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A política sexual em 2022: retrospectiva

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Primeiras palavras

Durante 2022, ajustamos nossas lentes de monitoramento e análise da política sexual. Nos dois anos anteriores, nosso enquadramento editorial ficou centrado na pandemia de Covid-19 e seus efeitos. Na medida em que os cenários epidemiológicos dramáticos e brutalmente letais arrefeceram, voltamos a focar nossas lentes para as dinâmicas nacionais e transnacionais da política sexual. Assim sendo, no primeiro informativo de 2022 a pandemia ainda teve um peso significativo. Já nos números subsequentes ampliaram-se gradativamente os conteúdos sobre as políticas do gênero e da sexualidade. 

Os eventos e dinâmicas que ocorreram em 2022 foram tanto impactantes quanto contraditórios. São muitas e contundentes as ilustrações. No primeiro informativo do ano, relatamos como o começo do fim da pandemia estava se sobrepondo à invasão da Ucrânia pela Rússia. Esse, que é o primeiro conflito bélico de grande escala em território europeu desde a Segunda Guerra, se arrasta desde fevereiro de 2022, sem perspectiva de resolução. 

No Brasil, o ano se iniciou com o acirramento de ataques do ex-presidente Bolsonaro ao sistema eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal (STF) e com o agravamento da crise econômica. Mas, apesar de inúmeros obstáculos impostos pelo governo incumbente, as eleições terminaram com a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Celebrada pelo campo democrático e progressista em todo o mundo, essa vitória se espelhou na emocionante cerimônia de posse do novo governo na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no dia 1º de janeiro. E, de imediato, a transição política teve sinais muito positivos. 

Contudo, uma semana mais tarde esse cenário foi avassalado por turba incontida e bem treinada de apoiadores do presidente derrotado que depredaram o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto, numa tentativa frustrada de insuflar um golpe militar. Desde então, vigorosas medidas policiais e judiciais de contenção têm sido tomadas, incluindo prisão de responsáveis institucionais pelas brechas de segurança e apontando, inclusive, para a responsabilização de Bolsonaro. Uma semana mais tarde, Lula substituiu o comandante do exército recém nomeado por descumprimento de seu mandato constitucional.  O agora chamado “domingo infame” e a sequência de eventos que dele se desdobrou indicam que conter e debelar neofascismo será um processo longo e complexo. 

Nessas condições instáveis, como mostra essa retrospectiva, nos instáveis e mutáveis cenários global e nacional brasileiro, o campo da política do gênero e da sexualidade tampouco esteve isento de crises e paradoxos. Mas também contabilizamos boas notícias.

Boa leitura!
Equipe SPW (Sonia Corrêa, Nana Soares e Fábio Grotz)

Nossa produção em 2022

Ao longo do ano, apesar das tensões e instabilidades do cenário brasileiro e da complicada cena global que é nosso terreno de observação, nossa produção foi substantiva e muito diversa. 

Publicações

Em março de 2022, lançamos os resultados do novo ciclo do projeto “Gênero e política na América Latina”: uma publicação composta por oito estudos que atualizam o panorama da política antigênero desde 2019 na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador e Uruguai, assim como na OEA. Este novo esforço de pesquisa visava examinar a intersecção entre as ofensivas antigênero e antiaborto que se desenvolveram na região durante a pandemia Covid-19. O e-book “Políticas antigênero na América Latina em contexto de pandemia” está disponível para download em inglês e espanhol. Os lançamentos de ambas as versões contaram com a presença dos autores e autoras dos capítulos e de comentaristas convidados que fizeram suas leituras a partir de seus contextos. O lançamento regional para a América Latina e o lançamento internacional estão disponíveis no Youtube. 

Em maio, o SPW, em parceria com o Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA) da UFRJ, lançou a publicação “Termos ambíguos do debate político atual: o pequeno dicionário que você não sabia que existia”. Com linguagem simples e apropriada para leitores a partir do Ensino Médio, o dicionário resgata a fabricação e difusão de algumas das expressões mais frequentes do atual debate político brasileiro, como “patriotismo”, “ideologia de gênero”, “marxismo cultural” ou “racismo reverso”. Em poucas páginas, exploramos como e por que essas expressões foram criadas e como são usadas politicamente – em geral, como categorias de acusação. O Dicionário repercutiu em diferentes veículos de comunicação (Folha, O Globo, CBN, TVT, Gênero e Educação, Catarinas e Podcast Oxigênio) e seguimos nos debruçando sobre ele em seu perfil no Instagram. 

