Sxpolitics [PTBR]

O pronatalismo ressurge, por Françoise Girard

Publicado originalmente em inglês, por Françoise Girard
Tradução: SPW

O discurso pronatalista está subitamente de volta em todo o mundo. Líderes políticos e religiosos torcem as mãos sobre “invernos demográficos”, “nações enfraquecidas” e pessoas que preferem ter animais de estimação (Papa Francisco), enquanto repreendem mulheres e casais por não terem mais filhos. Até que ponto devemos estar preocupados?

Sejamos claros… O pronatalismo sempre foi um dos principais assuntos dos especialistas e políticos de extrema-direita, uma vez que a composição demográfica da nação é sempre uma das suas principais preocupações. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, tem liderado o tema na Europa há mais de uma década, fazendo discursos frequentes em que combina pronatalismo com opiniões anti-imigração, racistas e homofóbicas. Eis o que Orbán disse em 2019, num discurso transmitido nacionalmente pela televisão: “Não precisamos de números, mas de crianças húngaras. Nas nossas mentes, a imigração significa rendição. Se nos resignarmos ao fato de sermos incapazes de nos sustentar, mesmo biologicamente, ao fazê-lo admitimos que não somos importantes nem para nós mesmos.” Em 2022, ele reiterou: “Parte do quadro da década de guerra que temos pela frente será constituído por ondas recorrentes de política suicida no mundo ocidental. Uma dessas tentativas de suicídio que vejo é o grande programa europeu de substituição da população, que procura substituir as crianças cristãs europeias desaparecidas por migrantes, por adultos vindos de outras civilizações”.

Os ataques às pessoas LGBTQ e à “ideologia de gênero” têm destaque nas políticas de Orbán, uma vez que as considera uma ameaça à família heterossexual e à maternidade. Em 2020, o governo de Orbán alterou a Constituição para definir a família como resultante do casamento entre um homem e uma mulher, para declarar que “as crianças têm direito à sua identidade de acordo com o sexo de nascença” (quem disse que não tinham?) e para obrigar as crianças a serem educadas “de acordo com os valores baseados na identidade constitucional da nossa pátria e na cultura cristã”. Ufa.

O governo de Orbán oferece benefícios fiscais e empréstimos a juros baixos para famílias com filhos, bem como tratamento gratuito de fertilização in vitro. As mulheres que têm quatro ou mais filhos estão isentas do imposto de renda para toda a vida. A taxa de natalidade húngara é mais elevada do que a dos países vizinhos da Europa Central e de Leste, mas, mesmo depois de tudo isto, continua um pouco acima de 1,5 filhos por mulher, muito abaixo da taxa de substituição de 2,1.

Orbán tornou-se previsivelmente um queridinho da cruzada internacional de extrema-direita para restabelecer as famílias numerosas. Em setembro de 2023, Orbán organizou a 5ª Cúpula Demográfica de Budapeste, que mais uma vez reuniu acadêmicos de extrema-direita e figuras religiosas para discutir como persuadir as mulheres brancas europeias a terem mais filhos e como restaurar os papéis tradicionais de gênero. Desta vez, juntaram-se a eles várias figuras políticas proeminentes. O canadense Jordan Peterson, a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e o presidente sérvio Aleksandar Vučić lamentaram a perda dos “valores tradicionais da família” e sublinharam os perigos da imigração, ao mesmo tempo em que propuseram poucas medidas que pudessem realmente levar as pessoas a ter mais filhos.

De acordo com Peterson, “a estrutura adequada de criação em torno do bebê são pais unidos e combinados, isto é, homem e mulher. Todas as alternativas são piores… Solteiros, divorciados e homossexuais desviam-se disso”. Andreas Kinneging, professor de filosofia na Universidade de Leiden, concordou: “A nossa tarefa é descobrir qual é o papel do homem e qual é o papel da mulher, e quais os papéis que melhor correspondem à sua natureza. Um deles trabalha e o outro cuida dos filhos”. Por sua vez, afirmou de forma muito clara: “Para nós, a demografia não é apenas mais uma das principais questões da nossa nação [italiana]. É a questão da qual depende o futuro da nossa nação”.

