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A Flórida é o futuro da política norte-americana? – por Françoise Girard

Estudantes do ensino médio em Tampa (Flórida) protestam contra a lei “Don’t Say Gay” em março de 2022.

O governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, tornou-se o queridinho dos doadores republicanos ansiosos por superar Donald Trump. Embora DeSantis não tenha a capacidade de Trump para encantar e entusiasmar multidões (um talento que desapareceu em mim, mas obviamente não em milhões de americanos!), ele é jovem, inteligente, educado, tem credenciais militares e sabe como ganhar eleições: um candidato apresentável.

Apresentável, mas verdadeiramente assustador. DeSantis ganhou notoriedade ao se posicionar sobre temas como direitos das mulheres, aborto, justiça racial, direitos LGBTQ, armas, imigração, educação, liberdade de expressão e ciência de forma mais à direita até do que Trump. E assim o faz sistemática e implacavelmente. Aos 44 anos de idade, DeSantis pode ter uma longa carreira à frente. Ele é graduado pela Universidade de Yale, onde foi o capitão da equipe universitária de baseball, e pela Faculdade de Direito de Harvard. Serviu como advogado e promotor na Marinha dos EUA, inclusive na Baía de Guantánamo, antes de deixar as Forças Armadas. De 2013 a 2018, DeSantis representou o 6º distrito congressional da Flórida (Nordeste do estado) na Câmara dos Deputados, em Washington, DC. Foi eleito governador da Flórida em 2019 e facilmente reeleito em 2022 (59% dos votos). Ele controla o Legislativo da Flórida (28-12 no Senado e 85-35 na Câmara).

A Flórida parece certamente atrair a extrema-direita. Há uma razão para o golpista e derrotado ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro ter procurado refúgio na Flórida, onde está se aliando a outras figuras de direita. Por exemplo, Bolsonaro reuniu recentemente seus apoiadores no resort Doral Miami, de Trump, num evento organizado pelo Turning Point USA – um grupo de mobilização de jovens de extrema-direita que organizou comícios para Trump e, claro, para Ron DeSantis. “Existe uma ligação muito forte entre grupos e movimentos de extrema-direita no Brasil e grupos de extrema-direita na América, especialmente na Flórida”, diz Feliciano Guimarães, diretor acadêmico do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), sediado no Rio, num artigo recente na revista Time. “A Flórida é um lugar onde a ligação com grupos brasileiros de extrema-direita é mais forte nos Estados Unidos”.

Enquanto esteve no Congresso, DeSantis foi membro fundador da Freedom Caucus, bancada antigoverno e da direita Republicana que manteve, no início do ano, o presidente da Câmara refém e ameaça levar os EUA ao calote na sua dívida.

Mas é na condição de governador que DeSantis mergulhou fundo nas guerras culturais, abrindo novos campos de batalha em nome da proteção das crianças e dos jovens contra o “wokeismo”, e apoiando os direitos parentais e a família tradicional. Essas ideias não surgiram com ele – são desenvolvidas por think tanks de extrema-direita, tais como o Instituto de Manhattan, a Heritage Foundation e o Conselho Americano de Intercâmbio Legislativo (ALEC) -, mas DeSantis tem sido incansável em propagá-las. A cobertura midiática resultante, tanto dos meios de comunicação social mainstream quanto dos de direita, transformou DeSantis no principal desafiante de Trump para a nomeação Republicana de 2024 – embora ele ainda não tenha anunciado formalmente sua candidatura. O que uma presidência DeSantis significaria para mulheres, crianças e jovens? Aqui estão alguns exemplos.

Sobre a Covid-19 e a ciência: DeSantis tem atacado sistematicamente a ciência e a saúde pública. Enquanto inicialmente se alinhou a Trump no desenvolvimento de vacinas e foi visto usando máscara, DeSantis logo se deslocou mais à direita de Trump. Atrasou a garantia de acesso público às vacinas contra a doença, recusando-se mesmo a encomendar previamente vacinas pediátricas para crianças da Flórida quando os imunizantes se tornaram disponíveis pela primeira vez. Em 2021, revogou a obrigatoriedade da máscara em escolas públicas e impôs multa a empresas e hospitais que exigiam prova de vacinação para empregados. Você pode até lembrar-se dele intimidando estudantes a removerem suas máscaras numa conferência de imprensa em março de 2022. No início deste ano, ele propôs a proibição permanente de todas as medidas de mitigação da Covid-19 na Flórida.

Sobre o ensino de gênero e raça nas escolas e universidades: DeSantis tem direcionado o  financiamento estatal para impedir que professores discutam raça e gênero nas escolas públicas, faculdades e universidades da Flórida.