Entrevistas

As alianças de Bolsonaro, Putin e Orbán contra o aborto e pela família tradicional – entrevista de Sonia Corrêa à Agência Pública, replicada em veículos espanhóis. 

‘Missing the point’: A conversation with Sonia Corrêa about the emergence and complexities of anti-gender politics at the intersections of human rights and health – Global Public Health

Podcast “Guerras Culturais: Uma Batalha pela Alma do Brasil”, que debateu o tema “Ideologia de Gênero com Sonia Corrêa

Podcast “Ao Ponto” de maio, com o tema “Direito ao aborto: o caso dos EUA e seu reflexo no mundo” analisado por Sonia Corrêa

Podcast Mamilos: “Estamos em uma guerra cultural?”, com participação de Sonia Corrêa

Artigos nossos e de colaboradores 

A ultradireita latino-americana não acaba com a saída de Bolsonaro – Sonia Correa e Juan Elman – openDemocracy

La guerra en Ucrania y la gestación por sustitución – María Luisa Peralta

Políticas anti-género en Latinoamérica en tiempos pandémicos – por Tomás Ojeda

Ideologia antigênero nas políticas educacionais brasileiras: estatização e transnacionalidade – Sonia Corrêa e Marco Aurélio Máximo Prado

Laicidad y secularidad en Brasil: erosión gradual y límites de las normas jurídicas – Sonia Corrêa e Salomão Ximenes

“O laboratório brasileiro: o que se esconde por trás da política das tripas?”, de Sonia Corrêa. O artigo foi traduzido e atualizado para o português. O texto foi apresentado originalmente em um colóquio sobre anti-intelectualismo organizado em Paris, sendo posteriormente publicado em um e-book em francês. 

Eventos

Em março, Sonia Corrêa participou do painel virtual “Movimiento antigénero en la educación superior”, promovido pela Universidade de Chile no contexto do Dia Internacional da Mulher, debate que também contou com a presença da filósofa e teórica estadunidense Judith Butler (o vídeo está disponível aqui e a cobertura completa está no site da Universidade). O tema foi explorado em mais detalhes em entrevista ao programa Palabra Pública, também da universidade. Na entrevista, além da perseguição aos estudos de gênero no Brasil, Jenifer Abate e Sonia Corrêa abordaram também os ataques à linguagem inclusiva, que já têm se traduzido em projetos de lei pelo país.

Ao longo do ano, o SPW, em parceria com as organizações Akahata, Promsex, Puentes e Synergia organizou um ciclo de debates sobre temas relevantes e urgentes em âmbito regional, especialmente para os direitos sexuais e reprodutivos. O ciclo “El Mundo Que Cambia: Conversaciones Sobre Temas Pendientes Y Emergentes” teve 3 encontros, que podem ser acessados abaixo: 

  1. Feminismos essencialistas: um desafio para a luta antipatriarcal
  2. Pandemia de COVID-19: Riscos, ameaças e aprendizagens para os direitos sexuais e reprodutivos 
  3. “Cambios en el escenario político regional y retos para las pautas de género, sexualidad y DH” 

Ainda, a co-coordenadora do SPW, Sonia Correa, participou de múltiplos eventos dentro e fora do país, explorando a temática de políticas antigênero no Brasil e na América Latina. Entre eles, “Anti-gender politics: religious fundamentalism and political neoconservatism” (Berlim, em Março); o seminário BRULAU (Bruxelas, em junho); o High-Level Political Forum (HLPF) on Sustainable Development da ONU, em julho (no painel “Ataque a educação sexual por parte de grupos antigênero, antidireitos, grupos fundamentalistas, partidos de extrema direita e Estados Autoritários em nível local e Global”); a Conferência Global LGBTI da Coalizão pela Igualdade de Direitos (Buenos Aires, em setembro); e o triálogo “Movimentos transnacionais ‘antigênero’ e resistência: Narrativas & Intervenções”, em Londres, em dezembro (o debate está disponível no Youtube). 

