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Iugoslávia foi pioneira na constitucionalização do direito ao aborto muito antes da França

Uma introdução muito pessoal ao artigo

Sonia Corrêa

Ao longo da última década, em várias ocasiões escrevi sobre a trajetória histórica da descriminalização do aborto para, entre outras coisas, desestabilizar a percepção corrente, porém equivocada, de que as primeiras descriminalizações do aborto ocorreram nas sociedades ocidentais industrializadas, ou seja, Europa e Estados Unidos, a partir dos anos 1960. Esse percurso, de fato, começou com a reforma aprovada na Rússia, em 1920, três anos depois da revolução de 1917. A ela se seguiram, na primeira metade do século 20, outras três reformas pouquíssimo conhecidas: a ampliação de permissivos legais no estado mexicano de Yucatán em 1926, a descriminalização uruguaia2 entre 1934 e 1938, e a breve descriminalização catalã, no ano de 1936, derrubada pela vitória do Franquismo. 

Quando a lei catalã caiu, na União Soviética, a lei de 1920 havia sido revogada por Stalin, ficando o direito ao aborto restrito ao risco de vida das mulheres.  Mas apesar desses reveses, três dessas quatro leis pioneiras aconteceram em contextos socialistas, e a correlação seguiria seu curso, pois, entre 1945 e 1960, quase todos os países que eliminaram, total ou parcialmente, as restrições ao aborto eram socialistas. Segundo o que li para escrever minhas notas sobre o assunto, as duas primeiras reformas legais desse período haviam ocorrido no Japão, em 1948 – por imposição da ocupação americana e cujos objetivos eram antinatalistas – e a reforma Soviética de 1955 que, em linhas gerais,  restabeleceu os permissivos da lei de 1920. Essa legislação comunista iria influenciar mudanças legislativas sequenciais na Europa do Leste, como por exemplo a Iugoslávia em 1974, mas também na China, no Vietnã e em Cuba, onde a lei foi reformada em 1965. 

Eu estava em Belgrado no dia 8 de março de 2024 quando o parlamento francês constitucionalizou o direito ao aborto. Uma viagem que instigava muitas memórias pessoais, pois conheci a cidade em 1973, cruzando por terra o que era então a Iugoslávia e, desde então, nunca havia voltado. A notícia da constitucionalização do aborto na França, por sua vez, evocou as manifestações, iniciativas e debates de 1974 que desaguariam na primeira reforma francesa da lei do aborto. Mas, por estar casualmente em Belgrado em março de 2024, descobri que a história, que tantas vezes contei sobre a descriminalização do aborto, estava errada. Da mesma forma que é incorreto afirmar que na França, pela primeira vez na história, o direito ao aborto foi gravado num texto constitucional, mesmo quando no contexto atual essa definição seja extraordinária e muito relevante, inclusive porque foi apoiada por um arco muito plural de forças políticas. Em Belgrado, aprendi que a  Iugoslávia descriminalizou o aborto em 1952, três anos antes da segunda reforma soviética e que, em 1974, como relata Tanja Ignjatovic no artigo do Balkan Insight que agora traduzimos, esse direito foi constitucionalizado.

Disponibilizar essa informação contribui para superar o viés que, desde muito, borra a anterioridade e relevância das reformas que descriminalizaram o aborto no mundo socialista. Reformas que foram não só pioneiras, como têm sido muito resilientes. São exceções a Romênia que, sob o regime de Ceaucescu (1945-1989), proibiu radicalmente o aborto, e a Polônia, onde o direito ao aborto se viu ameaçado desde os anos 1990.  Mas, nos países que um dia foram a Iugoslávia, apesar da fratura brutal acontecida nos anos 1990, o aborto continua legal. Há muitas barreiras de acesso e as leis estão hoje sendo atacadas, mas não estão tão drasticamente ameaçadas como em outros contextos. Mesmo na Rússia e Hungria, onde as políticas antigênero e familistas são prioritárias, só muito recentemente Putin e Orbán têm alvejado as leis adotadas na era soviética.