Na Primavera de 2022, DeSantis assinou duas leis com este objetivo em mente. A primeira, HB 1557, a chamada Lei dos Direitos Parentais na Educação, entrou em vigor em março de 2022. Mais conhecida como “Don’t Say Gay”, a HB 1557 procura limitar como – e em qual nível de ensino – professores das escolas públicas possam ensinar sobre identidade de gênero e orientação sexual. Nos termos da lei, crianças do jardim de infância à terceira classe não podem receber qualquer instrução em sala de aula sobre orientação sexual ou identidade de gênero. Mas isso pressupõe que ser heterossexual não é uma orientação sexual, ou que ser cisgênero (expressão do gênero correspondente ao sexo que é atribuído à nascença) não é uma identidade de gênero. Hmmm. E como podem as crianças que se sentem ou sabem que são diferentes, ou que têm familiares ou amigos que são, falarem sobre as suas famílias ou sobre si próprias na sala de aula? A HB 1557 determina também que os professores, em todos os níveis de ensino, não podem abster-se de informar aos pais sobre a “saída do armário” do filho ou adolescente – um sigilo de informação que pode, em alguns casos, ser decisivo para o bem-estar e segurança do filho.

A segunda lei, HB 7, a Lei da Liberdade Individual (de abril de 2022), que DeSantis apelidou de “Stop WOKE Act”, censura a discussão sobre raça e gênero nas escolas e faculdades públicas da Flórida. Curiosamente, é um modelo muito próximo de uma ordem executiva de Trump de setembro de 2020 sobre formação em diversidade na força de trabalho federal: nada de ideias originais aqui! Na conferência de imprensa anunciando a HB 7, DeSantis alegou que a lei iria proibir a Teoria Crítica da Raça (TCR) nas salas de aula. A TCR é um método analítico utilizado desde os anos 80 em algumas escolas de Direito para identificar e criticar o preconceito racial sistêmico em leis, políticas públicas, instituições e no sistema legal dos EUA: não é utilizada como método de ensino em escolas públicas do ensino médio na Flórida ou em outros estados americanos, mas tornou-se um bicho-papão da extrema direita para qualquer tipo de ensino sobre o racismo.

O que a HB 7 proíbe, contudo, inclui o ensino sobre temas importantes, tais como (o meu resumo): preconceitos inconscientes de raça ou de gênero, privilégio branco, privilégio masculino, “cegueira racial”, que os requisitos de “excelência”, “mérito” ou “neutralidade” sejam utilizados para discriminar as mulheres ou os negros, e a necessidade e utilidade de ações afirmativas, cotas ou reparações. Atenção, a HB 7 afirma que os professores podem mencionar estas ideias na sala de aula (Primeira Emenda e o papo sobre liberdade de expressão), mas devem permanecer rigorosamente neutros quando as discutem. Você talvez se pergunte: como pode um professor instruir estudantes do ensino secundário ou universitário sobre a história da escravatura e da segregação nos EUA, ou a luta pela igualdade das mulheres, sem ser capaz de mencionar e discutir os prós e os contras destes importantes conceitos? Não ser capaz de conduzir uma discussão adequada na sala de aula significa que os estudantes nunca poderão avaliar, debater ou criticar completamente o tema – o pré-requisito para desenvolver uma opinião informada. (Sim, já respondi à minha pergunta).

A HB 7 também proíbe a discussão em sala de aula sobre se: “Uma pessoa, em virtude da sua raça, cor, sexo ou origem nacional tem responsabilidade pessoal e deve sentir culpa, angústia, ou outras formas de sofrimento psicológico devido a ações, nas quais a pessoa não desempenhou qualquer papel, cometidas no passado por outros membros da mesma raça, cor, origem nacional ou sexo”. Mais uma vez, como pode um professor conduzir uma lição sobre a escravatura ou pessoas a quem é negado o direito de voto sem que nenhum estudante sinta desconforto? E de que conforto se trata? 

O Conselho Escolar do Condado de Palm Beach (onde vive Trump) denunciou unanimemente a HB 7 como censura, dizendo que a lei “comprometeria a capacidade de um educador para ensinar honestamente história LGBTQ, história negra e as razões históricas por trás da discriminação de gênero e raça”. Esses pais e educadores corajosos acrescentaram: “Estamos [também] preocupados que a HB 1557 possa minar as proteções existentes para os estudantes LGBTQ ao constituir uma barreira para os professores que atualmente fornecem uma sala de aula segura e inclusiva”.

Em janeiro de 2023, DeSantis travou uma luta com o Conselho Universitário (a corporação que concebe e administra testes de admissão e cursos de nível universitário para estudantes do ensino secundário) por causa do seu novo curso de Advanced Placement course on African-American Studies, alegando que este violava a HB 7 e não podia, portanto, ser ensinado nas escolas da Flórida. Em resposta a essa ameaça política, o Conselho Universitário vergonhosamente retirou do currículo a menção de muitos estudiosos afro-americanos contemporâneos e suas obras, relegando-os a projetos de pesquisa opcionais. Entre os que foram retirados incluem-se estudiosos feministas, LGBTQ, e negros queer, como Kimberlé Crenshaw, professora da Universidade de Columbia que ajudou a definir a interseccionalidade como um conceito legal; Roderick Ferguson, um especialista da Universidade de Yale sobre movimentos sociais queer; e bell hooks, a escritora de textos clássicos sobre raça, gênero e classe. O movimento Black Lives Matter também foi eliminado. Simplesmente ultrajante.

Ao mesmo tempo, a HB 1467, adotada em julho de 2022, exige que as escolas da Flórida assegurem que as bibliotecas escolares não contenham qualquer material “pornográfico” ou inapropriado à idade. Segundo as regras do Conselho de Educação que o acompanha, os professores enfrentam agora a perda dos seus certificados de ensino se algum desses livros for encontrado na sala de aula. Isto levou vários conselhos escolares a encobrir ou remover livros das bibliotecas escolares e das salas de aula, enquanto um “especialista em meios de comunicação” revisa-os sob essas novas e opacas regras. A HB 1467, combinada com a HB 7 e a HB 1557, também permite a qualquer pessoa desafiar a utilização de qualquer livro ou material de aprendizagem nas escolas públicas. Um clássico como “O olho mais azul”, da prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison, é agora proibido em mais de 100 escolas secundárias, como resultado da queixa de um único pai. “Ratos e Homens”, de John Steinbeck, “A vida de Rosa Parks” e “Dream”, de Hank Aaron, são também objeto de queixas. Serão todos os livros de e sobre pessoas negras agora suspeitos? Como é que os livros que apresentam casais do mesmo sexo ou crianças LGBTQ vão resistir? E sobre temas de educação sexual, tais como puberdade, contracepção ou masturbação? Que livro pode sobreviver a este massacre? Isto é mais do que preocupante.

Podemos esperar mais desse tipo de medida a partir do próximo ano legislativo da Flórida, com início em 7 de março de 2023. Por exemplo, DeSantis prometeu cortar o financiamento a qualquer programa de diversidade, equidade e inclusão em universidades financiadas pelo estado da Flórida, e que exigiria que apresentassem os seus currículos e listas de leitura para serem examinados. Isto poderia resultar em cortes nos cursos de estudos afro-americanos e de gênero.

Sobre crianças e adolescentes trans: DeSantis é particularmente hostil às crianças e adolescentes trans. Nestes ataques sinistros, ele inclui uma lista crescente de governadores e legisladores republicanos em todo os EUA.

Em junho de 2021, DeSantis assinou SB 1028, o chamado “Ato de justiça no esporte feminino”, um projeto de lei que proíbe as meninas trans de jogarem em equipes desportivas femininas nas escolas públicas. Uma versão anterior do projeto de lei continha uma cláusula que teria permitido a uma escola inspecionar os órgãos genitais de qualquer atleta sujeito a uma queixa – imaginem só! O projeto final de lei aprovado pelo Senado da Flórida exige uma certidão de nascimento que mostre que à atleta foi atribuído o sexo feminino no nascimento. Esta lei iria sem dúvida afetar particularmente as atletas negras, cujo sexo é mais frequentemente questionado do que o das atletas brancas. A lei também permitiria a qualquer estudante processar por danos se uma escola lhe negasse uma “oportunidade atlética” ao permitir que uma moça trans jogasse numa equipe feminina.

Até agora, um processo judicial suspendeu a tramitação do SB 1028, argumentando que: “Ao excluir moças e mulheres transgênero das equipes desportivas femininas e ao forçá-las, se quiserem praticar algum esporte, a juntarem-se a uma equipe que não corresponda nem à sua identidade de gênero nem ao seu atual estatuto físico, o projeto de lei discrimina com base no sexo e no estatuto transgênero, violando a Constituição dos Estados Unidos e o Título IX [proteção federal contra a discriminação com base no sexo]”. Exatamente!

Devo notar que, nos últimos 10 anos, um total de 2 meninas trans procuraram jogar numa equipe escolar feminina na Flórida, e que não existem provas de que as meninas trans gozem de uma indevida vantagem no esporte sobre as meninas a quem foi atribuído o sexo feminino no nascimento. Isto é uma controvérsia claramente fabricada para ganho político.

