por Zillah Eisenstein*
Uma meditação sobre a morte, o assassinato e a possibilidade
Eu sabia que meu corpo estava se recuperando da cirurgia quando me vi pronta para interagir com o mundo e postar no Facebook: “Sou sempre antisionista. E nunca antisemita. E sempre uma feminista antirracista contra as guerras misóginas”.
Alguns dias depois, publiquei: Zionist Trustees and Funders – Keep your hands off our Universities (Administradores e financiadores sionistas – Tirem suas mãos de nossas universidades).
Minha interpretação da crise em Gaza, e para os palestinos, é privada e profundamente dolorosa. Mas acho que o que devemos estar fazendo agora é justamente isso. Sentir tudo o que pudermos – toda a dor, a morte, o sofrimento e os ódios que parecem estar engolfando o mundo neste momento. Mas também enxergar a incrível voz global pela libertação da Palestina, que nunca foi tão sonora e ativa como neste momento.
O mundo inteiro está prestando atenção. O todo-poderoso EUA de um mundo unipolar está acabando e todos podem ver, exceto talvez os próprios EUA e Israel. Países da América Latina e do Oriente Médio se manifestam em favor de uma Palestina livre e do cessar-fogo, desafiando a arrogância de Israel e dos EUA.
Gaza e morte genocida, COVID em todo o mundo. Ódios de todos os tipos. Misoginia catalisando governos de direita. Tudo isso. Essas crises se dão em conjunto, mas também de forma distinta. Elas silenciam umas às outras, mas aprofundam a vulnerabilidade de todos seres humanos. E, como feminista socialista antirracista, devo pensar em nossos corpos e no que está acontecendo com eles. O corpo é sempre um local de luta política: migrações, abortos, o medo da morte.
Minha querida camarada/amiga Patricia Zimmermann faleceu em 18 de agosto. Fizemos manifestações e escrevemos manifestos juntas contra as guerras do Afeganistão e do Iraque e participamos de muitas lutas anti-imperialistas nos últimos 40 anos. Ela esteve comigo em todas as internações a que fui submetida para tratar um câncer causados pela mutação BRCA que é frequente na população judia Ashkenazi. Ela não estava se sentindo bem e faleceu duas semanas após o diagnóstico de um câncer de estômago muito grave. Não houve preparação para sua morte e, em seguida, ela colapsou. Algumas pessoas disseram que ela era muito jovem, que se foi muito depressa Se ela estivesse aqui, estaria pensando nos milhares de pessoas palestinas mortas também muito jovens.
Devo explicar um pouco mais. Apenas três semanas após a morte de Patty, em 10 de setembro, cheguei na emergência me contorcendo de dor devido a uma obstrução do tecido cicatricial provocado pelas cirurgias do câncer. Patty não estava comigo dessa vez, embora tivesse estado no mesmo hospital, morrendo apenas algumas semanas antes. Pensei nela e em toda a dor e tristeza do mundo. O pronto-socorro estava em crise total. Não havia médicos suficientes. Não havia leitos suficientes. Não havia nada suficiente. Então pensei em Gaza, com seus constantes bombardeios e a falta de suprimentos médicos, de água e de comida. Mas em seguida sucumbi ao meu próprio corpo e não pensei em mais nada.
Desde o atentado do Hamas em 7 de outubro, que aniquilou qualquer sonho de paz e humanidade, estou me recuperando de uma nova cirurgia. Eu odiei o que os mercadores da morte fizeram naquele dia – apagaram a humanidade das pessoas com total abandono. Esses homens eram guerreiros misóginos, que odeiam os israelenses o suficiente para se converterem em meros assassinos. Para mim, eles não têm outra identidade – para mim o inimigo é o ódio misógino, o Hamas é dele mero sintoma.
Quando seu corpo exige de você tudo para se curar, é preciso ter uma autoconsciência aguda do processo. No entanto, quando comecei a me curar, fiquei imaginando como as pessoas em Gaza, Israel e na Cisjordânia conseguem fazer isso o tempo todo sob um cerco constante. E a fome e sede em Gaza? Você já teve sede sem que houvesse água para beber? Como aguentar uma dominação completa das necessidades corporais? E depois, as bombas. O barulho. A destruição. A morte tão próxima, e continuamente presente.