Esta retórica sexista e odiosa também não fez subir as taxas de natalidade europeias fora da Hungria, como facilmente se descobre. As taxas de natalidade europeias têm estado abaixo de 2,1 há décadas, em todos os 27 países (exceto na França, por um breve período, entre 2005 e 2014). Mas estas ideias tiveram efeitos muito nefastos no tratamento dos imigrantes e daqueles em busca de asilo e contribuíram para discursos e políticas homofóbicas, transfóbicas, racistas, misóginas e anti-aborto em toda a União Europeia e além.

Mais a leste, o o presidente russo Vladimir Putin tem denunciado há anos a “ideologia de gênero”, bem como atacado grupos LGBT. Mais recentemente, Putin também aderiu ao movimento pronatalista, possivelmente por preocupação com as crescentes perdas da Rússia no seu ataque à Ucrânia. Num discurso proferido em fevereiro de 2024, na Assembleia Federal, Putin argumentou que “alguns países destroem deliberadamente as normas de moralidade e as instituições da família e empurram povos inteiros para a extinção e a degeneração. Mas nós escolhemos a vida.” Diga isso aos ucranianos, Vladimir.

No outono de 2023, foi lançada uma campanha anti-aborto pelas autoridades russas em parceria com a Igreja Ortodoxa Russa. Há muito Putin parecia relutante em restringir o acesso ao aborto, que era o principal método de planejamento familiar nos tempos soviéticos. Já não é mais o caso. “A população pode ser aumentada como num passe de mágica: se resolvermos este problema e aprendermos a dissuadir as mulheres de abortar, as estatísticas aumentarão imediatamente”, disse o Patriarca Kirill, o influente chefe da Igreja Ortodoxa Russa, próximo de Putin.

Embora as leis de aborto na Rússia continuem a ser liberais no papel, foram adotadas várias outras medidas. O Ministério da Saúde elaborou diretrizes sobre a melhor maneira de dissuadir as mulheres a fazerem um aborto. Os médicos vão agora dizer às adolescentes grávidas que pais jovens se relacionam melhor com os filhos “porque são praticamente da mesma geração”. A uma mulher solteira será dito que “ter um filho não é obstáculo para encontrar um parceiro de vida”.

Em novembro de 2023, o Patriarca Kirill liderou um esforço para proibir os abortos em clínicas privadas, onde se realizam um quinto de todos os abortos, geralmente com pílulas abortivas. Até o momento, os governadores de dez regiões russas responderam ao apelo, com as regiões da Crimeia e de Kursk liderando o grupo. O vice-governador de Kursk, Andrei Belostotsky, considerou este “um acontecimento significativo”, porque quase todas as mulheres que desejem interromper a gravidez terão agora de se dirigir aos hospitais públicos, onde as autoridades “trabalharão ativamente” para fazê-las mudar de ideias.

Ao mesmo tempo, vários parlamentos regionais instituíram sanções por “encorajamento do aborto” e “promoção do aborto”, deixando profissionais médicos sem saber como aconselhar as pacientes sobre as suas opções.

Paralelamente, o Ministério da Saúde da Rússia está restringindo a venda de mifepristona e misoprostol, as duas substâncias conhecidas como pílulas abortivas. A mifepristona isolada é normalmente vendida nas farmácias russas para uso de contracepção de emergência nas primeiras 72 horas após uma relação sexual desprotegida. A partir de setembro de 2024, estes medicamentos serão acrescentados a um registo de substâncias sujeitas a “registro de artigos e quantidades”, normalmente reservado a substâncias controladas, como os entorpecentes. Por isso, fabricantes, farmácias e instituições médicas serão obrigados a registar a distribuição e a venda destes comprimidos em bases de dados especiais. As farmácias passarão também a necessitar de uma receita médica especial, mesmo para fornecer a mifepristona para contracepção de emergência. (O paralelo com as restrições passadas impostas à mifepristona nos EUA – que a direita americana está tentando convencer a Suprema Corte reintroduzir – é inconfundível).

A Duma (Parlamento) da Rússia também está analisando um projeto de lei que visa proibir a “promoção da ausência de filhos” (!) nos currículos escolares. O projeto alega que a ausência voluntária de filhos “vai contra os valores tradicionais da família e a política estatal da Federação Russa”. Alguns corajosos grupos de mulheres russas protestaram contra todas estas medidas repressivas.