Finalmente, no Brasil de 2024, resgatar esse vínculo histórico entre socialismo e direito à autonomia reprodutiva também tem o sentido de lembrar que o direito ao aborto não contradiz pautas de justiça econômica e social como soem argumentar  vozes situadas à esquerda do espectro político. Como mostra esse breve relato, restringir e proibir o aborto tem sido no mais das vezes política de regimes autoritários ou de ultradireita. 

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Iugoslávia foi pioneira na constitucionalização do direito ao aborto muito antes da França

A inclusão do direito das mulheres ao aborto na Constituição francesa é significativa e bem-vinda – mas não é exatamente uma decisão “pioneira”, como assim tem sido chamada.

Tanja Ignjatovic1

Publicado originalmente no Balkan Insight
tradução: SPW

A recente decisão do Parlamento francês de incluir o direito ao aborto na Constituição tem sido recebida com emoção por mulheres e ativistas feministas. Embora a França tenha legalizado o aborto em 1975, acreditava-se que uma disposição constitucional tornaria este direito irreversível. Foi considerado um “passo revolucionário”, sendo a França saudada como o “primeiro país do mundo a consagrar o direito ao aborto na sua Constituição”, tornando-se assim “pioneira na garantia das liberdades relacionadas com o aborto”.

Nos tempos atuais, a decisão do parlamento francês é, sem dúvida, significativa. Tem sido apontada como uma reação à decisão de 2022 da Suprema Corte dos Estados Unidos, que anulou a decisão Roe v. Wade, que havia garantido o direito ao aborto até a 24ª semana de gravidez desde 1973. Na sequência desta decisão, vários estados proibiram ou restringiram significativamente o acesso ao aborto. Essa conjuntura serve para nos lembrar a todas que, uma vez alcançados, os direitos das mulheres (em qualquer domínio) não são invioláveis e irreversíveis.

Na França, a emenda constitucional, proposta pelo partido de esquerda La France Insoumise, foi aprovada por ampla maioria, incluindo os votos de representantes do partido de extrema-direita, o Rassemblement Nationale. Segundo a proposta de reforma, “a lei estabelece as condições em que as mulheres são livres para recorrer ao aborto, que é por ela garantido”. A decisão está alinhada com a opinião maioritária da cidadania francesa e foi apoiada por mais de 80%  das pessoas ouvidas em pesquisas de opinião. 

Mas voltemos à afirmação de que a França é o “primeiro país do mundo” a consagrar este direito na sua Constituição. Vivemos num país, sucessor da ex-Iugoslávia, que já tinha este direito na sua Constituição desde 1974. Antes mesmo desta data, uma proposta para legalizar o aborto (por razões não médicas) surgiu em 1935, no 17º Congresso dos Médicos Iugoslavos, motivada pelo grande número de abortos ilegais, praticados por indivíduos sem formação e em condições insalubres que resultavam em um número significativo de complicações de saúde e de mortes. A Igreja Ortodoxa Sérvia opôs-se de maneira veemente à proposta, que acabou não sendo adotada.

A Constituição da República Federativa da Iugoslávia de 1974 afirmava que: “É um direito do ser humano decidir livremente sobre o nascimento de filhos. Este direito só pode ser restringido para a proteção da saúde”. A Sérvia manteve este direito na sua Constituição de 2006, que estabelece o seguinte: “Todas as pessoas têm o direito de decidir livremente sobre o nascimento dos filhos”, embora um ano antes, na nova Lei da Família, a disposição seja a seguinte: “A mulher decide livremente sobre o parto”. As diferenças nas formulações linguísticas são importantes para nós? A julgar pelo atual ataque organizado à disposição relativa à linguagem sensível ao gênero na Lei da Igualdade de Gênero, as diferenças não são pequenas. Embora consideremos certamente as mulheres como seres humanos, não está inteiramente claro quem são “todas” as pessoas que podem decidir livremente sobre o parto – se não exclusivamente as mulheres.

Neste sentido, a disposição da Constituição francesa é mais precisa, uma vez que garante claramente “a liberdade das mulheres de recorrerem ao aborto”. Isso é importante também porque as leis que regulam o aborto podem mudar seja no sentido da liberalização, seja no da redução e da restrição significativa. Assim, apesar dos progressos na acessibilidade do aborto em certos países europeus (entre a 18ª e a 24ª semanas nos Países Baixos, na Suécia, no Reino Unido, na Islândia), do referendo na Irlanda, que derrubou a sua proibição, das mudanças positivas na Espanha e na França, retrocessos também têm sido notados.

