O Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto (#28S) de 2023 chega em um momento crucial do debate sobre o tema no Brasil. Na semana anterior, a Ministra Rosa Weber depositou seu voto pela descriminalização no plenário virtual do STF: essa ação, assinada por advogadas da Anis-Instituto de Bioética e pelo PSOL, solicita a descriminalização do aborto voluntário nas primeiras 12 semana de gravidez, argumentando que a criminalização é inconstitucional.
A votação não ocorre de imediato pois o novo presidente da Corte, após aceitar o voto, suspendeu o julgamento no plenário virtual para levá-lo a um julgamento presencial. Não se sabe exatamente quando isso vai acontecer. Mas, se julgada procedente a arguição da constitucionalidade do crime de aborto, o Brasil vai se juntar à Maré Verde latino-americana: desde 2020, Argentina, Colômbia e México reviram seus marcos legais, descriminalizando o aborto. Mudanças substantivas e significativas, resultado de décadas de mobilização, e em uma região que desde muito é alvo das forças antiaborto.
A INSTITUIÇÃO DO 28/09 COMO DIA DE LUTA PELO DIREITO AO ABORTO
O estabelecimento do 28 de setembro como dia para marcar a luta feminista na região veio no 5° Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho (EFLAC), realizado naquele ano em San Bernardo, na Argentina. Os registros são de que a escolha foi uma sugestão de brasileiras, em alusão à Lei do Ventre Livre, também aprovada neste dia em 1871. Essa referência não foi interrogada na época, mas não deixa de ser importante notar a alusão a uma data que historicamente marca o processo lento e gradual de abolição da escravidão por uma elite que se recusava a fazê-lo. Vale lembrar que, já em 1871, o 28 de setembro brasileiro fazia referência aos festejos de Cosme e Damião – festejos católicos que, por sua vez, foram incorporados ao ciclo de rituais religiosos das tradições espirituais afro-brasileiras.
Ou seja, são muitas a camadas sobre as quais se assenta essa data que, desde 1990, marca o dia de luta pelo direito ao aborto na região. Essa intricada história nos outorga a responsabilidade de um ativismo comprometido com as reparações dos horrores do processo colonial e escravista que assolou a América Latina, o Caribe e, mais especificamente, o Brasil. E reforça a importância de conceber a luta pelo direito ao aborto numa perspectiva de justiça reprodutiva.
TRÊS DÉCADAS DE PERDAS E GANHOS
Tão complexo quanto a histórico do 28 de setembro tem sido o percurso do direito ao aborto nesses 33 anos. Grosso modo, no âmbito legal conquistas e retrocessos se sucederam no tempo. E, sobretudo, multiplicaram-se e se fortaleceram os movimentos antiaborto em toda a região, em particular por efeito dos giros à ultradireita verificados na última década. Mas não perdeu fôlego a mobilização social por reformas legislativas iniciadas nos anos 1970-1980, em muitos casos nos primeiros momentos de processos de democratização, como aconteceu no Brasil. Na verdade, nos últimos cinco anos, apesar de condições políticas desfavoráveis, tomou corpo na região uma maré verde que está mudando os (m)ares da América Latina no âmbito do direito ao aborto.
MARCOS LEGAIS: CENÁRIOS COMPLEXOS E MULTIPLICIDADE DE ESTRATÉGIAS
Em 1990, quando a data foi criada, Cuba era o único estado nação da América Latina e Caribe onde o aborto já era legal.[1] Além disso, no Chile, um pouco antes do fim da ditadura Pinochet (1990), em Honduras (1991) e em El Salvador (1997) o aborto foi draconianamente proibido. Em 2006, o mesmo aconteceu na Nicarágua e quatro anos mais tarde (2010) na República Dominicana. Isso significa que desde muito cedo a região foi alvo de campanhas antiaborto. Mas não porque as legislações estivessem mudando para assegurar esse direito, e sim como estratégia desenhada pelo conservadorismo para prevenir possíveis mudanças legais. El Salvador é um caso muito ilustrativo, uma vez que essa restrição draconiana foi aprovada em seguida às Conferências do Cairo (1994), quando o aborto foi reconhecido como grave problema de saúde pública, e de Pequim (1995), quando foi recomendada a revisão de leis punitivas.