Legados da pandemia: descaminhos e novos caminhos da democracia

Em 2022, os efeitos econômicos e epidemiológicos da pandemia continuaram a repercutir. Diversas nações lidaram com surtos da doença ao longo do ano. E isso não deve ser compreendido fora do quadro de desigualdades que se refletiu, muito marcadamente, na distribuição de vacinas ao redor do planeta – o New York Times disponibilizou ferramenta de rastreamento de imunizantes que dimensionou esse quadro perverso. Em 2022, o mundo ultrapassou a marca de mais de 6 milhões de mortes pela doença. Além da sombra densa de dor e luto, também restaram sequelas epidemiológicas de longo curso ainda mal compreendidas e legados socioeconômicos drásticos que tampouco serão equacionados a curto prazo. A orfandade é um desses efeitos terríveis. E as agruras econômicas não foram menos colossais: miséria, fome, empobrecimento e inflação tornaram-se fenômenos crescentes e persistentes no mundo pós-pandemia. As cadeias globais de produção e fornecimento passaram por 2022 ainda em busca de recuperação diante dos desajustes causados pelo vírus. E, não menos problemático, foi o crescimento da desigualdade, fenômeno monitorado e analisado pela Oxfam. O último relatório da organização demonstrou que, nos últimos dois anos, o 1% mais abastado do mundo abocanhou 2/3 de toda a riqueza produzida. 

Concomitantemente, o relatório do instituto sueco V-DEM informa que a tendência de desdemocratização registrada nos últimos anos não só progrediu como vem se acelerando. Como sublinha o informe, nesse contexto, a guerra contra a Ucrânia tem um significado denso. A teia de elementos que antecedem o conflito e seus efeitos, bem como seus significados para a ordem democrática global, foram analisados no nosso boletim de março-maio. Essa nova guerra europeia se adiciona a conflitos anteriores que tampouco arrefeceram, como é o caso da crise na região do Tigray (Etiópia) e de outros conflitos localizados na África, assim como da perene tensão Israel-Palestina. 

Mas o relatório V-DEM aponta, sobretudo, para o retrocesso dos indicadores de democracia aos níveis da década de 1980. São muitos os exemplos. Na China, onde a Covid-19 surgiu em 2020, os surtos continuaram desde então e foram, até recentemente, respondidos com medidas extremas de restrição a liberdades fundamentais. Uma vez abandonadas, após protestos eclodirem por todo o país, a consequência sanitária foi dramática. 

Ainda na Ásia, o Sri Lanka enfrentou uma profunda crise econômica e política que desencadeou protestos massivos, culminando na fuga do presidente e na instalação de uma dura repressão contra os opositores. Nas Filipinas, a eleição de Ferdinand “Bongbong”  Marcos Jr, filho do ex-ditador Ferdinand Marcos, reacendeu memórias do período de exceção dos anos 70 e 80, além projetar a continuidade do enredo de violações de direitos humanos e de repressão estatal característicos da gestão anterior (de Rodrigo Duterte, cuja filha foi eleita vice-presidente na chapa de Ferdinand). A situação política no Afeganistão, sob o governo do Taliban, hoje quase esquecida, é também dramática

Na América Latina, o regime Ortega-Murillo endureceu ainda mais seu projeto autoritário, expulsando a representação da OEA da Nicarágua e perseguindo organizações feministas. A deterioração democrática do país é obra de mais de década e, nos anos recentes, agravou-se, com perseguição contínua e sistemática a opositores e críticos do regime. O núncio apostólico foi expulso do país em março de 2022 e, em seguida, o bispo de Matagalpa e sua equipe foram detidos. No final do ano, o regime Ortega venceu amplamente as eleições municipais, desfecho eleitoral que confirma o que críticos e especialistas vinham apontando: a consolidação definitiva de um regime de partido único que encena um simulacro atroz de democracia. No vizinho El Salvador, o presidente Bukele reiterou suas já conhecidas intenções antidemocráticas: alguns meses depois de ter decretado estado de exceção, anunciou que vai tentar a reeleição – proibida pela Constituição – sob a justificativa de combate a gangues. Ignacio Arana analisa neste artigo o giro autoritário de Bukele.

Na Europa, no mês de abril Viktor Orbán foi reeleito primeiro-ministro da Hungria pela quarta vez consecutiva. Seu partido obteve maioria absoluta no escrutínio parlamentar, o que é revelador da consolidação do projeto autocrático instalado no país. A Polônia continua sendo governada pelo hiperconservador PIS (Partido Lei e Justiça) que, entretanto, por efeito de Orbán, distanciou-se da Hungria. Também é necessário mencionar o recrudescimento do autocratismo na Sérvia, cujo presidente Vusic vem da tradição nacionalista extremista de Milosevic. Na Europa, contudo, os sinais mais preocupantes vêm da Itália e da Suécia, onde forças de ultradireita chegaram ao poder. Na Suécia, a ultradireita será parte de uma coalizão com a direita tradicional, mas isso significa uma séria derrota para a longa tradição social democrata do país. Na Itália, a vitória do partido de Giorgia Meloni posicionou o neofascismo em inquietante protagonismo na Europa ocidental. Destacamos análise da Folha de São Paulo e do jornal argentino Página 12. Também foi motivo de preocupação o avanço da extrema-direita na Espanha, nas eleições regionais de León e Castilla do início de 2022. 

