Sxpolitics [PTBR]

A política sexual de fevereiro a julho de 2023

 

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Primeiras palavras

Este boletim descreve e busca contextualizar as tramas da política sexual desde fevereiro de 2023. Em tempos de deterioração democrática ao redor do mundo, a política sexual, nosso objeto de análise, se vê, inevitavelmente, imbricada em derivas autoritárias. Os efeitos pervasivos da desdemocratização são palpáveis nas dinâmicas e mutações políticas antigênero, no campo do direito ao aborto e dos direitos reprodutivos, no âmbito dos direitos LGBTQIA+, em particular no caso das pessoas trans, assim como em fóruns multilaterais. Essa turbulência constante tem, inclusive, prejudicado a periodicidade do nosso boletim. Contudo, é preciso dizer que, a despeito dessas condições adversas, há também boas novas a enumerar e analisar e são essas boas notícias que energizam nosso trabalho.

Boa leitura!

Equipe SPW (Sonia Corrêa, Nana Soares, Fábio Grotz e Tatiane Amaral)

Eventos SPW

O cenário regional de desdemocratização e o lugar que nele ocupam as políticas antigênero foram objeto de discussão no seminário “Mapeando e resistindo ao fantasma do gênero na América Latina: geografias dos movimentos antigênero”, promovido em abril pelo SPW, em parceria com a London School of Economics and Political Science, o Arts & Humanities Research Council e com apoio do BRICS Policy Center. No seminário, ativistas e pesquisadoras/es da América Latina partilharam cenários e análises afiadas sobre o atual contexto nacional e regional e suas muitas conexões transnacionais. Mas também expuseram e debateram formas variadas de resistência que estão em curso dentro e fora de espaços institucionais. Para saber mais sobre o evento, há informações no site do SPW e registros dos melhores momentos em vídeos disponíveis no nosso canal no YouTube.

Dois meses mais tarde, em junho, realizamos – no contexto de nossa parceria com Akahata, Promsex, Puentes e Synergia – um webinário especial do Foro Regional de Debates sobre Temas Pendentes e Emergentes em que as reflexões feitas em abril foram revisitadas. Este registro também está disponibilizado em nosso canal no Youtube.

Desdemocratização acelerada

A onda desdemocratizante da qual temos falado sistematicamente desde 2020 atingiu níveis inéditos em 2022, como constatado pelo relatório anual do Instituto V-Dem, lançado em março e cujo título é “Defiance in the Face of Autocratization”. Perdas democráticas robustas foram verificadas em 42 países, nove a mais do que apontado no relatório de 2021. Isso corresponde a 43% da população global vivendo em condições que oscilam entre autocracismos com cara de democracia e regimes decididamente autoritários ou ditatoriais, em que direitos, liberdades e garantias políticas e civis estão suprimidos ou em regressão.

A América Central é hoje um inequívoco lócus de autocratização acelerada. Na Nicarágua, o regime Ortega-Murillo aprofundou e acelerou de maneira cabal sua lógica repressiva. Em fevereiro, 222 cidadãs foram desterradas para os Estados Unidos, das quais 95 tiveram sua nacionalidade abolida. A mesma medida foi aplicada a pelo menos outras 220 pessoas que estão presas ou já deixaram o país. Algumas dessas pessoas estão solicitando asilo nos EUA, e Espanha, México e Argentina, de imediato, ofereceram cidadania aos exilados. Além disso, desde 2018, cerca de 600 mil nicaraguenses deixaram o país. Leia nossa compilação sobre a situação do país. 

É importante mencionar que o novo governo brasileiro tem demonstrado, desde janeiro, tibieza e hesitação em condenar esse brutal regime. Em abril, uma expatriada, a historiadora e ex-guerrilheira Mónica Baltodano, esteve no Brasil dialogando com a sociedade civil e com autoridades públicas, tendo inclusive uma audiência com o embaixador Celso Amorim, assessor especial da Presidência para política externa.  Entretanto, em junho, durante a Assembleia Geral da OEA, como relata matéria de Jamil Chade, lamentavelmente o Brasil propôs mudanças atenuantes numa declaração conjunta de repúdio ao regime, provocando reações indignadas da resistência nicaraguense no exílio. Na sequência, contudo, após uma conversa com o papa em Roma, Lula declarou que o Brasil iria “ajudar” nos esforços pela liberação do bispo Alvarez. Depois disso, o Brasil apoiaria o tom mais duro da declaração votada na OEA. No início de julho, o bispo Alvarez foi liberado, mas apenas por dois dias, revelando-se uma vez mais a draconiana intransigência da tirania. 

Em El Salvador, Nayib Bukele, que se auto-define como ditador cool do mundo, inaugurou uma megaprisão nomeada como “Centro de detenção de terroristas”, mas que, de fato, abriga pessoas acusadas de crimes comuns, especialmente membros das chamadas maras. Com capacidade para 40 mil prisioneiros, o presídio de escala arquitetônica colossal é um monumento a uma estratégia brutal de combate ao crime que, como apontam várias análises, é de fato uma política de exceção. Não menos importante, Bukele está exportando para a região seu modelo de combate ao crime. Em maio, por exemplo, seu ministro da justiça esteve em audiência pública na Câmara Federal a convite do deputado bolsonarista Osmar Terra.

Além disso, o clima político do país vem se deteriorando. É disso sintoma a transferência do jornal El Faro para a Costa Rica, decisão tomada para se proteger dos ataques à liberdade de imprensa. O SPW compilou análises sobre a situação de El Salvador, onde, apesar da degradação contínua, a popularidade de Bukele atingiu níveis estratosféricos. Recomendamos também o registro da fala da ativista Morena Herrera no seminário organizado pelo SPW em abril. Herrera tematizou a América Central como um “abismo” e analisou o lugar nodal que nele ocupa Bukele, estrela ascendente do autocracismo regional. 