É interessante mencionar que o Brasil também configura um caso de mobilizações preventivas em relação à legitimação do direito ao aborto. Isso porque no processo Constituinte (1986-1988), apesar da campanha feita pela igreja católica, o direito à vida desde a concepção não foi incluído no texto constitucional graças à mobilização feminista coordenada pelo Lobby do Batom e o apoio de parlamentares de esquerda, mas também do campo liberal. Do ponto de vista da geopolítica do Vaticano, essa derrota no “maior país católico do mundo” não era nada trivial. E, desde então, o país entrou na radar de alertas da forças transnacionais antiaborto e verificou-se a proliferação gradual de organizações dedicadas a conter potenciais reformas legais.
Nos anos 2000, essa tendência marcadamente regressiva seria alterada. Em 2006, um ação feminista de litigio estratégico levada à Corte Constitucional colombiana assegurou o direito ao aborto nos casos de violação, risco à vida e má formação fetal incompatível com a vida, mas também no caso de riscos à saúde física e mental. Essa é uma interpretação ampla que permite ao aborto não apenas para salvar a vida da mulher. Essa decisão foi tributária da reforma constitucional colombiana de 1991, que adotou princípios fundamentais de direitos humanos que permitiriam, ao longo do tempo, uma evolução relativamente rápida e positiva do direito ao aborto. No ano seguinte a Assembleia Legislativa do Distrito Federal do México, aprovou uma lei permitindo o aborto até a 12ª semana de gestação, além de permissivos específicos para risco de vida, anomalia fetal e gravidez tardia resultante de estupro.
Em 2012, Uruguai também aprovou uma lei que permite o aborto até a 12ª semana de gestação. Apesar de algumas limitações, essa foi uma vitória inequívoca pois, em 2008, quando foi aprovada a lei de saúde sexual e reprodutiva, o capítulo sobre direito ao aborto foi vetado pelo então presidente Tabaré Vasquez, da coalizão de esquerda Frente Amplio. E, em seguida à aprovação da lei, as forças antiaborto tentaram abolir a reforma através de um plebiscito, mas sequer conseguiram angariar os votos necessários para realizá-lo.[2] Passada meia década, Bolívia e Chile reformaram suas legislações, introduzindo permissivos legais. A reforma penal boliviana seria cancelada pelo executivo. Mas a reforma chilena, apresentada pela presidente Bachelet, foi muito relevante pois deixou para trás a criminalização absoluta herdada do Pinochetismo.
No ano seguinte, na Argentina, após várias décadas de tentativas infrutíferas, foi finalmente, levada a votação uma proposta de reforma do código penal para permitir o direito ao aborto. Mas a proposta aprovada pela Câmara seria derrotada no senado. Esse resultado não significou porém um recuos das mobilizações feministas e, no ano seguinte, o governo de Alberto Fernandez apresentou ao Congresso uma nova proposta de reforma que seria votada e aprovada no dia 30/12/2020. A celebração do resultado que contagiou a região em meio a dias duros de pandemia seria repetida dois anos mais tarde na Colômbia, quando um novo litígio estratégico coordenado por Causa Justa foi levado à Suprema Corte que decidiu pela constitucionalidade do direito ao aborto até 24ª semana de gestação. Também no começo de 2022, no Equador, após uma complexa e árdua batalha política foi finalmente aprovada uma lei que assegura o direito ao aborto no caso de estupro. [3]