Nesse contexto sombrio, as vitórias eleitorais do centro e da esquerda na Europa e na América Latina devem ser celebradas. A reeleição de Emmanuel Macron na França impediu a chegada ao poder da extrema-direita de Marine Le Pen e, sobretudo, a eleição isolou o extremista Zemmour. Mas Le Pen teve uma expressiva votação, numa campanha assombrada por esse espectro da ultradireita. Como bem sintetizou Jamil Chade, Macron foi reeleito, mas a extrema-direita venceu.

Desfechos eleitorais alentadores vieram sobretudo da Colômbia e do Brasil. Gustavo Petro venceu o pleito presidencial em junho, tornando-se o primeiro chefe de governo de esquerda da Colômbia. No Brasil, o líder de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva derrotou Jair Bolsonaro em disputa acirradíssima realizada em outubro. O resultado eleitoral foi amplamente comemorado nas ruas porque abriu possibilidade de retomada de princípios, valores e processos democráticos que vinham sob sistemático ataque desde 2019. A composição ministerial da gestão Lula foi um passo importante nesta direção. O período de transição e o início de governo, no entanto, revelaram de maneira drástica a escala da desdemocratização vivida pelo país nos últimos quatro anos. Com o governo já empossado, a deplorável invasão das sedes dos três Poderes, depredadas em 8 de janeiro, entregou ao país imagens chocantes que podem ser verificadas nessa compilação de análises sobre o domingo infame. 

Essas cenas terríveis são sintomáticas do que Sonia Corrêa e Juan Elman apontavam, logo após as eleições de outubro. Serão renitentes os legados de erosão democrática e instalação de dinâmicas neofascistas deixadas pelo regime de Bolsonaro e, apesar dos efeitos positivos das recentes vitórias de forças de esquerda, as condições regionais de desigualdade social e descrédito nos sistemas políticos nutrem a ultradireita e tendências autocráticas.  O rechaço da nova constituição chilena, resultado das demandas do estalido social, em setembro, que é um sintoma disso, favorece os prospectos do ultradireitista José Antonio Kast, e com razão. O evento foi objeto de inúmeras análises, algumas das quais estão aqui compiladas

Política antigênero

A fantasmagoria antigênero não arrefeceu. A Guerra da Ucrânia foi bastante representativa de como esse espectro está conectado aos múltiplos e distintos eventos que transcorrem pelo mundo. Não devem, portanto, ser lidos como um fenômeno político e ideológico específico. Putin, em discurso de outubro, atacou os direitos LGBTQIA+, reiterando narrativas binárias sobre gênero e sexualidade que ecoam concepções de masculinidade tóxica, da qual é figura-mor. Na sua lógica, comportamentos não-binários são uma ameaça e integram o rol de elementos que apoiam seus desígnios bélicos e geopolíticos. A invasão da Ucrânia, como já tinha expressado o patriarca ortodoxo de Moscou, é descrita por Putin como um esforço para “conter a imposição ocidental do ‘homossexualismo’”. Na própria Ucrânia, a condição das mulheres trans também foi motivo de alarme, dado que muitas delas não conseguiram deixar o país. Sob lei marcial, cruzar a fronteira para uma pessoa do “sexo biológico masculino”, cuja identidade de gênero não corresponda, é proibido por causa do alistamento obrigatório para homens em idade militar.   

No final do ano, mais um lance antigênero do regime de Putin impossível de ignorar: o endurecimento na da legislação anti-LGBT.

No Brasil, foram relevantes as movimentações internacionais de autoridades do então governo Bolsonaro em relação a agendas que se espraiam em torno ao repúdio ao gênero, à oposição radical ao aborto e à defesa da “família natural”. As faces mais notórias dessa movimentação eram Angela Gandra, a ex-secretária Nacional da Família, e Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, assim como a nova ministra que assumiu o posto em abril quando Damares se candidatou ao Senado. Foi ampla e extensa a movimentação transnacional desse grupo, em especial da ex-secretária Angela Gandra que, desde 2021, atuou como uma chanceler de segunda linha para a agenda hiperconservadora. A intensidade desses périplos pode ser verificada num relatório enviado por um grupo de ONGs e pesquisadoras/es para a equipe de transição do governo Lula que cobre o período de 2019 a 2022.  