Contudo, sinais de desdemocratização estão por toda parte na América Latina. No Chile, após o “rechazo” da nova constituição em setembro de 2022, a direita, com ampla presença da ultradireita, foi vitoriosa na eleição para uma nova Comissão Constitucional, ocorrida em maio. Ampliou-se, portanto, o arco de vozes ultraconservadoras no debate público, várias das quais são defensoras desavergonhadas dos legados do Pinochetismo. Apesar do voto obrigatório, 20% das e dos eleitores votaram nulo. Esse sintoma forte de descrédito com a política institucional também foi efeito de uma campanha contra o voto mobilizada por setores de esquerda. Leia nossa compilação sobre os impactos do resultado de maio.

No Equador, o presidente Guillermo Lasso, cuja legitimidade foi questionada desde 2021, recorreu a uma regra constitucional conhecida como “morte cruzada” e dissolveu o Congresso em maio, convocando novas eleições gerais. Leia mais sobre a crise que levou à morte cruzada. A medida, embora prevista na Constituição, acentuou o cenário de incertezas e instabilidade que desde muito está em curso no Equador. Oito candidatos disputam a eleição presidencial marcada para agosto. Nessa nova eleição atípica, destacam-se Luisa González, que representa o correísmo, Otto Sonnezholner, um “liberal” próximo ao ex-presidente Lenin Moreno, e Yaku Pérez, líder indígena que nas eleições de 2021 quase chegou ao segundo turno, defendendo uma agenda ambiental substantiva, e cuja candidatura vem crescendo. As últimas análises sobre o processo eleitoral indicam que a disputa, de fato, vai se dar entre Yaku Perez e a candidata do correísmo.  

Na Argentina, a proximidade da eleição também vem suscitando temores em razão da ascensão persistente de Javier Milei, personagem do libertarismo de direita e outra figura icônica das dinâmicas de desdemocratização regionais. A grande preocupação de vários analistas é o crescimento de Milei entre os mais jovens, mas uma pesquisa longitudinal feita pela UBA sugere que o posicionamento da juventude é de fato mais complexo e matizado. Compilamos análises sobre o personagem, que está no centro de um escândalo de corrupção eleitoral, eclodido no início de julho, e que envolve venda de candidaturas.

Na Ásia, os traços autocráticos de Narendra Modi ganharam de novo manchete com os ataques ao líder oposicionista Raul Gandhi, defenestrado do Parlamento em março após condenação por ter feito críticas ao primeiro-ministro indiano. Ao mesmo tempo, ganhou publicidade a pressão do governo contra o Unicef. Por outro lado, o fato mais relevante dos últimos meses foi a derrota do BJP – ou seja, de Modi – nas eleições estaduais em três estados importantes, inclusive Karnataka, resultado interpretado como sinal de que os ventos da política indiana podem estar, finalmente, mudando de direção. Leia aqui compilação sobre o país. 

Na Turquia, Erdogan foi reeleito, depois de disputar o segundo turno pela primeira vez desde que chegou há 20 anos ao poder central e mesmo depois da gestão desastrosa do colossal terremoto que arrasou parte do país no início de fevereiro. Essa nova vitória vai, sem dúvida, significar mais um capítulo na trajetória de autocratização do país. Importante sublinhar que a retórica antigênero e anti-LGBT foi especialmente robusta na campanha de Erdogan, assim como no seu primeiro discurso após a vitória. Isso faz da Turquia um país islâmico onde, de fato, a fantasmagoria de gênero está decididamente instalada. Entretanto, a cena política turca também deve ser analisada à luz do aprofundamento neoliberal, da crise migratória e da persistente tensão com as demandas curdas por autonomia. Leia nossa compilação.

No Irã, por sua vez, a persistente rebelião feminista de 2022 foi contida a ferro e fogo (saiba mais aqui em reportagem da DW). Contudo, no primeiro semestre de 2023, notícias começaram a circular sobre uma onda de estudantes e meninas envenenadas em diferentes cidades do país, interpretada como uma ação brutal destinada a intimidar a educação para mulheres – fenômeno que parece se repetir no Afeganistão. 

Na África, registrou-se o agravamento da situação política no Sudão. Nesse país, em 2019 uma longa ditadura foi varrida por uma rebelião popular, seguindo-se em 2021 um golpe militar. Em abril de 2023, instalou-se um conflito armado entre o comando do Exército e a chamada Rapid Support Forces, que colocou o país em estado de guerra interna, sem horizonte de solução a curto prazo. 

No Senegal, considerado um bastião de estabilidade política na África ocidental, ocorreram protestos massivos após a condenação à prisão de líder da oposição por corrupção de menores. A resposta do presidente Macky Sall foi dura, a Internet foi suspensa e sob repressão policial vários manifestantes morreram. No início de julho, o mandatário anunciou que não concorrerá a um terceiro mandato. Organizamos compilação de notícias sobre o episódio. Na Tunísia, registrou-se a prisão de lideranças do principal partido de oposição, o que sinaliza aprofundamento da erosão democrática, iniciada em 2021. 

Na Europa, por sua vez, as eleições locais espanholas registraram um flagrante avanço do PP e do Vox nas dez maiores cidades do país, onde poderão governar em coalizão. O avanço do Vox é especialmente preocupante (mais aqui, em espanhol). O resultado eleitoral levou o presidente Sanchez a antecipar as eleições gerais para o dia 24 de julho. As pesquisas de opinião mostram uma disputa acirrada entre o PP e o PSOE, anunciando um Parlamento em que não haverá maioria. E, na Escandinávia, o partido nacionalista finlandês ganhou vários postos ministeriais no novo governo – ou seja, outro avanço do populismo de direita num país nórdico com larga tradição social democrática (saiba mais sobre o cenário finlandês aqui e aqui).