As últimas ondas dessa maré verde seriam registradas no México em 2021 e 2023, também por decisões constitucionais. Após a vitória no distrito federal em 2007, as forças antiaborto investiram em reformas legais para fazer retroceder a legislação em outros estados. Também interrogaram a constitucionalidade da lei do Distrito Federal que foi, porém, reafirmada pela Corte Suprema de Justiça. Seguiram-se tanto mobilizações para conseguir reformas legislativas nos estados quanto litígios mobilizados pelos movimentos feministas e seus aliados questionando a constitucionalidade de leis estaduais que penalizam o aborto. Em setembro de 2021, a Corte julgou a lei do Estado de Coahuila inconstitucional, emitindo uma decisão adicional de que as leis estaduais não podem equiparar fetos a pessoas e, em consequência, mulheres que abortam não poderiam mais ser perseguidas criminalmente.[4] Dois anos mais tarde – ou seja, poucas semanas atrás -, a Corte descriminalizou de maneira ampla o direito ao aborto no país, estabelecendo que mesmo nos estados cujas leis ainda proíbam o aborto, mulheres e pessoas gestantes que que desejem interromper a gravidez poderão acessar os serviços de saúde federais.[5]
A paisagem paradoxal dos anos 2020
Numa região em que passaram-se quarenta anos entre a reforma legal que permitiu o aborto em Cuba e a primeira decisão da Corte colombiana, todo e qualquer progresso legal no campo da autonomia reprodutiva deve ser comemorado. Entretanto, as transformações legais e jurídicas que ocorreram desde 2020 têm um significado especial pois desde a segunda metade dos anos 1990, e com muito mais vigor e vitalidade a partir dos anos 2010, as forças antiaborto ficaram muito mais organizadas, são melhor financiadas e estão mais sedimentadas no tecido social. A oposição ao aborto este desde sempre imbricada nas políticas antigênero que nos últimos dez anos tem varrido a região, contribuindo par giros à direita e dinâmicas de desdemocratização.
Mas as reformas recentes nos dizem que, apesar de condições muito desfavoráveis, as mobilizações dos feminismos e de seus aliados pelo direito ao aborto não têm arrefecido. A multiplicidade de vozes, redes e mobilizações comprometidas com os direitos sexuais e reprodutivos em 2023 talvez supere em muito os sonhos mais ambiciosos de 1990. Se o debate ainda hoje é deturpado, desviado e instrumentalizado por vozes ultraconservadoras, a conversa sobre direito ao aborto também está se sedimentado no tecido social.
A própria ADPF 442 é um bom exemplo disso. É a ação levada ao Supremo Tribunal Federal que recebeu o maior número de amicus curiae na historia da Corte brasileira, a maioria deles favoráveis à descriminalização. Além disso, o voto favorável da Ministra Rosa Weber reflete essas condições e elabora argumentos jurídicos e filosóficos sólidos e inspiradores no sentido ampliar ainda mais as conversas e debates sobre a questão em todos os espaços da sociedade. Como por exemplo, o argumento elaborado no parágrafo 180 de seu voto:
“… a liberdade constitucional de escolha corresponde à igual dignidade que é atribuída a cada um. A mulher que decide pela interrupção da gestação nas doze primeiras semanas de gestação tem direito ao mesmo respeito, na arena social e jurídica, que a mulher que escolhe pela maternidade”.
> Confira aqui nossa compilação de destaques sobre o direito ao aborto na região.
[1] Além de Cuba, no estado mexicano de Yucatán,a legislação penal era muito flexível desde a década de 2020. E, em Porto Rico, apesar de seu estatuto singular de estado “associado”, a decisão Roe vs Wade de 1973 tinha vigência legal.
[2] Uma análise complete da reforma legal uruguaia pode ser lida em espanhol no livro Abortus Interruptus publicado por Mujer y Salud em Uruguay em 2015.
[3] Ver artigo de Manuela Picq em espanhol: https://sxpolitics.org/es/despenalizacion-con-exclusion-la-nueva-ley-de-aborto-por-violacion-en-ecuador/5345
[4] Ver artigo do Washington Post assinado pelo então presidente da Corte https://www.washingtonpost.com/es/post-opinion/2021/10/03/scjn-despenalizacion-del-aborto-objecion-conciencia-mexico-zaldivar/
[5] Ver matéria do DW-PT https://www.dw.com/es/corte-suprema-de-m%C3%A9xico-despenaliza-el-aborto-en-todo-el-pa%C3%ADs/a-66740929