Boa parte dessas articulações tinham como objetivo ampliar adesão ao Consenso de Genebra, plataforma conservadora de oposição ao direitos reprodutivos e ao aborto e de promoção da “família natural” que foi fomentada pelo governo Trump em 2020. O Brasil foi seu coordenador entre a derrota de Trump e novembro de 2022, quando o bastão foi passado à Hungria. Em 17 de janeiro de 2023, quando esse balanço estava sendo finalizado, o Brasil deixou o Consenso, assim como já haviam feito os governos Biden e Petro. Mas o tema da proteção familiar também foi objeto dessas articulações, em especial com a Hungria e os Emirados Árabes.  

Ainda no Brasil, as maquinações antigênero conseguiram aprovar, na Câmara dos Deputados, no final de maio, projeto de lei que legaliza a educação familiar (homeschooling) como diretriz educacional. A lei está no Senado, onde já foi objeto de uma audiência pública, havendo expectativa de que sua tramitação seja retardada. Essa lei é um franco desdobramento das guerras contra “gênero” e “ideologia” na educação em curso desde 2013 e, como bem apontou Salomão Ximenes em artigo publicado no UOL, significa uma ruptura com os parâmetros de uma política educacional democrática que tem vigorado no país nas últimas décadas. Nesse contexto, foi importante que um recurso – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 942 – tenha sido apresentado no STF contra a instrumentalização do Disque 100. O canal foi originalmente projetado para receber denúncias de violação de Direitos Humanos, mas passou, no governo Bolsonaro, a ser usado para constranger profissionais da educação e saúde que abordassem, por exemplo, questões como vacinação, gênero e sexualidade sob ótica inclusiva e cidadã.  Ainda na América do Sul, na Argentina ocorreram outros episódios emblemáticos da ofensiva antigênero na educação: o governo de Buenos Aires adotou uma resolução proibindo professores de usar linguagem inclusiva em sala de aula, porque estes supostamente dificultariam o aprendizado. A proibição tem sido intensamente criticada, como relembra este artigo do Página 12

Nos EUA, sobretudo a ofensiva antigênero que tem como alvo principal os direitos trans, especialmente de crianças e adolescentes, escalou de maneira geométrica. Até março de 2022, quase 240 projetos de lei discriminatórios já haviam sido apresentados em legislaturas estaduais, tendo como alvo distintos espaços e dimensões da vida cotidiana (uso de banheiros, participação em esportes, assistência à saúde, acesso a livros). No início de 2023, um projeto de lei apresentado na Dakota do Norte ilustra o elevado grau de obsessão e discriminação dessa ofensiva: patrões que recebem verba pública e empregados públicos ficariam obrigados a identificar pessoas trans com base no DNA. Nem mesmo a Disney escapou da fúria discriminatória e acabou perdendo benefícios fiscais por se posicionar contra a lei do estado da Flórida que restringiu o debate sobre sexualidade nas escolas.  

A Hungria também foi objeto recorrente em nossos boletins. Orbán conseguiu mais uma vitória eleitoral mas, por outro lado, sofreu derrota em referendo que ratificaria legislação proibindo a exposição de menores de idade ao que o governo classifica de “ideologia LGBT”. Contudo, a maioria congressual absoluta obtida por Orbán indica fôlego e força política para investidas similares nos próximos anos. Além disso, como analisou matéria da BBC, o sistema educacional como um todo está sujeito a um flagrante policiamento ideológico.

Na Coreia do Sul, o presidente eleito em março conduziu sua campanha prometendo flexibilização de direitos trabalhistas e tem avançado com seu plano de extinguir o Ministério da Igualdade de Gênero, sob o argumento de que as sul-coreanas não sofrem “discriminação”. Yoon Suk-yeol é católico, e não é absurdo supor que suas posições sobre a matéria sejam influenciadas pela visão do campo ultracatólico onde se gestou a fantasmagoria antigênero.  

Por fim, o mundo dos esportes foi palco de retrocesso deletério: em junho, a Federação Internacional de Natação (FINA) adotou regra ténico-médica que restringiu a participação de mulheres trans em competições aquáticas. Nana Soares analisou a decisão intrigantemente tomada durante o Mundial de Esportes Aquáticos, em Budapeste. 