Em novembro de 2023, o Presidente chinês, Xi Jinping, comandou o Congresso Nacional das Mulheres, apelando às mulheres chinesas para que “promovam um novo tipo de casamento e uma nova cultura de procriação”. O que ele queria dizer, obviamente, era que as mulheres chinesas deveriam voltar a abraçar o papel de mãe e esposa. A China abandonou a política do filho único em 2015. Mas até o ano passado as autoridades chinesas ainda falavam da igualdade de gênero e da auto-realização das mulheres na força de trabalho como objetivos políticos nacionais. Agora já não. No Congresso, o Presidente Xi não fez menção aos direitos das mulheres. Em vez disso, exigiu que as líderes femininas “contassem boas histórias sobre as tradições familiares e orientassem as mulheres para que desempenhassem o papel único de levar adiante as virtudes tradicionais da nação chinesa”.

Atualmente, as políticas e práticas oficiais procuram persuadir as mulheres chinesas a manter o casamento e a ter filhos. Os divórcios só podem ser finalizados após um período de espera de 30 dias, e 80% dos pedidos de divórcio apresentados pelas mulheres são agora negados na primeira tentativa, mesmo quando há provas de abuso doméstico por parte do parceiro masculino.

Xi tem abordado as feministas com uma repressão particular, prendendo cinco ativistas proeminentes em 2015 e censurando debates sobre os direitos das mulheres, a violência baseada no gênero e a discriminação. Não é de surpreender que as jovens chinesas não tenham acatado as ordens da liderança, com o número de casamentos atingindo um nível baixo recorde (a porcentagem de mulheres chinesas urbanas com idades entre os 25 e os 29 anos que nunca se casaram passou de 8,6% em 2000 para 40,6% em 2020). Uma vez que a maternidade na China está intimamente ligada ao estado civil, a tendência aponta claramente para novas reduções drásticas das taxas de natalidade.

Quando as jovens chinesas são entrevistadas sobre a situação, falam de incerteza econômica, mas também das normas patriarcais profundamente enraizadas que as obrigam a suportar o peso dos cuidados com as crianças, os idosos e a manutenção da casa, com pouca e mesmo decrescente proteção legal no casamento. Em 2011, o Supremo Tribunal Popular chegou a decidir que, em caso de divórcio, o valor da casa da família deixaria de ser dividido entre os cônjuges e passaria a ser atribuído à pessoa cujo nome consta da escritura – normalmente o homem -, afastando ainda mais as mulheres do matrimônio. As mães que ficam em casa entraram em pânico, como relatou Elgar Yang, 24 anos, jornalista em Xangai, num artigo recente do New York Times: “Em vez de terem mais cuidados e proteção, as mães tornam-se mais vulneráveis ao abuso e ao isolamento”. Dada a antiga vontade da China de impor a política do filho único através de medidas invasivas e brutais, as mulheres chinesas estão, obviamente, preocupadas com a possibilidade de táticas semelhantes serem novamente empregadas para negar o controle sobre seus corpos e a fertilidade.

Nos Estados Unidos, a extrema-direita, ou seja, a base do Partido Republicano, também tem se dedicado com afinco ao pronatalismo nacionalista branco, sobrepondo-o à sua base de fervor anti-aborto.

Charlie Kirk, o fundador da Turning Point USA, a ala juvenil do movimento MAGA, tem se mostrado obcecado com a fertilidade das mulheres já há algum tempo. Num evento recente da igreja, Kirk (que tem 30 anos) afirmou que as mulheres não deveriam usar a pílula contraceptiva porque “o controle da natalidade realmente estraga os cérebros femininos”. Alegando que a pílula “aumenta a depressão, a ansiedade [e] a ideação suicida”, atribuiu a culpa dos padrões de voto das mulheres à contracepção hormonal. “Cria jovens e mulheres muito zangadas e amargas”, argumentou Kirk. “Depois, essa amargura manifesta-se num partido político que é o partido da amargura. Quero dizer, o Partido Democrata [sic] é todo sobre ‘tragam a sua amargura e, vocês sabem, nós daremos coisas grátis'”.

