Em 4 de abril de 2024, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou a primeira resolução (A/HRC/55/L.9) sobre a discriminação, violência e práticas prejudiciais contra as pessoas intersexo. Trata-se de um fato extraordinário, pois pela primeira vez numa negociação intergovernamental foi debatida a violação sistemática dos direitos humanos das pessoas com variações inatas em suas características sexuais, em particular crianças, estabelecendo-se um consenso sobre a legitimidade e a urgência de coibição dessas violações e proteção dos direitos humanos das pessoas intersexo. Num post feito no Facebook, Mauro Cabral, filósofo e ativista intersexo argentina que lidera o projeto sobre despatologização intersexo coordenado pela IHRA (Intersex Human Rights Australia) e pelo grupo de trabalho Justiça Intersexo, comentou a adoção da resolução nos seguintes termos:
“O movimento intersexual surgiu em meados da década de 1990… Hoje conseguimos a primeira resolução sobre intersexo nas Nações Unidas. E, é verdade, já se passaram 30 anos. Somos um movimento pensado, organizado e liderado por pessoas intersexo. Lutamos para que ninguém mais sofra as humilhações que nós sofremos e para que nosso sofrimento seja julgado. Nos 30 anos que se passaram, conseguimos sair da sala de cirurgia, fazer perguntas e encontrar respostas, construir um movimento, forjar alianças, afirmar nossa existência, criar visibilidade e escuta onde antes havia apenas escuridão e silêncio. Quem sabe: talvez até consigamos ver o fim do horror da vida.”
A resolução – apresentada pela Finlândia, África do Sul, Chile e Austrália – recomenda que os estados membros da ONU tomem medidas para alcançar os mais altos níveis de saúde e integridade corporal e mental da comunidade intersexo. O texto manifesta grande preocupação quanto às violências às quais as pessoas intersexo são submetidas, em especial intervenções médicas para “ajustamento corporal ao gênero” que são desnecessárias ou adiáveis e que, como apontado em 2016 pelo Relator Especial Juan Mendéz, infringem a Convenção Internacional de Prevenção da Tortura. A resolução também solicita ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU que elabore um relatório sobre políticas e leis discriminatórias, atos violentos e práticas prejudiciais a pessoas intersexo em todo o mundo. O texto final foi objeto de 23 abstenções, majoritariamente de países africanos, asiáticos e islâmicos, mas não houve nenhum voto contrário.
Como relatou Jamil Chade em sua coluna no UOL, rompendo uma vez mais com diretrizes de política externa adotadas pelo governo Bolsonaro, o Brasil – que uma vez mais é membro do CHD ONU – apoiou vigorosamente a resolução. Num discurso veemente que foi elogiado por ativistas intersex que participavam da sessão, o embaixador brasileiro, Tovar Nunes da Silva, enfatizou a urgência de garantir às pessoas intersexo direitos humanos fundamentais e lutar contra violações que sofrem. A notícia foi muito bem recebida pela comunidade brasileira Intersexo. Segundo Ariel Modesto Vieira, doutor em saúde coletiva e diretor da Intersexo Brasil:
“É uma celebração ver a Organização das Nações Unidas expressando grande preocupação com a forma como, em muitos lugares do mundo, os direitos de integridade corporal são violados por cirurgias não consentidas, que invadem as vidas das pessoas Intersexo, sem preocupação com o seu futuro ou sua saúde física e mental. Sem considerar que essas cirurgias, inclusive, violam o direito ao prazer sexual. Mais alegria ainda é saber que o Brasil é signatário da resolução. Um Estado que, no passado não muito distante, não reconhecia a existência e o direito das pessoas Intersexo. Como disse o ministro Sílvio Almeida: “As pessoas Intersexo têm valor e importância para o Estado brasileiro”. Isso mostra que nossa luta não tem sido em vão, mesmo quando ainda temos muito a conquistar nesse país.”
Também em 4 de abril de 2024, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul levou ao Conselho Federal de Medicina uma recomendação que requer a revogação ou anulação da Resolução CFM 1.664/03, que cauciona cirurgia precoces para ajustar sexo e gênero de crianças intersexo e trata a intersexualidade como patologia. Trata-se um instrumento que o MPF utiliza para coibir violações de direitos devidamente constatadas. A recomendação em questão retoma documentos nacionais e internacionais que tratam da comunidade intersexo para basear sua posição, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção sobre os Direitos da Criança – assinada e ratificada pelo Brasil, o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/92) e, em especial, as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no documento Avances y Desafíos hacia el reconocimiento de los derechos de las personas LGBTI en las Américas”, de 2018. Caso a recomendação não seja atendida, o MPF poderá encaminhar uma Ação Civil Pública requerendo a suspensão ou revogação da Resolução 1.664/03. Ou seja, mais uma boa nova a ser celebrada.
Para saber mais, acesse:
- Brasil reverte posição bolsonarista e vota na ONU por pessoas intersexo
- United Nations addresses the human rights of intersex persons in ground-breaking resolution – ILGA World
- Na ONU, Brasil reverte decisão de Bolsonaro e assina resolução de proteção de pessoas intersexo – Diversidade – CartaCapital
- Conselho da ONU aprova resolução inédita para combater violência contra pessoas intersexo – Opera Mundi
- United Nations Passes Groundbreaking Intersex Rights Resolution