Na Polônia, o Tribunal Constitucional proibiu o aborto em 2020, exceto em casos de estupro, incesto ou risco à vida da mãe. O aborto continua proibido em Malta, exceto em casos de perigo à vida da mãe ou do feto. Na Hungria, onde o aborto é legal desde 1953, uma lei de 2022 tornou o acesso mais difícil: as mulheres devem primeiro ouvir “o batimento cardíaco do feto”, com aconselhamento obrigatório. Na Croácia, em algumas instituições públicas de saúde, a intervenção não é possível porque todos os médicos manifestam objeção de consciência, sob aparente pressão da Igreja e de grupos de extrema-direita para abolir ou limitar este direito.

Considerada liberal há muito tempo, a lei sobre a interrupção da gravidez na Sérvia garante a possibilidade até a 10ª semana, a pedido de uma mulher com mais de 16 anos de idade, e mais tarde apenas nos casos em que a vida da mulher esteja em risco, em que há risco de danos físicos ou mentais graves para a criança ou quando a concepção decorre de uma infração penal. Embora legal, a intervenção por razões não médicas não está coberta pelo seguro de saúde obrigatório, o que limita o acesso, especialmente para as mulheres pobres. A informação sobre os números de abortos realizados, cuja tendência é decrescente e registra  cerca de 11.000 por ano, tem sido manipulada afirmando-se que seriam 10 ou 20 vezes superiores. 

Recordemos também uma extraordinária conferência de imprensa do presidente Vucic de 2018, em que ele propôs medidas para aumentar a taxa de natalidade, afirmando: “Quando falamos de abortos, mesmo que as organizações de direitos das mulheres fiquem zangadas, há procedimentos que deveriam ser respeitados. Como, por exemplo, mostrar à mãe um exame de ultrassom com o batimento cardíaco do bebê e deixá-la decidir depois disso. E ter com ela outra conversa antes da decisão….”

Antes disso, a Igreja Ortodoxa Sérvia já iniciara campanhas para proibir o aborto. Numa sessão ordinária de 2013, apoiou a “iniciativa de médicos religiosos” que pressionavam o Estado para proibir o aborto, exceto por razões médicas. Na sociedade, as mulheres são regularmente rotuladas de “assassinas de crianças” e a Igreja também apoia passeatas, fóruns e conferências sobre o tema. Essas mobilizações se parecem com o que acontece na Hungria e na Croácia!

Por outro lado, o Estado tem sido inoperante apesar de suas obrigações. Por exemplo, não há informações sobre medidas do Programa Nacional para a Garantia e Melhora da Saúde Sexual e Reprodutiva dos Cidadãos da República da Sérvia (adotado em 2017), muito embora todos os indicadores nesta área sejam desfavoráveis. De fato, o programa expirou e não há notícias de um novo programa. A educação em matéria de saúde e direitos sexuais e reprodutivos também não é abordada de forma sistemática, mesmo quando sua importância tenha sido reconhecida em diversas leis e documentos estratégicos. A escola raramente é uma fonte de informação e conhecimento sobre esses temas, que são necessários para as crianças e jovens, mas as propostas de programas deste tipo são ignoradas.

Portanto, a alteração constitucional na França, embora não seja a “primeira no mundo”, é importante para todas nós, mulheres e ativistas feministas. Considerando que estamos frente a um forte movimento global contrário aos direitos das mulheres, é importante colaborar, investigar e divulgar informações baseadas em dados, em oposição a teorias da conspiração e preconceitos, para lembrar e exigir que os Estados aprimorem as leis e cumpram as obrigações, para sermos ouvidas, tanto nas ruas como nos parlamentos.

 1. Tanja Ignjatovic é uma ativista dos direitos das mulheres na Sérvia e psicóloga no Centro Autônomo das Mulheres, em Belgrado.

2. No Uruguai, a descriminalização derivou do sólido liberalismo laico que, desde o começo do século, marcou a cultura política do país.



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