Feminismos essencialistas

No curso das ofensivas antigênero de 2022, em muitos países tiveram destaque as mobilizações ativistas por feministas essencialistas que se opõem ao gênero. Uma vez mais isso aconteceu na Espanha, onde o processamento da lei trans que seguia seu curso foi marcado pela intensidade das vozes feministas contrárias à autodeterminação das pessoas trans. Na Argentina, o Censo ocorrido em maio incluiu, pela primeira vez na história, questões sobre identidade de gênero, não sem antes ser objeto de investida de um grupo feminista essencialista pedindo a retirada desse item.

No Reino Unido, a movimentação antigênero gira fundamentalmente em torno dos direitos das pessoas trans movidas por essas correntes feministas que, desde 2020, vêm ganhando influência crescente sobre a mídia e o poder estatal. Esse alinhamento governamental foi manifestado por várias autoridades do governo Johnson, que renunciou em julho, e pelo próprio primeiro-ministro. Johnson, por exemplo, declarou-se contrário à participação de mulheres trans em modalidades femininas de esportes e sua gestão proibiu as chamadas “terapias de conversão”, mas excluindo da norma as pessoas trans. Isso causou indignação, levando ao boicote de uma conferência global que o governo organizava para celebrar os 50 anos da Parada do Orgulho em Londres. 

A mesma linha foi adotada pelo novo primeiro-ministro Rishi Sunak, que inclusive foi mais longe. A Escócia, que é parte do Reino Unido, discutiu ao longo do ano uma nova lei de identidade de gênero que se aplica a pessoas com mais de 16 anos e, na linha de outras legislações, como a argentina (de 2012), suspende a necessidade de diagnóstico. Na sua tramitação, a lei foi objeto de ataques virulentos por parte do feminismo antigênero que tem em JK Rowling sua porta-voz principal. Mas também, surpreendentemente, da Relatora para Violência de Gênero da ONU, já que o sistema internacional de direitos humanos conta com jurisprudência sobre a matéria. Mas a lei foi aprovada em 22 de dezembro e comemorada no país, inclusive pela primeira-ministra Nicolas Sturgeon. Sunak, contudo, anunciou que iria bloquear a adoção da lei, o que de fato fez no início de 2023. Essa medida suscitou não só a indignação da comunidade trans e seus aliados, como também mobilizou ainda mais os sentimentos separatistas escoceses que, desde o Brexit, estão a flor da pele.  

No Brasil, gerou ampla repercussão artigo da feminista Djamila Ribeiro em que a autora critica o uso crescente da expressão “pessoas que menstruam”. Como mostra nossa  compilação, o artigo suscitou muitas reações e um amplo debate. Uma avaliação preliminar da controvérsia na imprensa (não nas redes sociais) sugere que prevaleceram visões que discordam do argumento da autora, são favoráveis aos direitos de identidade de gênero e não consideram que os mesmos incitam a exclusão das mulheres. 

Direitos LGBTQIA+

Apesar de ameaças e tensões, o ano teve boas notícias no campo dos direitos LGBTQIA+, mesmo quando em alguns casos os avanços não estejam isentos de contradições. No México, o casamento entre pessoas do mesmo sexo passou a ser legal em todo o país em outubro, quando um grupo de estados – Jalisco, Guerrero, Estado do México, Tabasco e Tamaulipas – aprovaram projetos de lei nesse sentido. 

Em Cuba, referendo aprovou o novo Código familiar que reconhece a possibilidade de casamento homoafetivo. A notícia é positiva mesmo quando o sentido da consulta tenha sido criticado por vozes dissidentes. Também no Caribe, a Ilha de São Cristóvão e Neves derrubou legislação da era colonial que criminalizava sexo entre homens, passando a reconhecer a conduta como protegida pelo direito à privacidade. Em dezembro, foi a vez de Barbados descriminalizar relações entre pessoas do mesmo sexo, após decisão da Corte Suprema, decisão muito significativa em razão do peso político de Barbados no Caribe de língua inglesa.

Na Europa, a Eslovênia aprovou o casamento e a adoção para casais do mesmos sexo, convertendo-se no primeiro país do Leste Europeu a adotar legislação com esse conteúdo. Em dezembro, na Espanha, os deputados aprovaram legislação que permite sem burocracia a mudança de nome e identidade de gênero no documento oficial para pessoas a partir dos 16 anos. E, como já mencionado acima, o mesmo aconteceu na Escócia, estando a lei agora sob embargo do Reino Unido, o que possivelmente vai se desdobrar num litígio constitucional. 

Na Ásia, o governo de Singapura anunciou, em agosto, o plano de despenalizar a relação sexual entre homens, abolindo lei herdada da colonização britânica. No entanto, o anúncio foi acompanhado do intento de inviabilizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, através de uma medida que “protege” a definição constitucional de casamento. Na Índia, a Suprema Corte decidiu em favor de benefícios sociais de casais do mesmo sexo. 

E o Ministério da Saúde do Vietnã anunciou que não vai mais considerar a homossexualidade uma doença e que as chamadas terapias de conversão seriam proibidas. Nova Zelândia e Grécia também proibiram as “terapias de conversão”. 

Em contraste, lamentamos noticiar a profusão de discursos e medidas lgbtfóbicas ocorridos no Qatar durante a Copa do Mundo de futebol. Isso possivelmente teve e terá potenciais impactos muito negativos sobre a vida das pessoas LGBTIA+ na região como um todo. Inclusive, como observa uma matéria do DW, os impactos dos protestos que aconteceram durante a Copa também podem ter adicionado água ao moinho desses efeitos deletérios. 

Por fim, cabe relembrar que uma tendência perturbadora e preocupante em 2022, foram inúmeros ataques a paradas do Orgulho, conforme reportamos no boletim de junho.

Aborto

O principal evento no campo do direito ao aborto foi sem dúvida a derrubada de Roe vs Wade pela Suprema Corte dos EUA. O vazamento em maio da minuta que selaria o fim do direito foi objeto de análise pelo SPW, que apontava para a culminação de décadas de reação e organização conservadora. A decisão final da maioria conservadora do tribunal, anunciada em 24 de junho, representou um evento sísmico no cenário dos direitos reprodutivos, tanto pela centralidade geopolítica dos EUA quanto pelos significados e repercussões legais, sociais e sanitárias. Produzimos compilação analítica, buscando oferecer o panorama mais completo e aprofundado possível sobre o retrocesso. Em especial, sugerimos a série de vídeos feita com comentários da co-coordenadora do SPW Sonia Corrêa. Também destacamos a cobertura feita pela parceira Françoise Girard, que argutamente percebeu e analisou o efeito colateral progressista que a derrubada de Roe vs Wade teve nas eleições de meio mandato.

É preciso mencionar que, na contramão desse retrocesso, a FDA (Food and Drug Administration) – equivalente à Anvisa brasileira – autorizou, no início de janeiro, que farmácias possam vender pílulas abortivas. A decisão amplia consideravelmente o acesso das mulheres norte-americanas à prática. Françoise Girard analisou o caso.

Ainda no campo do direito ao aborto, noticiamos os efeitos negativos da guerra da Ucrânia para refugiadas em busca do procedimento. E, no Brasil, os ataques ao direito aborto foram marcados pela cartilha mentirosa promovida pelo Ministério da Saúde na gestão Bolsonaro. O documento “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” buscava desinformar e dificultar o acesso de mulheres ao procedimento. Após as críticas, a cartilha foi relançada e mesmo assim manteve informações distorcidas. O ano também foi marcado pelo enredo vil e abjeto que colheu uma menina de 11 anos, moradora de Santa Catarina. Estuprada, a jovem foi vítima de assédio e constrangimento durante o processo para conseguir interromper a gestação. Feito o procedimento, as investidas ultraconservadoras continuaram, alcançando os médicos que cuidaram da menina. Produzimos compilação sobre o caso. O Portal Catarinas também fez uma importante análise sobre o cerco ao aborto legal. Em dezembro, esse mesmo cerco conseguiu pautar, na Comissão dos Direitos da Mulher da Câmara, o famigerado Estatuto do Nascituro, que equipara o embrião a crianças e torna ilegal o procedimento em qualquer circunstância. 

Houve, sim, boas notícias na trincheira do aborto. O Tribunal Constitucional da Colômbia despenalizou o procedimento até a 24ª semana de gestação, uma decisão histórica e muito relevante no cenário latinoamericano. O movimento Causa Justa fez um balanço dos seis meses da decisão. Já no México, onde em setembro de 2021 a Suprema Corte tinha julgado inconstitucional a criminalização da prática, os estados de Sinaloa, Guerrero e Baja California Sur descriminalizaram o procedimento.

No final do ano, a Assembleia da França inscreveu o direito na Constituição. Em maio, a Espanha aprovou a revisão da legislação, autorizando jovens de 16 e 17 anos a interromper a gestação. Em setembro, na Índia, decisão da Suprema Corte estendeu o direito ao aborto para mulheres solteiras. 

Violência e Me Too

O ano trouxe notícias desoladoras, para não dizer tétricas. Muito especialmente em termos de violência sexual e feminicídio. O Fórum de Segurança Brasileiro publicou levantamento enumerando os dados infames de um estupro a cada 10 minutos e de um assassinato de mulher a cada sete horas.

Também destacamos o debate em torno da violência política, que ganhou visibilidade ao longo da gestão do ex-presidente Bolsonaro. O relator especial da Organização das Nações Unidas sobre a liberdade de reunião e de associação, Clément Nyaletsossi Voule, veio ao país e falou sobre o recorte de gênero e racial da violência política.

Por fim, mas não menos relevante, foi a ampla repercussão midiática e social do julgamento do litígio entre a atriz Amber Heard e seu ex-marido, o também ator Johnny Depp. O evento foi acompanhado por um aluvião de misoginia e ataques antifeministas nas redes, à medida que, conforme apontaram alguns veículos, o caso foi explorado por forças de extrema-direita. Compilamos o episódio e suas repercussões. Destacamos em especial a newsletter “Debatable”, do New York Times, que evoca o enfraquecimento e debate os limites do movimento #metoo, cinco anos após seu surgimento.

Trabalho Sexual

No âmbito do do trabalho sexual, destacamos o projeto de lei do Ministério da Justiça da África do Sul destinado a descriminalizar a prostituição. A Human Rights Watch analisou o fato. Também importante foi a descriminalização da atividade na Bélgica, após reforma legal ocorrida em março que reconheceu aos trabalhadores sexuais os mesmos direitos que outros trabalhadores. Na Índia, por via judicial, a prostituição foi reconhecida como profissão pela Suprema Corte.

Vaticano

No último dia do ano, morreu o Papa emérito Bento XVI, figura central para a compreensão da história, rumos e dinâmicas da política sexual – muito especialmente das ofensivas antigênero – nas últimas décadas. Sendo impossível discutir sua influência no nosso campo de atuação nesta retrospectiva, sugerimos a leitura de compilação que organizamos sobre o pensamento e a relevância política do cardeal Ratzinger.

Despedida

Em maio, perdemos Adrienne Germain, que foi diretora da International Women’s Health Coalition, pioneira dos direitos reprodutivos, companheira incansável nos debates das Nações Unidas dos anos 1990 e uma parceira histórica dessa luta no Brasil. Relembramos as homenagens feitas por Margareth Arilha e Carmen Barroso e a nota da Fós Feminista.

Sex& Art

A revolta organizada de Uýra Sodoma

Cecilia Vicuña Liberates the Body and the Land in Her New Guggenheim Retrospective

– Em 2022, comemorou-se 100 anos do nascimento do cineasta Paolo Pasolini. Por ocasião da efeméride, oferecemos a cobertura especial da Folha de São Paulo e retomamos o especial do SPW produzido para os 180 dias do governo Bolsonaro. 

Recomendamos

Recursos e Publicações

 Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil

A conta do desmonte – Balanço do Orçamento Geral da União 2021

Protestos Mundiais: Um resumo das questões-chave do século 21

Rede Unidas: briefing do encontro sobre movimentos antigênero na Europa

– As desejantes memórias, poéticas e espacialidades de Néstor Perlongher – Cadernos Pagu

Artigos

Como “Deus, Pátria e Família” entrou na política do Brasil – DW

Tolos e sábios — reflexões sobre o fim da presidência de Trump – por Jacques Rancière

Cem anos de fascismo – Revista Piauí

O problema mais urgente do Brasil é a ruptura entre autoridade e poder – Luiz Eduardo Soares – RED

– Por que é tão difícil conter o terrorismo bolsonarista – Carta Capital

– Bolsonaro ignora promessas e ideologia e intensifica comércio com a China- UOL

– Por que Alemanha criou um cargo no governo de ‘defensor da democracia’ – Folha de São Paulo

El fascismo también fue latinoamericano – El País

– Desigualdade dissecada – Folha de São Paulo

Língua Cortada – por Sérgio Ramirez

— Como uma drag queen de Niterói desmontou as mentiras do deputado George Santos — e o que mudou em sua vida desde então – Revista Piauí

 



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