DeSantis instou então o Conselho de Medicina da Flórida e o Conselho de Medicina Osteopática a proibir a prestação de cuidados de gênero a qualquer pessoa com menos de 18 anos na Flórida. Os órgãos assim fizeram em setembro de 2022. Os cuidados de gênero para adolescentes consistem em grande parte em bloqueadores da puberdade ou tratamento hormonal (estrogênio para meninas trans, testosterona para meninos trans). As novas regras proíbem esse tratamento, bem como a cirurgia, que raramente é realizada em menores. Lembre-se que DeSantis propôs HB 7 e HB 1557 para “reforçar o direito fundamental dos pais a tomarem decisões relativas à educação e controle dos seus filhos”. Isto evidentemente não se aplica aos pais de crianças trans, que enfrentam agora decisões difíceis sobre se devem sair da Flórida para garantir que os seus filhos possam ter acesso a cuidados de saúde. Enquanto isso, médicos na Flórida estão profundamente preocupados com as repercussões destas regras sobre a saúde mental das crianças trans. Uma pesquisa mostra que os cuidados de saúde com base no gênero reduzem a depressão, ansiedade, tentativas e ideias suicidas, distúrbios alimentares e abuso de substâncias. O que pode ser mais importante para um pai do que salvar a vida do seu filho?

DeSantis também se juntou ao grupo republicano que ataca artistas drags e performistas em nome da proteção das crianças. No início deste mês, até revogou a licença de venda de bebidas alcoólicas da Filarmônica de Orlando porque alegadamente tinha permitido crianças assistirem ao espetáculo “O Natal da Drag Queen” nas suas instalações.

Sobre o aborto: Após a Suprema Corte dos Estados Unidos ter derrubado o direito constitucional ao aborto em junho de 2022, DeSantis avançou muito rapidamente para assinar a lei HB 5, um projeto que a legislatura da Flórida já tinha aprovado para proibir o aborto após 15 semanas de gravidez. Pesquisas mostram que aquelas que procuram o aborto mais tarde na gravidez são frequentemente as mais vulneráveis: negras, aquelas com dificuldade para pagar pelo procedimento, imigrantes, mulheres jovens e sobreviventes de violência sexual. Estas são as pessoas agora forçadas a viajar para fora da Flórida para procurar por assistência em aborto.

A HB 5 não tem exceções para gravidez resultante de estupro ou incesto, mas permite que alguém cujo feto tem uma anomalia fatal termine a gravidez em vez de ser forçada a levá-la a termo. Isso está funcionando na prática? Não. O recente caso de Deborah Dorbert, uma mulher de Lakeland, Flórida, a quem foi recusado um aborto legal embora o seu feto tivesse “anomalias devastadoras”, demonstra o efeito terrível das leis restritivas do aborto em todos os cuidados obstétricos, na Flórida e em outros locais. Entretanto, DeSantis indicou que está pronto para assinar uma proibição ainda mais perigosa, com a duração de seis semanas. Catastrófico.

E tem mais! Assumir o controle dos conselhos de administração dos colégios com financiamento público que são considerados “demasiado woke” e despedir os seus administradores? Em curso. Exigir às faculdades e universidades que forneçam informações sobre que cuidados de saúde de gênero suas clínicas universitárias têm prestado aos estudantes? Também acontecendo. Exigir aos estudantes atletas que forneçam às escolas informação mensal sobre os seus períodos menstruais? Suspensos por ora, após pressão fortíssima. Permitir que as pessoas andem com armas escondidas sem autorização e treino? Está prestes a acontecer.

Os estudantes da Flórida têm liderado protestos vigorosos e espirituosos contra estas medidas – o único capítulo animador em tudo isto. Se quiser ajudar, veja a campanha Stand for Freedom Florida. Eles irão convocar uma marcha massiva sobre a legislatura da Flórida em 8 de Março, e precisam de ajuda para pagar pelo transporte. Contribua no GoFundMe: https://linktr.ee/stand_for_freedom 

Isto não vai parar – e não parou – na Flórida, a menos que atuemos. Se DeSantis se tornar o próximo Presidente dos EUA, temo verdadeiramente o que está reservado para as mulheres e os jovens nos EUA e em todo o mundo. A luta em curso é para garantir que a Flórida NÃO seja o futuro da política, aqui ou em qualquer lugar.

Em fúria, solidariedade e amor,

FG

Artigo publicado originalmente em inglês por Françoise Girard, traduzido pela equipe SPW.



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