ideológicas, entre as quais tem um papel central a teoria de gênero (gender), que é perigosíssima porque cancela as diferenças na pretensão de tornar todos iguais.”   

Em seguida, esclarece por que na visão do Vaticano, a “teoria de gênero” é incompatível com a dignidade ontológica:

 “(Essa incompatibilidade vem de que a teoria) tenta  negar a diferença sexual que é a fundante, maior, mais bela e potente (diferença) pois na dualidade homem-mulher, alcança-se a mais admirável reciprocidade e é fonte daquele milagre, que é a chegada de novos seres humanos ao mundo”.

Apenas depois dessas muitas elaborações o texto finalmente recorre ao termo ideologia para explicar que a teoria de gênero é ideológica porque «propõe uma sociedade sem diferenças de sexo, esvaziando a base antropológica da família” e que é inaceitável”.

E, retomando o argumento central do documento sobre gênero na educação, publicado em 2019, adiciona: “ideologias deste tipo tentam impor-se como um pensamento único que determina a educação das crianças”.

Essas elaborações não se referem apenas à “teoria do gênero”, mas constituem o preâmbulo dos argumentos tecidos pela Declaração para condenar radicalmente a “mudança de sexo”. Em relação à redesignação de gênero, o texto afirma de maneira contundente que a dignidade do corpo não é inferior à da pessoa como tal e, por essa razão, qualquer intervenção de mudança de sexo ameaça a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção e que se expressa através de sua corporalidade. A declaração considera, porém, legítima a correção cirúrgica de pessoas intersexo (no mais das vezes crianças) para ajustar seus corpos à norma dominante da diferença sexual binária, mesmo quando esse procedimento seja uma intervenção sobre corpos cujas características também foram definidas no momento da concepção.

A modo de conclusão

Embora enquadrado num arcabouço mais amplo que situa o aborto, a teoria do gênero e a mudança de sexo no mesmo patamar que algumas das grandes crises do mundo contemporâneo, o texto doutrinal de Francisco de fato reitera elucubrações de Ratzinger dos anos 1980 que mais tarde dariam origem ao “fantasma do gênero”. Isso significa que, de fato, resgata e aggiorna (atualiza), como têm feito sistematicamente os pensadores do Vaticano, concepções de Tomás de Aquino sobre diferença sexual e procriação, posteriormente convertidas na Doutrina de Trento, do século 16.

Quando situamos os conteúdos da Declaração no cenário conflagrado das políticas antigênero dos nosso tempos não é excessivo considerar que sua intenção é reposicionar o Vaticano como condottiere dessas políticas antigênero e ao mesmo tempo posicionar essa política regressiva no marco mais amplo da visão “progressista” da Santa Sé sobre outras questões contemporâneas. Se assim é, temos muitas e árduas tarefas pela frente.

Reva Siegel, teórica do direito da Universidade de Yale, num longo artigo publicado em 2008, examinou a fundo o tema da dignidade como principio organizador de direitos constitucionais (portanto direitos humanos). Fez isso analisando as complexidades e ambiguidades do recurso ao princípio de dignidade de que a Suprema Corte Americana lançou mão, desde os anos 1970, para decidir sobre casos relativos ao aborto e à sexualidade. Algumas de suas elaborações oferecem pistas iniciais para enfrentar essas tarefas. Um exemplo disso é seu resgate de argumentos articulados pelo juiz Kennedy (um liberal mas não exatamente um progressista) no  caso Lawrence Vs. Texas  que, em 2003,aboliu a leis de sodomia até então vigentes nos EUA. Segundo a decisão favorável de Kennedy à revogação dessa norma criminal, a Constituição americana garantia a liberdade individual de escolha de um curso de vida e de não viver como instrumento da vontade de outros (entendo eu que ele se referia tanto a pessoas quanto a instituições). Seria essa definição um ponto de partida possível para interrogar as visões tutelares e a-históricas de dignidade ontológica que a declaração Dignitas Infinita visa impor sobre o direito ao aborto, a teoria do gênero e a mudança de sexo?



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo