Ao tolerar – ou mesmo legitimar – o domínio de diretores sobre jovens atrizes, o cinema autoral foi a matriz de uma cultura do estupro à francesa, afirma o professor de sociologia e estudos de gênero num artigo publicado no Le Monde.
A França nunca põe um ponto final àquilo a que chamei, em 2011, de “a exceção sexual”. Há muito que se trata de uma exceção nacional: “Os Estados Unidos são uma guerra dos sexos; a França é uma conversa entre os sexos”. Mas quem ainda acredita neste romance água com açúcar? Havia também a exceção política: “É uma tradição aristocrática de libertinagem!”. O caso Dominique Strauss-Kahn, que expôs o presidente do Fundo Monetário Internacional como um proxeneta, quebrou o feitiço desta fábula.
No entanto, a exceção cultural persiste. Frédéric Mitterrand, então ministro da Cultura, não hesitou em declarar, em 2009 [após a detenção de Polanski na Suíça, no âmbito de uma acusação de violação de uma menor nos Estados Unidos]: “Se o mundo da cultura não apoiasse Roman Polanski, isso significaria que já não mais haveria cultura no nosso país”. Talvez estejamos a viver os últimos suspiros de um nacionalismo cultural que, amanhã, parecerá menos francês do que francófilo.
É o efeito de uma lógica que se impõe desde a eclosão do #metoo. A cada novo caso, somos avisados que é preciso separar o homem do artista. Para continuar a celebrar os seus filmes, bastaria esquecer Polanski: nada a ver com a obra! Tudo bem, mas “o mesmo corpo que viola, filma”, responde um dito feminista – e a mesma pessoa é recompensada. No entanto, os recentes questionamentos recolocam uma pergunta que parecia pertencer ao passado. A socióloga Gisèle Sapiro a formulou assim: “Podemos dissociar a obra do autor?” (Seuil, 2020). A pergunta foi atualizada, uma vez que a velha antítese entre a obra e o autor foi abalada pela recente separação entre o homem e o artista.
A precariedade é a regra
Como é que se pode separar o autor da obra quando os dois estão tão obviamente interligados? As obras de Jacques Doillon Doillon, “La Fille de 15 ans” (1989), e de Benoît Jacquot, “La Désenchantée (1990)”, referem-se tanto a uma pessoa como a uma personagem, uma atriz, mas também uma jovem, sob o olhar de um homem, o cineasta. Tanto na obra quanto na vida, são os mesmos corpos e as mesmas histórias.
Será mesmo ficção quando a vida do autor transparece tantas vezes na sua obra, com uma repetição das histórias de homens maduros e adolescentes, de figuras paternas seduzidas pela juventude? A palavra das vítimas recoloca na ordem do dia uma questão que se pensava estar resolvida desde o livro “Contre Sainte-Beuve, de Marcel Proust [publicado postumamente em 1954]: a distinção necessária entre o autor e a sua obra.
Diante da proliferação de acusações, os casos individuais tornaram-se um assunto coletivo do cinema francês. O próprio presidente do Centre National du Cinéma, Dominique Boutonnat, irá a julgamento em junho, por agressão sexual, contra seu afilhado. Cabe assim ao mundo do cinema pôr fim à exceção sexual, sob o risco de colocar em perigo a exceção cultural. Sem dúvida, estas violências permeiam toda a sociedade; contudo, é preciso levar em conta as especificidades da “família do cinema”.
A precariedade é a regra; atores e atrizes, técnicos e técnicas dependem dos caprichos do diretor e do produtor. O problema é que esta “família” funciona à base do desejo, reivindicado para justificar as escolhas desses diretores. Como correr o risco de desagradá-los? As vítimas não saberiam se queixar, nem as testemunhas protestar. Se o fizessem, não seriam chamadas para outra filmagem. O estatuto de trabalhador/a intermitente protege os diretores, desde que exista um contrato. É, portanto, um mundo do trabalho onde a dominação combina desejo e intermitência.
Apropriação sexual
Evidente que o #metoo começou em Hollywood. O que resta é uma singularidade do cinema francês que alimenta a exceção cultural: o cinema de autor. Com este protagonista, assistimos ao desenvolvimento não só de agressões e estupros, mas também de relações duradouras impostas a moças adolescentes. Elas consentiram à dominação de diretores-autores desejáveis? [A escritora e editora] Vanessa Springora nos ensinou a desconfiar da ilusão de consentimento dos menores. Com razão, o que significa consentir com os desejos de um cineasta que é também um patrão? Continuar a trabalhar ou, ao contrário, acabar na lista negra depende tão somente da boa vontade dele.
Não pensemos que o realizador francês seja um novo Pigmalião que molda a sua estátua para lhe dar vida, à maneira de Alfred Hitchcock com suas fantasias de loira fria. É mais bem como o Nosferatu que suga o sangue das suas vítimas: o vampiro que se apropria da sua juventude, das suas palavras e, por vezes, dos seus textos. Para caracterizar apropriação cultural, a feminista afro-americana bell hooks utilizava uma imagem: “comer o outro”. Aqui vamos falar de apropriação sexual.
Esta apropriação é a matriz de uma cultura da violação que faz parte da própria composição do cinema francês. Em L’Interdit, documentário de Gérard Miller [ele próprio acusado de violação e agressão sexual] de 2011, hoje resgatado, o próprio Benoît Jacquot explicava “este tráfico ilícito”. “Fazer filmes é uma espécie de cobertura para este tipo de costume”. E acrescenta, não sem orgulho: “No mundo do cinema, podemos sentir uma certa estima, ou admiração, por algo que os outros sem dúvida também gostariam de fazer. O que não é desagradável, diga-se de passagem”.
Colocando em outras palavras, o desejo de dominação alcança também escalas inferiores do cinema. Os pequenos patrões imitam os patrões na busca de carne fresca, e os cortesãos e aspirantes também sonham em sê-lo e, por que não, em comê-la. É por isso que a “família do cinema” fica tentada a juntar forças: quantos dos seus notáveis foram culpados, ou pelo menos cúmplices? Mas já não é possível, no cinema de autor, separar o homem do artista. O fim desta dissociação é uma nova viragem feminista que questiona a própria figura do autor. Talvez não seja coincidência o fato dessa viragem coincidir com o triunfo de uma cineasta, Justine Triet, que poderia encarnar uma nova articulação entre o artista e… a mulher.
Eric Fassin é professor de Sociologia e Estudos de Gênero na Universidade Paris VIII-Vincennes-Saint-Denis e membro sênior do Institut Universitaire da França. Recentemente, publicou “State Anti-Intellectualism & the Politics of Gender and Race. Illiberal France and Beyond”