Meu próprio corpo – que estava frágil e oscilando entre a consciência e não se importar com nada, inclusive comigo mesma – consumiu os primeiros dias do terror em Israel e Gaza. Amigas/os e companheiras/os tentavam lidar com esses ataques diários num mundo que está desmoronando. Mas, ainda assim, conseguiram tempo para estar presentes, para me ajudar e cuidar de mim.
A camaradagem é tudo. Como alguém pode ter esperança de vida ou paz sem amor e carinho? E, no entanto, o amor e a esperança estão sendo esmagados repetidas vezes na Ucrânia, no Congo, no Sudão, na Síria, na Cisjordânia. Como é possível que todas essas pessoas agredidas possam seguir em frente? E para quê? Cabe ao restante de nós, fora da linha de fogo, por assim dizer, demonstrar o amor e a camaradagem que temos por elas. Nada mais realmente importa. As diferenças não são importantes em momentos de crise. Elas devem ser afastadas para encontrar a humanidade compartilhada de nossos corpos – pela vida e pela justiça.
E o mundo está se manifestando a favor da Palestina em demonstrações maciças em todo o globo. Este é um grande momento de resistência e resiliência que deve ser reconhecido e nutrido por todos nós. O mundo da última metade do século passado mudou radicalmente e ainda está mudando. Neste momento, há mais comprometimento pró-Palestina em todo o mundo do que nunca. Também nos EUA. Isso se dá porque o rígido domínio imperial dos EUA já não se exerce como antes, mesmo quando continuem guerreando como se ainda fossem os donos do mundo. Mas outros países estão reagindo. Movimentos em todo o mundo estão se unindo.
Em resposta, Israel aperta o cerco. E os grupos sionistas nos Estados Unidos tentam calar todas as vozes críticas. Recorrem à acusação de antissemitismo contra tudo o que é palestino. E, sim, o antissemitismo existe, mas não deve ser usado como uma espécie de chamariz. O sionismo aniquila a autodeterminação palestina. Ser judeu não é ser sionista (a menos que não seja assim para você). Mas não confunda seu antipalestinismo com antissemitismo; ou meu humanismo radical com antissemitismo.
O genocídio dos habitantes de Gaza/Palestina continua. Até mesmo escrever essas palavras é quase impossível. Como pensar? Como se importar? Como fazer alguma coisa? Minha mente, e presumo que a de muitas de nós, tenta pensar de forma humanista: num registro revolucionária que permita reconhecermos umas/uns as/aos outras/os, conectados e nos sentindo responsáveis por e para as/os outras/os. Muitas/os companheieas/os se sentem sobrecarregadas/os – há demasiado para saber nesse desconhecido e irreconhecível. No entanto, precisamos buscar conhecer e pensar de novas maneiras. Algumas de nós estão se esforçando para se livrar da mentalidade carcerária. Em vez de pensar sempre em punição, como podemos abrir espaço para o perdão e para a paz?
O excepcionalismo sionista permeia a maior parte do pensamento sobre essa crise, mesmo quando existam diferentes graus de excepcionalismo. Esse excepcionalismo corresponde a uma mentalidade violenta, segundo a qual nenhum outro povo sofreu tanto como os judeus. E continua se reproduzindo. Sempre que tento falar, me perguntam por que não digo uma coisa ou outra, e quanto ao Hamas? Perguntam-me por que não o condeno. Muitas pessoas confundem o Hamas com as e os palestinos. O Hamas é como os fanáticos de direita de Trump: os que invadiram o Capitólio. O massacre de 7 de outubro foi desumano, desumano, mas também uma forma de simulacro. A matança desenfreada é sempre uma abominação. Eu condeno a matança. Os ódios. A eterna misoginia dessa ordem global.
Nomear o Hamas não expõe suficientemente a misoginia do Hamas e da mentalidade guerreira. Todos os nacionalismos são misóginos: glorificam o poder e a força. Argumentei em meu livro “Hatreds” que as nações são construídas com e sobre os corpos das mulheres e por isso o estupro é arma essencial de todas as guerras, em todos os lugares. Por isso as mulheres são facilmente apagadas. No passado, a maior parte da linguagem de guerra falava de “mulheres e crianças”. Hoje, em Gaza, são “as crianças” que estão sendo contadas como mortas. O que aconteceu com as mulheres? Onde estão as perguntas/perguntas feministas sobre essa guerra contra a humanidade?
Penso nas mulheres do Irã, nas mulheres do Afeganistão e nas mulheres da Ucrânia. Como elas estão lutando contra a misoginia de seus governantes e por seus corpos e pela humanidade de todos. As mulheres em todas as lutas neste exato momento nos lembram de uma humanidade que inclui todos os gêneros e opções de gênero, juntamente com as múltiplas raças e seus matizes.
E, ao abraçarmos as lutas pela liberdade dos palestinos de todos os gêneros, devemos lembrar a todos que, nos EUA, sem direito aos nossos corpos, sem escolha sobre fazer ou não um aborto, não pode haver justiça ou paz. O aborto tem uma relação direta com o acesso à nossa humanidade assim como não ter o direito ao controle de nossos corpos significa não fazer parte do mundo. Isso conecta as mulheres de todo o mundo, por mais desconectadas que as lutas possam parecer. Se você se concentrar apenas em Netanyahu e nos nacionalismos, vai deixar de lado o “resto”.
Portanto, para mim, não se trata tanto de quem fez o quê, mas mais do que eles fizeram. Nunca há justificativa para matar, ou para a guerra, nesse caso. Não precisamos de mais guerras. Precisamos de uma visão de humanidade compartilhada que pode sempre superar o nacionalismo. Vamos usar todos os meios necessários para isso: conversar, negociar, ouvir, perdoar, questionar, imaginar.
Não fiquemos presos a velhos clichês. E como eu sempre disse aos meus alunos: nunca é uma coisa ou outra. A resposta é sempre: ambos, e todos. Não há dois lados. Há vários lados na complexidade dessas crises. Se você estiver se apegando à injustiça do passado, não poderá seguir em frente. E o futuro, neste momento, é totalmente desconhecido. Assim sendo há uma chance de que possamos ser mais importantes do que nunca. Até que tentemos, não haverá resposta.
O perdão e a reparação devem ser nossos guias.
Essa é a única maneira de seguir em frente. É por isso que a pauta do desencarceramento é parte do movimento Black Lives Matter. Perdoe e repare. Depois, veja o que pode ser criado, o que pode vir a seguir. A história é importante, mas o presente (com suas possibilidades) é ainda mais importante.
Meu pai lutou na Segunda Guerra Mundial. E, ao seu final, liberou campos de concentração. Ele operou como “observador avançado” – uma posição perigosa deixada para os judeus dos exércitos aliados. Sim, o antissemitismo era muito comum nas forças armadas dos EUA. Assim como era o racismo. Nessas mesmas forças estavam lutando contra o fascismo/nazismo. Israel se fundou por efeito do antissemitismo, mas também implicou deslocamento e apagamento dos palestinos.
Não tenho um pingo de nacionalismo nem pelos EUA nem por Israel. Mas fui criada por pais comunistas ateus, para quem ser judeu era uma escolha política – uma escolha pela justiça antirracista. Quando fiquei mais velha, acrescentei o feminismo antirracista à minha identidade. O holocausto propriamente dito não foi parte de minha educação. Ensinaram-me que, se eu usasse o termo holocausto, deveria sempre especificar do que estava falando: judeu? negro? armênio? Não há aqui excepcionalismo. O sofrimento de uma pessoa nunca supera o de outra.
Vivemos uma época quando é difícil de pensar. A morte parece estar em toda parte e em lugar nenhum. Um milhão de pessoas morreram de COVID nos Estados Unidos, mas já não há pouca divulgação desse fato. Dezenas de milhares de jovens estão sofrendo com a COVID longa. Eu quero outro mundo para eles e para mim. Nossos corpos nos tornam especialmente humanos. Eles exprimem a verdade, a vulnerabilidade e a força. Meu próprio corpo ainda está se recuperando – minha incisão permanece aberta para garantir que esteja totalmente curada internamente. Ela é como a dor de toda a humanidade. Do meu corpo para o seu, para o de todes.
Que este seja o nosso lema: NUNCA MAIS, PARA NINGUÉM!
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*Zillah Eisenstein é uma notável escritora e ativista feminista internacional e professora emérita de Teoria Política do Ithaca College. É autora de muitos livros, incluindo “The Female Body and the Law” (UC Press, 1988), que ganhou o Victoria Schuck Book Prize pelo melhor livro sobre mulheres e política; “Hatreds” (Routledge, 1996), “Global Obscenities” (NYU Press, 1998), “Against Empire” (Zed Press, 2004) e, mais recentemente, “Abolitionist Socialist Feminism” (Monthly Review Press, 2019).
Artigo originalmente publicado por The Edge, traduzido pelo time da SPW (Sonia Corrêa).