Um outro contexto, em que a dinâmica política suscita preocupações, é sem dúvida os Estados Unidos, onde a disputa pelas eleições presidenciais de 2024 já está francamente delineada. Donald Trump, até ser recentemente indiciado, continuava à frente das pesquisas de opinião. Esse indiciamento não significa, contudo, que o curso de Trump esteja comprometido, nem tampouco que outro candidato republicano, tão ou mais radical do que ele, como Mike Pence ou, mais especialmente, Ron DeSantis, não possa se beneficiar de um eventual impedimento eleitoral do ex-presidente. Sobretudo, não são muitos os sinais de vigor político no campo democrático, onde inclusive se registra a paradoxal ascensão de Robert Kennedy Junior, hoje porta-voz do negacionismo da Covid-19 e do movimento antivacinas. A desdemocratização norte-americana se reflete também na avassaladora onda de ofensivas antigênero e antitrans que será examinada no próximo bloco.     

Num contexto global tão adverso, chama atenção a vitória de uma coalizão de partidos de oposição na Tailândia nas eleições legislativas de maio, que isolou um regime semi-militar instalado por um golpe em 2014. O desfecho está longe de significar mudança substantiva e imediata no país, conforme analistas apontam (aqui e aqui, em inglês), mas é sem dúvida mais um sinal de alento democrático vindo da Ásia. 

A reconstrução da democracia no Brasil 

Nesse balanço, o Brasil que, em 2022, conseguiu se desviar de uma rota desastrosa de erosão democrática ampliada, merece atenção especial. Passados seis meses da insurgência de ultradireita que destruiu a Praça dos Três Poderes, a atmosfera política está muito mais arejada. Muito embora a relação entre o Executivo de Lula e um Congresso que opera na lógica da barganha e conta hoje com um poderoso bloco conservador seja tensa, o governo Lula está conseguindo aprovar as reformas que considera prioritárias e os indicadores econômicos do país estão melhorando.  

No que diz respeito especificamente à contenção das forças de direita, o Judiciário tomou medidas firmes de investigação e punição das pessoas envolvidas na insurgência do 8 de janeiro e, em junho, o Tribunal Superior Eleitoral julgou Bolsonaro inelegível pelos próximos oito anos. Uma lei de regulamentação das plataformas digitais também foi proposta, cujo processamento foi paralisado por efeito das condições congressuais.  

Mas a questão também entrou na agenda do Executivo, pois o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania criou, em fevereiro, um Grupo de Trabalho sobre Discursos de Ódio e Extremismo. O resultado final desse esforço acaba de ser publicado e, entre outras recomendações, propõe a criação de um fórum permanente para monitorar e responder às ameaças e riscos que a desinformação e a propagação deliberada de categorias acusatórias e discursos de ódio implicam para a democracia. 

Não menos importante, políticas públicas estão sendo reconstruídas em áreas críticas para a política sexual, como é o caso da saúde e dos direitos humanos e, também como veremos a seguir, em política externa. 

Nessas condições, a ultradireita político-partidária está atravessando um momento de franca desorganização. Isso não significa, contudo, que suas pautas e sua agressividade estão arrefecidas. Como se verá a seguir, apesar dessa desordem em curso no plano institucional, as forças da ultradireita continuam vivas e ativas promovendo ofensivas  antigênero de toda ordem no âmbito legislativo, nas redes sociais e na vida cotidiana.  

Em tal contexto é inquietante que, à esquerda do espectro político e no próprio PT, falte clareza a coesão no que diz respeito ao significado das questões de gênero e sexualidade seja como dimensão incontornável para a reconstrução da democracia, seja como pauta perene da ultradireita. É disso exemplo o debate acirrado e grosseiro que aconteceu entre parlamentares e lideranças petistas sobre a potencial filiação de Duda Salabert, uma das duas deputadas federais trans eleitas em 2022.  

Políticas Antigênero

Os EUA são hoje, muito significativamente, um epicentro global das ofensivas antigênero que hoje se manifestam como um cerco brutal aos direitos e à própria existência das pessoas trans. Os projetos de monitoramento  “Trans Legislation Tracker” e da American Civil Liberties Union (ACLU) dimensionam a escala dessa “guerra aberta”: até junho de 2023 mais de 500 projetos de lei antitrans foram apresentados em legislativos estaduais e locais, muitos dos quais já foram aprovados. Com base nos dados da ACLU, o Washington Post analisou as implicações desse dramático cenário. 

Esses levantamentos consolidam a percepção de que o juggernaut antitrans é hoje rotineiro e está “naturalizado” como fato político. Essa cena é resultado de um longo processo de atualização do ultraconservadorismo e da ultradireita no país (ver entrevista de Sonia Corrêa na Revista Sur e as investigações feitas pela Revista Mother Jones). Mas tem um elemento novo, a presença cada vez mais palpável das correntes feministas transexcludentes, analisado pelo informe do portal All or None, que também examina outros contextos nacionais e o que se passa na ONU. Fizemos uma compilação bastante extensa de análises e notícias sobre a política antigênero e antitrans nos EUA no primeiro semestre de 2023. Dessa seleção, recomendamos a matéria do The Nation que analisa as ofensivas antitrans como uma ameaça à democracia. 

No plano político institucional, a política antitrans tem sido protagonizada sobretudo pelo governador da Flórida e pré-candidato à Presidência pelo Partido Republicano, Ron DeSantis. Neste primeiro semestre, De Santis agudizou o conflito com a Disney depois que a empresa manifestou-se contra a lei popularmente conhecida como “Don’t Say Gay”, aprovada em 2022, que restringe a abordagem de temas sobre gênero e sexualidade nas escolas primárias (saiba mais aqui, em inglês). Em abril, o escopo da lei alargou-se, alcançando todas as séries escolares. Em maio, DeSantis promulgou leis restringindo acesso de menores de idade a serviços e procedimentos de transição de gênero. 

Alguns dos ataques obtiveram destaque especial, como foi o caso do Tennessee, onde lei promulgada em março passou a proibir a apresentação de drag queens em público, o que atinge, por exemplo, artistas que se apresentam para crianças em eventos de leitura. Outros estados seguiram o rastro e propuseram legislação similar: Arizona, onde a lei foi vetada pela governadora; Oklahoma, onde projeto de lei foi retomado após uma primeira tentativa não avançar na legislatura; e no Kentucky, onde projeto de lei caducou no Senado estadual. No total, nove estados investiram contra performances de drag queen. No Tennessee, a lei foi considerada inconstitucional pela Justiça, mas a suspensão é temporária. 

Igualmente deplorável, na ultraconservadora conferência CPAC (Conservative Political Action Conference) de fevereiro, em Washington, um dos participantes norte-americanos clamou pela “erradicação da transgeneridade da vida pública”. Quatro parlamentares brasileiros participaram do evento, entre eles Eduardo Bolsonaro e Mário Frias que, em seus discursos, também repudiaram, com veemência, o direito à identidade de gênero, em especial no caso de crianças. 

Não menos importante, o Twitter, agora sob comando de Elon Musk, eliminou sem maior alarde a regra de conduta que proibia o uso de discursos transfóbicos. Elon Musk, deve-se dizer, é hoje um porta-voz global da retórica antigênero e antitrans tão proeminente quanto Vladimir Putin. Tem se manifestado ferozmente contra a identidade de gênero na infância e anunciou que vai financiar a criminalização da prática pelo mundo afora. Em junho, Musk visitou a Itália, onde debateu com Giorgia Meloni os riscos da inteligência artificial, mas também a queda da natalidade – que ambos consideram como uma ameaça para a humanidade decorrente do uso extensivo da contracepção e do aborto. 

Ao norte do Rio Grande, o Canadá também entrou de vez no radar das forças antigênero. O Openly noticiou, em junho, que a Província de New Brunswick, governada por conservadores, suspendeu norma escolar que permitia aos estudantes a autoidentificação de gênero em seus nomes e pronomes. A partir de julho, crianças e jovens com menos de 16 anos estão sujeitos à autorização parental na escolha.

No outro lado do Atlântico, a batalha em torno dos direitos trans também ganhou novos contornos. Em fevereiro, o premiê conservador Rishi Sunak ameaçou vetar a lei de identidade de gênero aprovada em dezembro na Escócia, que já havia sido objeto de ataques virulentos por parte dos feminismos transexcludentes. Essas tensões compõem o cenário mais amplo que levaria, quando a lei de identidade de gênero foi aprovada na Escócia, à renúncia subsequente da primeira-ministra Nicola Sturgeon. Em março, Sunak também anunciou a intenção de alterar a lei inglesa que protege pessoas trans, ao propor a revisão no texto restringindo a definição de sexo à sua dimensão biológica.  

Na Itália, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, Giorgia Meloni afirmou que as “mulheres são as primeiras vítimas da ‘ideologia de gênero’”. Em seguida, o governo central requiriu oficialmente que a cidade de Milão deixe de registrar filhos de casais do mesmo sexo. E, em junho, o governo da região de Lazio, onde fica Roma, retirou o apoio governamental à Parada do Orgulho LGBTQIA+.

Na Hungria, o Parlamento aprovou lei que incentiva a denúncia anônima de casais do mesmo sexo que tenham filho sob a justificativa de proteger o “modelo húngaro de vida social”. A lei, contudo, foi devolvida ao Congresso pela presidente Katlin Novak, um movimento cuja direção não está completamente clara, mas pode ser uma jogada no sentido de projetar uma imagem menos extremista da presidente. Na Polônia, o PIS – partido que controla o governo – apresentou projeto de lei que impede a atuação de ONGs em educação sexual nas escolas. Na Suécia, a extrema-direita, que se tornou a segunda força política do país nas eleições do ano passado, lançou uma campanha contra os shows de drag queens com participação de crianças. Em protesto, o vice-prefeito liberal de Estocolmo fez uma leitura para crianças montado de drag queen.  

Na Rússia, a presidente da Câmara Alta do Parlamento usou o Dia Internacional da Mulher para reiterar ataques à população LGBTQIA+ e aos currículos de gênero e sexualidade nas escolas. Em junho, um projeto de lei destinado a proibir de maneira definitiva as cirurgias de redesignação de gênero também avançou na Câmara Baixa russa. Na Bulgária, a Suprema Corte negou, em fevereiro, direito à mudança no registro civil para pessoas trans, com a justificativa de que a Constituição só reconhece o sexo biológico e binário. Na Bósnia, em março, a Parada do Orgulho LGBTQIA+ foi proibida pela polícia. 

Na Eslováquia, está em tramitação no Congresso projeto de lei que condiciona a mudança legal de gênero a um exame de DNA. Essa proposta, que apenas replica o conteúdo de um projeto de lei apresentado no Estado de Ohio nos EUA no ano passado, foi severamente condenada pela Anistia Internacional e pela Comissária de Direitos Humanos do Conselho da Europa. E, na Turquia, não surpreendentemente, o governo proibiu as comemorações do mês do Orgulho e prendeu mais de 100 pessoas que, apesar das restrições, organizaram marchas no final de junho.

Mas é preciso dizer que a guerra aos direitos trans não é um traço peculiar do norte global. No Paquistão, onde uma lei de direito à identidade trans foi aprovada em 2018, a alta corte Shari´a condenou a matéria em maio deste ano. Essa condenação é especialmente preocupante, pois, historicamente, as metis (mulheres trans) eram aceitas na cultura paquistanesa, assim como acontece em outros países asiáticos, inclusive islâmicos, como é o caso da Indonésia.   

Na América Latina, ataques contra as pessoas trans também se ampliaram em vários países, especialmente no México, onde as correntes feministas antigênero são hoje mais numerosas. Contudo, uma vez mais é inevitável chamar atenção para o Brasil que, desde o final de 2022,  se converteu em palco conflagrado pelos ataques aos direitos das pessoas trans. 

Um levantamento feito pela Folha de São Paulo mostrou que, nos primeiros três meses deste ano, mais de 60 projetos foram apresentados no legislativo federal e nas legislaturas estaduais e municipais (a matéria inspirou uma edição do podcast Café da Manhã). Não surpreende portanto que, no dia 8 de março, tenha se assistido a uma  cena grotesca da nova guerra ao gênero na Câmara Federal: o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira, em meio a um discurso, colocou uma peruca loura para vilipendiar o direito à identidade de gênero autodeclarada. No final de maio, na Assembleia Legislativa de São Paulo foi instalada uma CPI para investigar o tratamento para Transição de Gênero em Crianças e Adolescentes no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.  

Uma matéria do Jornal Nexo sobre essa proliferação de investidas antitrans enfatiza, como sempre fazemos no SPW, que essas ofensivas e cenas grotescas não devem ser interpretadas num registro exclusivamente nacional, mas sempre situadas em relação a dinâmicas transnacionais equivalentes. Uma ilustração disso é que o deputado Mário Frias, que esteve no CPAC, anunciou a criação de uma CPI federal análoga à que está em curso em São Paulo, mas com objetivos mais amplos. Desde então, também tem panfletado com vigor as promessas e projetos de Elon Musk para erradicar a identidade de gênero na infância. 

Mas as ofensivas antigênero no Brasil têm muitas outras caras. Uma delas é, por exemplo, a violência política de gênero que incide de maneira brutal sobre as parlamentares feministas e, sobretudo, trans. Em junho, o Comitê de Ética da Câmara Federal aceitou o pedido de cassação de seis deputadas, inclusive uma negra e as duas parlamentares indígenas, recém-eleitas. Em resposta, uma campanha foi lançada na primeira semana de julho. As duas parlamentares trans federais, assim como as que estão nos legislativos estaduais e municipais, também têm sido objeto de ataques tanto da direita quanto das correntes feministas antigênero/antitrans.

Além disso, persistem as ofensivas contra professores e conteúdos de gênero, raça e desigualdade social na rede pública de educação. Na Câmara, um deputado de ultradireita recém-eleito propôs a criação de uma frente parlamentar e de um  “observatório da sociedade civil contra doutrinação nas escolas” e, em seguida, apresentou um projeto de lei para garantir a objeção de consciência de docentes que se recusam a lecionar “conteúdos doutrinantes”. Mesmo antes de aprovadas, essas iniciativas têm o efeito de agudizar o clima de perseguição no ambiente escolar.   

Contudo, o fato mais estarrecedor desse acirramento foi que, no encerramento do mês do Orgulho LGBTQIA+, um conhecido pastor fundamentalista fez um sermão, amplamente divulgado nas redes sociais, incitando abertamente o assassinato das pessoas LGBTQIA+. Esses fatos evidenciam muito claramente que a guerra à fantasmagoria associada ao gênero não arrefeceu. Entretanto, nas condições políticas de 2023, esses ataques não só têm maior visibilidade midiática como têm sido respondidos com maior agilidade e vigor, inclusive pelas instituições estatais. O pastor fundamentalista acima mencionado, por exemplo, já está sendo investigado pelo Ministério Público Federal. 

Voltando ao cenário global, é preciso mencionar ainda que o mundo dos esportes em geral e dos esportes de elite em particular é, hoje, um outro lócus principal das ofensivas ao gênero e, mais especialmente, aos direitos das pessoas trans. Essas conflagrações foram analisadas por Nana Soares em artigo publicado em junho que retoma e atualiza uma primeira investigação feita no ano passado. 

Fóruns multilaterais

A sessão 67 da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW) aconteceu em março. Precedida de manifestação de relatores da ONU em defesa da educação sexual integral, a sessão foi concluída com declaração enfatizando as relações entre direitos das mulheres e ambiente digital. Mais uma vez as negociações foram árduas, em razão de uma forte presença de organizações do campo conservador, mas, sobretudo, porque Nigéria, Rússia e Santa Sé obstaculizaram sistematicamente a linguagem de gênero ou aquela relacionada a direitos sexuais e reprodutivos, muitas vezes usando os argumentos propagados pelas redes globais antigênero – como, por exemplo, o fantasma da “corrupção de crianças”. 

Em junho, na Assembleia da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também registrou-se uma movimentação conservadora e antigênero. Nos debates ocorridos no comitê financeiro da entidade, a definição do orçamento emperrou por causa da oposição de alguns países africanos e árabes a uma cláusula destinada a apoiar indivíduos “afetados por discriminação e exclusão, incluindo aquelas baseadas em raça, orientação sexual e identidade de gênero”. Por efeito dessa pressão, o texto foi alterado para “combate a todas as formas de discriminação com base em qualquer justificativa”, fazendo-se adicionalmente a ressalva de que há diferenças entre países em relação à matéria. Essa é a primeira vez que um embate desse tipo ocorre na OIT, mas os sinais indicam que esses embates vão continuar no futuro. 

No âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU, duas dinâmicas merecem atenção. Desde o final de 2022, quando publicou uma nota criticando abertamente a lei escocesa de identidade de gênero, a Relatora Especial para Violência contra mulheres e meninas tem sido criticada por redes feministas e LGBTQIA+ transnacionais, como bem expresso pela carta publicada pela AWID (Associação da Mulheres para o Desenvolvimento e Direitos Humanos) em maio. Suas visões têm sido também contrastadas por posições assumidas por outros mandatos da ONU, como, por exemplo, a carta enviada por nove relatores especiais congratulando a Espanha pela aprovação final da lei trans em fevereiro.  

E, na sessão de junho do Conselho de Direitos Humanos, foi tornada pública a lista de candidatos e candidatas para substituir Victor Madrigal, Especialista Independente para Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero, cujo mandato agora se encerra. A lista comporta 24 candidatas/os/es de todas as regiões do mundo, entre os quais duas mulheres trans e uma pessoa não-binária. Pela primeira vez o mandato é tão disputado e, nesse processo de eleição, é fundamental que a integridade do mandato seja preservada de modo a conter a virulência crescente das ofensivas contra os direitos LGBTQIA+, em particular no caso das pessoas trans. 

No âmbito das arenas internacionais, uma vez mais vale destacar a mudança da postura diplomática do novo governo brasileiro em relação à pauta dos direitos humanos e à pauta de saúde global. O Brasil se reaproximou da Organização Mundial da Saúde (OMS), relação que havia sido praticamente rompida pelo governo Bolsonaro durante a Covid-19. E, na 52ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, em fevereiro, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, em seu discurso, abordou um amplo leque de direitos e sublinhou que eles voltarão a ser prioridade da política externa brasileira. Symmy Larrat, Secretária Nacional dos Direitos da População LGBTQIA+ e primeira travesti a ocupar cargo de segundo escalão na administração federal, estava na delegação. Em abril, ela participou do III Fórum Mundial de Direitos Humanos. Já na 53ª Sessão, ocorrida em junho, o Brasil anunciou seu retorno ao grupo de 36 países que sustenta a agenda dos direitos LGBTQIA+ na ONU e, mais especialmente, o mandato do Especialista Independente para Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero, cuja criação em 2016 teve apoio do Brasil. 

Finalmente, em junho aconteceu mais uma Assembleia Geral da OEA, em Washington, e nela, uma vez mais, estiveram superativas as forças antigênero e antiaborto. A Assembleia debateu, sobretudo, as crises da Nicarágua e do Haiti. Mas, como relata o balanço feito pelo Portal Catarinas, apesar da presença e da pressão das forças conservadoras, também foram discutidos temas relevantes da política sexual como, por exemplo, os direitos das famílias LGBTQIA+. Também foram eleitos quatro novos membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: Stuardo Ralón (Guatemala), para um segundo mandato; Arif Bulkan (Guiana); Glória Monique Mees (Suriname); e Andrea Pochak (Argentina). Essa eleição foi precedida por uma dinâmica conturbada em que vários países, inclusive o Brasil, apresentaram e retiraram suas/seus candidatas/os. Por efeito desse tumulto,  a advogada feminista chilena Lydia Casas, cuja candidatura foi brutalmente atacada pela ultradireita, não conseguiu os votos necessários para ocupar uma das cadeiras da Comissão. 

Direitos LGBTQIA+

A aprovação de lei draconiana contra pessoas homossexuais em Uganda está entre as notícias mais impactantes do primeiro semestre. O texto foi aprovado em março pelo Parlamento e promulgado pelo presidente no final de maio. As disposições são brutais: a conduta considerada “homossexualidade agravada” está sujeita à condenação à morte e o recém-criado crime de “promoção da homossexualidade” pode levar à pena de 20 anos de encarceramento. A homossexualidade já era definida como crime pelo código penal ugandense, podendo levar à prisão perpétua. Contudo, o retrocesso da lei deste ano ampliou o choque e a indignação na comunidade LGBTQIA+. Compilamos as reações e análises.

No Quênia, projeto de lei apresentado ao Parlamento amplia a repressão contra as relações sexuais entre as pessoas do mesmo sexo, estipulando prisão perpétua como punição. Do mesmo modo, na Tanzânia, uma nova iniciativa legislativa endurece dramaticamente a punição contra homossexuais e, assim como em Uganda, propõe pena de morte para o crime hoje definido como “ofensa antinatural”. Em Camarões, o Conselho Nacional de Comunicações proibiu a exibição de programas televisivos com conteúdo “propagador da homossexualidade”, com o pretexto de “proteger as crianças”. No Burundi, mais de 20 pessoas estão sendo processadas por “prática homossexual e incitação à homossexualidade”, depois de uma ação policial contra um seminário sobre HIV/Aids sediado na capital do país.

Na Índia, a Suprema Corte está julgando várias ações que demandam o reconhecimento da constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, apresentadas ao tribunal desde que a homossexualidade foi descriminalizada pela Corte, em 2018. Mas o governo Modi tem pressionado publicamente para que essas demandas sejam negadas. Essa pressão difere do que disse um líder religioso que apoia o BJP ao afirmar, no passado, que a homossexualidade é natural (biológica) e um modo de vida e que, portanto, homossexuais sempre têm o “direito de viver”. 

No Kwait, mesmo quando o Tribunal Constitucional tenha derrubado uma lei que criminaliza “imitação do sexo oposto”, a vida cotidiana das pessoas trans permanece sujeita a estigma, violência e abusos.

Na América Latina, a notícia mais negativa vem do Panamá, onde a Suprema Corte rejeitou o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, alegando que essa demanda não pode ser interpretada como um direito humano. Esse é um conhecido argumento do ultraconservadorismo religioso e secular que desqualifica as reivindicações de direitos humanos em relação à sexualidade como “novos direitos que não se justificam”.  

Boas notícias

Como sempre, apesar de muitas sombras, há boas novas a registrar. Entre as mais significativas, a aprovação definitiva, em fevereiro, pelo Congresso da Espanha, da lei que amplia os direitos das pessoas trans, autorizando a livre autodeterminação do gênero a partir dos 16 anos (saiba mais em matéria do El País). Também noticiamos com entusiasmo que a Comissão Africana de Direitos Humanos aprovou, em março, resolução condenando cirurgias de crianças intersexuais como violação do direito à diversidade corporal. 

No Quênia, onde a situação dos direitos LGBTQIA+ vem se agravando, a Suprema Corte decidiu em favor da Comissão Nacional dos Direitos Humanos de Gays e Lésbicas, que é uma plataforma da sociedade civil, derrubando a recusa de registro ao grupo definida 2013. Na Namíbia, onde a homossexualidade ainda é criminalizada, como relata reportagem do The Guardian, a Corte Suprema reconheceu a legitimidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo realizados exterior. 

Na Ásia, um tribunal sul-coreano derrubou a decisão de instância inferior que impedia que parceiros homossexuais compartilhassem de um mesmo plano de saúde. O caso vai ser levado à Corte Suprema e poderá ampliar as prerrogativas civis de casais do mesmo sexo. Em Taiwan, no mês de maio, o Parlamento aprovou lei que concede a casais do mesmo sexo o direito à adoção. Em Hong Kong, apesar da crescente repressão ao ativismo LGBTQIA+ na China, a Suprema Corte declarou inconstitucional lei que exigia cirurgia de redesignação sexual como condição para a mudança da identidade social de gênero na carteira de identidade. E, no fim de junho, a Suprema Corte do Nepal, em decisão histórica, determinou que casamentos entre pessoas do mesmo sexo sejam reconhecidos em todo o país,  mesmo quando o código civil defina o casamento como união entre um homem e uma mulher. Assim, o Tribunal abre caminho para que a igualdade seja prevista em lei no futuro. Com esta decisão, o Nepal torna-se o segundo país do continente a reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo e volta a protagonizar um importante pioneirismo em matéria de política sexual – depois da também importante proteção a pessoas LGBTQIA+ conferida pela Constituição de 2008 (saiba mais em artigo da Human Rights Watch, em inglês).

Nas Ilhas Cook, o Parlamento descriminalizou a homossexualidade ao aprovar reforma da lei criminal herdada da colonização britânica. E, finalmente, no Brasil, foi anunciado o modelo de uma nova carteira de identidade nacional que elimina o campo “sexo” assim como a distinção entre nome de registro civil e nome social. 

Aborto e direitos reprodutivos

Estados Unidos

Nos EUA, completou-se um ano desde que a decisão Dobbs derrogou a sentença de 1973 que reconheceu a constitucionalidade do direito ao aborto. Françoise Girard analisa em detalhe a devastação causada pela decisão na vida das mulheres de todas as idades, classe e raças. Mas também chama atenção para as resistências de governadores e legisladores (federais e estaduais). Sobretudo, sublinha que todas as pesquisas de opinião e referendos feitos sobre a matéria, desde 2022, reafirmaram o apoio público ao direito ao aborto. Recomendamos tanto a compilação de balanços iniciais sobre a decisão Dobbs que fizemos um ano atrás quanto uma nova seleção de artigos e análise sobre seus impactos. 

No contexto pós-Dobbs, o acesso ao aborto farmacológico, regulamentado no país há mais de 20 anos, se tornou crucial e, como era previsível, foi rapidamente judicializado. O litígio começou com a decisão de um juiz federal do Texas que suspendeu a comercialização do medicamento mifepristona no início de abril, medida que seria revogada por Tribunal Federal regional que, contudo, não restaurou as condições originais de acesso. Em meados de abril, a Suprema Corte restaurou temporariamente, por liminar, o acesso integral ao medicamento. 

Essa decisão foi intrigante, já que apoiada pela maioria dos juízes conservadores do tribunal, com exceção de Samuel Alito e Clarence Thomas. Para alguns, ela poderia se explicar pela influência dos poderosos interesses comerciais da indústria farmacêutica.  Entretanto, é preciso dizer que a decisão poderá ser revertida no futuro. Num artigo para o NYT, Michelle Goldberg anunciou, por exemplo, que o campo conservador teria planos de ressuscitar a Lei contra a Obscenidade, do século 19 (Lei Comstock), para conseguir esse objetivo. A Lei Comstock foi usada no começo do século 20 para perseguir e criminalizar feministas que promoviam o acesso à contracepção, como Margareth Sanger e Emma Goldman. Além disso, as restrições ao direitos ao aborto continuam se alargando em vários estados, como na Flórida, na Carolina do Sul – que criminalizou o aborto após seis semanas de gestação – e no Wyoming, que sancionou a primeira lei criminalizando prescrição, venda e distribuição de aborto medicamentoso. 

Outros países 

No Brasil, foi anunciado recentemente que a ação conhecida como ADPF 442/2017, que questiona a constitucionalidade dos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto, poderá ainda este ano ser colocada em julgamento. Ao mesmo tempo, registram-se ofensivas ao direito ao aborto legal gravado na lei. Em Alagoas, a Câmara de Maceió aprovou lei que determina o uso na rede pública de vídeos mostrando riscos e consequências do aborto legal, uma ação claramente destinada a emperrar o acesso ao procedimento. E, em Santa Catarina, as advogadas que atuaram em defesa da menina de 10 anos, cujo aborto legal após estupro foi atacado por setores conservadores, foram indiciadas.  

De El Salvador veio a notícia de que o caso Beatriz, que está sendo julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tem um bom prognóstico. Muito possivelmente o Estado salvadorenho será condenado a reparar a família da jovem morta por complicações de uma gestação de alto risco que não teve a interrupção autorizada e a adotar medidas de não repetição, o que significa suspender as atuais restrições draconianas ao aborto. Existe um amplo consenso entre especialistas de que a decisão do caso Beatriz vai alterar positivamente a jurisprudência da Corte em relação ao direito ao aborto.

Do Peru, por sua vez, nos chega a notícia que o Estado foi condenado pelo Comitê de Direitos das Crianças da ONU por ter impedido a jovem Camila a interromper uma gravidez resultante de estupro. A decisão recomenda ao Estado peruano que revogue a criminalização do aborto em todos os casos de gravidez infantil (menores de 14 anos), assim como que assegure a implementação de serviços de atenção ao aborto incompleto. Veja o que dizem os dados sobre gestações infantis no Peru. 

Argentina e Honduras adotaram políticas para garantir acesso a fármacos essenciais para o exercício dos direitos reprodutivos. No país sul-americano, em março, a comercialização da mifepristona em farmácias foi autorizada pelo órgão regulador, cumprindo uma disposição da lei que legalizou o aborto em 2020 (mais detalhes aqui em espanhol). Em Honduras, a presidente Xiomara Castro assinou, no Dia da Mulher (08 de março), decreto liberando a venda de pílulas do dia seguinte, que estavam proibidas no país desde 2009.

Mesmo no Brasil, há boas novas. O Tribunal de Justiça autorizou o procedimento em gestante cujo feto não tinha viabilidade extrauterina, após indeferimento para realização do procedimento em juizado de primeira instância. A corte argumentou que a recusa significava “punição dupla” à gestante e “criminalização da interrupção da gravidez”, posição que, segundo reportagem do UOL, é muito frequente entre juízes de primeira instância do estado de São Paulo. A segunda notícia muito positiva é que o Comitê da ONU, ao revisar as politicas nacionais, recomendou ao Estado brasileiro que o aborto seja descriminalizado no país.

Finalmente, em junho, o Consórcio Latino Americano contra o Aborto Inseguro – CLACAI – realizou sua conferência regional sobre o Direito ao Aborto no Panamá, reunindo centenas de ativistas, pesquisadoras/es e profissionais de saúde. O El País publicou uma boa matéria sobre o evento e seus debates principais.

Lamentavelmente, mais uma vez damos destaque a uma má notícia da Polônia: continua aumentando o número de mulheres mortas em decorrência da negação ao procedimento de interrupção da gravidez. Em maio, milhares de pessoas foram às ruas protestar contra a morte de Dorota Lalik, que tinha 33 anos. Entretanto, há boas notícias a registrar na América Latina.

#MeToo

Passados mais de cinco anos, os rastros e efeitos do #MeToo seguem seu curso. No âmbito transnacional, uma nova onda deflagrou-se a partir de um artigo publicado no livro Sexual Misconduct in Academia, editado pela Routledge, no qual três acadêmicas – uma belga, uma americana de origem indígena e uma portuguesa – denunciam uma pesada atmosfera de assédio moral e sexual no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, dirigido pelo sociólogo Boaventura dos Santos. 

O caso ganhou visibilidade por efeito do manifesto Todas Sabemos, lançado por feministas portuguesas em abril, o que provocou novas denúncias, inclusive de uma deputada estadual de Minas Gerais. A repercussão foi grande, sobretudo na América Latina, onde é ampla a influência do sociólogo que, de imediato, reagiu às acusações (veja uma compilação parcial de matérias sobre o caso). Apesar da grande visibilidade, em julho de 2023, como informa nota do site Buala, ainda não havia sido instalada no CES uma comissão independente de investigação e, por efeito de uma ação judicial, a Routledge retirou o livro de circulação. 

Já no Brasil, a Folha publicou matéria a partir de um estudo inédito sobre ações judiciais contra o assédio sexual que correm na Justiça Militar, ou seja, se referem a casos de estupro e abuso ocorridos no ambiente das Forças Armadas. Uma característica desses processos é a lentidão e procrastinação, assim como a falta de transparência quanto às sanções aplicadas aos agressores. Vale dizer que um padrão equivalente pode ser identificado em muitas outros casos de denúncias e relatos sobre  assédio sexual  como,  por exmplo, no caso do CES acima relatado.  

Prostituição

Em Portugal, trabalhadoras do sexo celebraram decisão da Corte Constitucional que tornou inconstitucional a criminalização do proxenetismo. E, na Colômbia, a nova estrutura do Ministério da Igualdade inclui uma unidade específica para responder a demandas e necessidades das trabalhadoras sexuais.

Despedidas 

Em março, a partida de Jorge Beloqui significou a perda de uma liderança insubstituível da luta contra a AIDS no Brasil e na Argentina. A morte de Jorge foi lamentada em notas públicas do Conselho Nacional de Saúde e da Agência de Notícias da Aids. Em sua nota de pesar, a ABIA definiu Beloqui como “defensor da busca da compreensão dos fatos e verdades pela evidência científica” e “dono de uma visão relevante do cenário global da resposta à AIDS no mundo”.

Em maio, faleceu o geneticista Thomaz Gollop. Sua partida foi lamentada em nota pública assinada por várias feministas que relembraram suas qualidades como “cientista e professor, que abraçou com competência e espírito coletivo a luta por direitos reprodutivos no Brasil”. 

Arte & Sexualidade

Nessa edição lembramos de duas artistas excepcionais que nos deixaram no primeiro semestre de 2023. Em artigo, Sonia Corrêa escreve sobre o lugar de Rita Lee e Tina Turner em sua vida

Recomendamos

Artigos Acadêmicos e de Imprensa

Um Leque de Temáticas, um Arco de Sentimentos: subjetividade, emoções e políticas públicas – dossiê 38 de Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana

Género y política – Número 115 da revista Colombia Internacional

Ultradireita e temas correlatos

Bolsonarismo representa forma de entender o mundo, é estruturante, diz socióloga – Folha de São Paulo

A transfobia é um projeto fascista – Catarinas

O neonazismo à brasileira – Projeto Colabora

Movimento homeschooling apoiou tentativa de golpe – openDemocracy

Escolas cívico-militares: decisão do governo é pouco efetiva e não acaba com militarização, dizem especialistas – G1

Como nos tornamos uma sociedade punitiva? – Revista Cult

Até quando a Lagoinha vai continuar no armário – Folha de São Paulo 

América Latina

Eleições no Equador: a política “post-mortem” – Folha de São Paulo

Nicarágua: Pedagogia da crueldade – Raúl Zibechi

América Latina dividida ante la crisis de Nicaragua – Confidencial

“Mi mamá utiliza hoy como formas de agresión las mismas que usó primero conmigo” – Divergentes

La tentación autoritaria – Le Monde Diplomatique

Javier Milei: o outsider ‘anarcocapitalista’ que ameaça a Argentina – openDemocracy

Livro usa mitologia grega para expor a violência de Fidel Castro contra trans – Folha de São Paulo

Direitos LGBTTIA+ 

Novo acervo da memória LGBTTIA+ na UFMG – NUH 

Pessoas LGBTTIA+ e envelhecimento: uma nova pesquisa

O que está por trás do aumento de casos de HIV entre idosos brasileiros – Folha de São Paulo

Um pouco da jornada legislativa e judiciária do movimento Intersexo no Brasil – Revista Fórum

Aborto 

Direito da mulher ao aborto e acesso a armas dividem brasileiros – Datafolha

Direitos reprodutivos e vigilância: seus dados podem ser usados contra você – Portal Catarinas

ONG de pilotos de avião nos EUA leva grávidas a estados onde aborto é permitido – Folha de São Paulo

HIV/Aids

Brasil só cumpre 1 das 3 metas das Nações Unidas para fim da epidemia de HIV/Aids – Folha de São Paulo

Questões Raciais 

Raça, gênero e imprensa: quem escreve nos principais jornais do Brasil? – Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA/IESP/UERJ)

Multimídia 

Novos dados sobre aborto no Brasil – Podcast O Assunto

Seminário Mapeando e Resistindo ao fantasma do gênero na América Latina 

 



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