O ex-presidente dos EUA Theodore Roosevelt – que cunhou a expressão “suicídio racial” no início do século XX, em resposta à crescente imigração da Ásia e da Europa do Leste – condenou as mulheres brancas da classe alta que tinham poucos ou nenhum filho como sendo cheias de “maldade, frieza e coração superficial”. Ele se sentiria em casa num evento do Turning Point! E o ex-presidente Donald Trump, quando diz que os imigrantes que atravessam a fronteira sul dos EUA estão “envenenando o sangue da América” e pergunta por que as pessoas de “países simpáticos como a Dinamarca e a Noruega” não estão imigrando para os EUA, está apenas deixando clara a supremacia branca subjacente aos discursos de Kirk.

Mas, Charlie Kirk, não é por isso que as jovens estão amarguradas e vão votar em novembro. Estamos vendo o que você está fazendo, preparando o caminho para o ataque frontal do MAGA aos contraceptivos. É claro que o Partido Republicano pretende continuar a fazer absolutamente nada para ajudar as famílias, seja através de cuidados infantis acessíveis, licença parental paga, créditos fiscais para crianças ou cobertura universal de saúde. Por isso, vamos continuar a tomar pílulas anticoncepcionais.

Pois bem. Você pode até argumentar que, até aqui, se trata de atores bem conhecidos da extrema-direita e do autoritarismo empenhados em controlar o corpo e a sexualidade das mulheres para servir a objetivos nacionalistas ou racistas, mas o que dizer do recente apelo de Emmanuel Macron a um “rearmamento demográfico” para “reforçar a França”? Num discurso proferido em janeiro de 2024, o presidente francês expressou a intenção de “relançar a natalidade” através da reforma da licença parental e do combate à infertilidade. Para além das metáforas bélicas perturbadoras (será o útero uma espécie de arma?), ver uma figura de centro-direita como Macron falando em termos acentuadamente pronatalistas surpreendeu-me e deixou-me preocupada.

Certamente, Macron está plenamente consciente da crescente influência na França da “teoria da substituição” (a afirmação de que os brancos “nativos” estão sendo deliberadamente substituídos por pardos e negros “estrangeiros”), uma vez que este foi um dos principais temas da fracassada campanha presidencial do candidato de extrema-direita Eric Zemmour contra Macron em 2022. Ele também sabe, sem dúvida, que a estridente propaganda pronatalista no período pós-guerra na França foi alimentada pela oposição racista à vinda para a metrópole de pessoas negras e pardas das antigas colônias francesas. Isso não soa bem.

As organizações feministas, de defesa da saúde e outras organizações de esquerda denunciaram a mudança de rota de Macron para o pronatalismo e as suas metáforas bélicas: “Não, os nossos ovários não vão para a guerra. Os corpos das mulheres não devem ser instrumentalizados, literal ou figurativamente, a serviço da nação ou de um esforço de guerra. A ação pública deve ser motivada pelos direitos de cada indivíduo e pela procura da igualdade de gênero”, escreveu a Equipop, um grupo de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, num feroz comunicado de imprensa.

Graças às bravas feministas francesas que tornaram possível esta mudança, a liberdade de abortar está agora consagrada na Constituição francesa, e não espero que Macron ataque a contracepção, a educação sexual ou as pessoas LGBTQ. No entanto, ao falar de taxas de natalidade como chave para a força da nação, Macron acena para as opiniões da base de direita de Marine Le Pen e de outros eleitores tradicionais, como os católicos, nomeadamente às opiniões abertamente islamofóbicas, autoritárias e nacionalistas brancas e à obsessão com o fato de a França não produzir o “tipo certo” de bebês. Isto é perigoso. O fato de Macron utilizar este discurso xenófobo só pode abrir caminho ao Rassemblement National de Le Pen e fazer com que ela pareça menos extremista. Se (ou melhor, quando?) o partido de Le Pen chegar ao poder, os úteros das mulheres racializadas e migrantes estarão, sem dúvida, em jogo.

Vamos nos manter vigilantes quanto aos corpos e direitos de quem está sendo controlado nestes sonhos demográficos febris. Lembremo-nos de que se as redes de segurança social precisam de mais financiamento, podemos acolher os imigrantes e tributar o grupo cada vez maior de milionários, bilionários e, em breve, trilionários nos Estados Unidos, na Europa, na China, na Rússia e em outros países. E se o argumento para mais nascimentos se baseia na necessidade de munição para canhão, então claramente já passou da hora da paz.

Em solidariedade com ativistas da justiça e liberdade reprodutivas e com os ovários livres em todos os lugares,

FG.



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo