Sxpolitics [PTBR]

Sexualidade, gênero e empoderamento

Por Sonia Corrêa*

Empoderamento contextualizado 

Empoderamento é um tópico complicado. Seu contexto – quando, o que e  aonde – determina o tipo de empoderamento do qual estamos falamos. O conceito de empoderamento, como é hoje geralmente entendido, surgiu nos anos 90. Mas a compreensão do termo empoderamento não é universal. O conceito foi moldado numa determinada situação história onde estavam em curso um conjunto de debates e nesses debates, seu uso já dependia de onde você estava situada e a partir de  onde pensava  sobre o termo e de como ele se enquadrava nessa posicionalidade. O empoderamento tal como usado no campo do gênero e desenvolvimento foi moldado em lugares muito diversos e teve diferentes trajetórias. 

O discurso sobre gênero e desenvolvimento ao qual me refiro evoluiu em torno das conferências do início dos anos 90 sobre direitos, desenvolvimento social, saúde e direitos sexuais e das mulheres. Envolvida diretamente nesses debates, eu valorizei a maneira como “poder” estava sendo tratado. O  conceito de empoderamento me interessou porque vi nele um potencial para compreender melhor, num sentido foucaultiano, como o poder está incrustado nos discursos jurídicos e biomédicos, informando os debates desse campos, baseando as disciplinas científicas do corpo e das relações sociais  a nível micro, como as relações entre mulheres e homens. Pensei que essa forma de entender o empoderamento poderia ser útil para chegar examinar as complexidades dos debates e abrir campo para ações baseadas em  leituras críticas  sobre o conceito de poder. 

Infelizmente, o enquadramento hoje dominante de empoderamento no campo “gênero e  desenvolvimento” nos permitiria examinar de maneira mais complexa o problema do “poder”. Mas sim, faz uma leitura  simplificada e mecânica das relações de “poder”: existe um poder patriarcal unilateral dos  homens sobre as mulheres, ou seja os homens têm todo o poder e as mulheres não têm nenhum. A partir desse leitura, o empoderamento é nada mais que uma estratégia empoderar mulheres, geralmente vistas como “vítimas” de sua falta de poder, através de programas de desenvolvimento destinados a aumentar sua agência. 

Esta é certamente uma dimensão a ser abordada em contextos e circunstâncias específicas, tanto a nível micro como macro. Entretanto, penso que a questão do poder é bem mais complexa, não se trata apensa de estruturas mas também de fluxos onde ninguém é completamente excluído, nem mesmo as mulheres.  O sujeitos que se encontra em condições de desigualdade e opressão tem o poder de resistir  e essa resistência transforma a maneira como o poder opera. Contudo no  campo de debate sobre gênero e desenvolvimento, a visão dominante coloca as mulheres de um lado dessa equação binária. Os programas de empoderamento fornecem instrumentos para que a s mulheres ganhem mais poder. Como disse Paula England, a melhor maneira de  discutir empoderamanto é falar sobre recursos: a educação e o acesso a todos os tipos de recursos são simbólicos e permitirão às mulheres exercer mais poder. Não discordo, esse posição é correta quando pensamos a partir imites da verdadeira política de gênero (binário). No entanto, em minha opinião, também devemos reconhecer que estas estratégias também devem ser analisadas criticamente em relação às restrições e distorções do sistema em que as mulheres estão entrando quando “empoderadas”. Estas armadilhas são facilmente identificadas na política. Por exemplo, nos últimos anos eu e outras feministas fomos obrigadas a nos perguntar: ter uma mulher como presidenta, primeira-ministra ou secretária de Estado resolve as desigualdades de gênero e as outras desigualdades? Além disso, precisamos explorar as formas pelas quais, através do empoderamento, as mulheres (e outros grupos chamados de sub-representados) são apanhadas em novas redes de autodisciplina e outros meios disciplinares. Ou como diria Foucault, o aumento do poder pode não significar uma maior liberdade, mas sim uma intensificação do controle.

Empoderamento: usos e limitações 

Permitam-me falar sobre o Brasil, onde vivo. Pelo menos 80% das mulheres entre 24 e 40 anos estão no mercado de trabalho. Essas mulheres, portanto, segundo um entendimento simplificado de empoderamento, estão empoderadas. O Bolsa Família, que tem as mulheres como principais beneficiárias, é constantemente descrito por membros do governo como um meio de empoderamento das mulheres pobres. Não importa se metade da força de trabalho feminina ainda está no mercado informal e sob péssimas condições de trabalho. Nem que as transferências de dinheiro sejam limitadas a US$80 por mês e que em muitos aspectos tais transferências sirvam apenas para transformar as mulheres pobres em gestoras do alívio da pobreza (pode-se dizer também que isso significa mais controle estatal sobre suas vidas). Em termos de mulheres na política, entretanto, as mulheres não estão bem representadas –  há 6% de mulheres no Congresso -, mesmo que nas próximas eleições tenhamos duas candidatas concorrendo à presidência. Consequentemente, de modo geral, no contexto brasileiro atual, o empoderamento é predominantemente usado para significar a expansão da presença das mulheres na política formal. Por outro lado, meninas e mulheres jovens têm indicadores muito melhores do que os meninos na educação, e aqueles que usam o empoderamento em seu sentido mais convencional ficam totalmente confusos sobre como lidar com esta reversão da lacuna de gênero. 

Observar os usos dominantes e simplistas do empoderamento faz com que eu me preocupe com a epistemologia do termo. Um primeiro passo para ir além da simplificação e do reducionismo seria reconhecer que nem no passado nem hoje as mulheres estão totalmente desprovidas de poder. Tanto nas sociedades modernas e complexas e nas sociedades tradicionais, existem múltiplas formas de poder das quais as mulheres não são de forma alguma excluídas. Todos os sistemas de gênero são baseados em formações complexas de poder. Um domínio bastante evidente do poder das mulheres dentro dos sistemas de gênero é o reino da procriação. Não é de surpreender que ao longo da história esse tenha sido um foco de controle, regulamentação e disciplina. Mesmo que correntes importantes dentro do feminismo considerem a sexualidade como uma seara onde as mulheres são constantemente submetidas ao poder masculino, eu discordo. A sexualidade é e tem sido um domínio em que as mulheres exercem seu poder sobre outras mulheres e também sobre os homens. A sexualidade é um lugar de agência e controle, de vulnerabilidade e restrições e de grandes avanços no que diz respeito à liberdade pessoal. A sexualidade pode nem sempre ser um lugar de poder para as mulheres, mas estou convencida de que no Brasil e em outros lugares as mulheres nem sempre experimentam a sexualidade como uma destituição de poder. A sexualidade é muito mais complexa e, em termos de compreensão do empoderamento, precisa ser contextualizada em relação ao gênero. 

Gênero e sexualidade: expandindo o quadro

Neste contexto, o modo binário de entender o gênero é muito limitado. É importante olhar o gênero para além de um enquadramento binário, embora todos nós, incluindo eu mesma, possamos cair na visão limitada do gênero como compreendendo as relações entre mulheres e homens. Precisamos levar em conta como o gênero é intricado e, ao mesmo tempo, diferente da sexualidade. Não podemos tratar a sexualidade de forma isolada, longe do gênero e vice-versa. 

O desenvolvimento, no entanto, nos “dessexualiza”. O gênero foi anestesiado no atual discurso do campo de gênero e desenvolvimento sobre empoderamento. No discurso oficial do Banco Mundial, por exemplo, a sexualidade é quase sinônimo de gênero. A sexualidade torna-se encapsulada dentro do gênero em vez de explorada e vista como um complexo fenômeno fluido de relações culturais, sociais e políticas. O Banco Mundial não se preocupa com as complexas relações de poder do desejo. O desenvolvimento econômico conecta gênero com sexualidade de maneira geral como parte do entendimento binário em que homens são um gênero e as mulheres outro. Mas assim como a sexualidade é complexa e fluida, o gênero também é um continuum com homens e mulheres em pontos extremos. Há diferentes posicionamentos de gênero no espectro biológico do homem para mulher, com gradientes complexos de masculinidade e feminilidade, como Anna Fausto Sterling descreve e analisa lindamente. O que é surpreendente e inspirador em sua pesquisa e pensamento é que ela não está trabalhando do ponto de vista da ciência social ou da filosofia, mas dentro da ciência dura da embriologia e da biologia molecular. Sua contribuição teórica deveria ser reconhecida e mais conhecida nos contextos em que se debate a intersecção entre gênero, sexualidade e desenvolvimento. No mínimo, porque ela mostra que a rigorosa divisão sexual binária dos corpos e seres humanos é uma criação de um certo tipo de ciência. 

Repensando o empoderamento 

Então, dada a realidade muito mais complexa tanto do gênero quanto da sexualidade, o que isso significa para nossa compreensão de empoderamento? Antes de mais nada, o empoderamento não é simples. É muito mais complexo do que como ele tende a ser discutido em gênero e desenvolvimento. E não há reversões fáceis das hierarquias. Eu diria que é preciso uma compreensão foucaultiana mais nuançada do poder e que englobe as realidades de gênero. 

Como sabemos, dentro do movimento LGBT existem tensões entre gays e lésbicas em torno de poder. Há também duras tensões e disputas entre lésbicas e feministas sobre a aceitação e posicionamento político de pessoas trans. As vozes feministas têm produzido discursos em torno do HIV e da AIDS que excluem diferentes gêneros e diferentes formas de desejo e prática sexual. Muitas vezes os homens gays são descritos pelas mulheres como ‘patriarcas’ dentro dos movimentos LGBT e de HIV. Será que essa descrição faz realmente sentido? Avançando em direção às extremidades, enquanto profissionais do sexo são vistas como vítimas pela maioria das vertentes feministas, elas mesmas muitas vezes falam da fragilidade sexual masculina. Em muitos contextos existem também tensões territoriais e políticas entre trabalhadoras do sexo cis e trans. Podemos, de fato, ver de forma tão simples vidas que são tão complexas e compostas de políticas concorrentes, desejos complexos, papéis instáveis de gênero e identidades fluidas? É correto explicar isso através de algum tipo de hierarquia patriarcal “homens maus/mulheres boas”? Deixamos de fora muito da humanidade e da diversidade de experiências vividas. 

Ou, para dar outro exemplo, como entender o “poder” entre as mulheres que fazem sexo com mulheres, ou que desejam ter relações sexuais com mulheres? Existem relações de poder entre as mulheres, entre as lésbicas. A falha em discutir os desequilíbrios e tensões de poder entre as mulheres é um ponto cego no discurso de gênero. Também não é fácil mencionar a violência das mulheres contra os homens, ou de homens que estão sujeitos à violação e exploração sexual, como ocorre extensivamente nas prisões em todo o mundo. Estes são pontos cegos que devem ser nomeados e examinados mais de perto a partir de uma perspectiva ampliada de empoderamento. 

Por último, mas não menos importante, mesmo quando se volta à política real mais convencional de gênero, uma rápida observação do mundo nos dirá que uma tendência notável dos últimos 30 anos tem sido, de fato, o empoderamento das mulheres – na educação, no trabalho e até mesmo na política. A outra tendência chave tem sido o aumento evidente das desigualdades entre as próprias mulheres, de acordo com raça, classe, casta, etnia ou simplesmente oportunidades educacionais. As traduções binárias e simplistas do empoderamento são incapazes de captar e de transformar essas realidades.

* Originalmente publicado em 2010, em inglês, neste número da Revista Development. Revisado e atualizado em 2022. 



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