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Descolonizando a educação sexual

Por Susie Jolly (originalmente postado no NewSecurityBeat), traduzido por Nana Soares para o SPW.

Deveríamos estar indignados com as conexões colonialistas da educação sexual. Como pesquisadora e formadora sediada no Reino Unido, vejo quão profundas e flagrantes são as influências colonialistas no campo da educação sexual. O império britânico era obcecado com as sexualidades de seus súditos e imaginava que suas sociedades eram lugares exóticos e permissivos onde os homens britânicos da classe alta podiam viver suas fantasias ilícitas. No entanto, ao mesmo tempo, essas sociedades eram consideradas poços de imoralidade que precisavam de educação moral vitoriana. Estes dois imaginários foram usados para justificar o próprio colonialismo como uma força para civilizar corpos e sexualidades não ocidentais, e permanecem como ideias que ecoam em discursos mais contemporâneos em torno do controle da população e do HIV.

Outra vertente do colonialismo está presente na forma como o conhecimento sobre saúde sexual se baseia em pesquisas médicas antiéticas realizadas em pessoas racializadas. Um exemplo notável é o estudo da sífilis não tratada entre homens negros nos Estados Unidos nos anos 70, sem que lhes fosse oferecido tratamento, mesmo quando este se tornou amplamente disponível. O pensamento do movimento eugênico,   segundo o qual  a classe trabalhadora, os não-brancos e as pessoas com deficiência não deveriam se reproduzir,  influenciou o ensino sobre a prevenção da gravidez. E, mesmo nos últimos anos, o governo britânico desvirtuou a educação sexual LGBT+ em uma campanha islamofóbica que retrata os muçulmanos como misóginos e homofóbicos.

Deveríamos estar indignados, mas talvez não surpresos com as conexões colonialistas da educação sexual. A sexualidade e o poder estão integralmente conectados tanto a nível individual quanto a nível de sistema. O enquadramento de Putin de sua invasão da Ucrânia como uma guerra para restabelecer os valores familiares tradicionais diante dos direitos e movimentos feministas LGBT ocidentais é apenas um exemplo da distribuição geopolítica de sexo e gênero. Os sistemas educacionais também são locais de contestação. Eles podem procurar empoderar os jovens ou ter como objetivo inculcar a próxima geração na ordem moral e racial da nação.

Isto é particularmente verdadeiro na educação sexual, que está profundamente inserida em amplas dinâmicas de poder e normas institucionais. Embora seja evidente que ensinar sobre poder e prazer faz mais pela saúde dos jovens do que ensinar sobre abstinência, as batalhas continuam sendo sobre se a educação sexual deve ser sobre direitos, saúde, poder e prazer, ou sobre moralismo e nacionalismo. De fato, a educação sexual muitas vezes combina conteúdo contraditório e cooptado. No Zimbábue, o currículo de habilidades para a vida combina direitos da criança, igualdade de gênero, promoção da abstinência e patriotismo. No Reino Unido, a educação sexual e a inclusão LGBT são enquadradas como “valores britânicos”.

Embora não nos surpreenda a persistência do colonialismo na educação sexual,  é surpreendente que tão pouco disso seja mencionado nos currículos – especialmente sendo o “pensamento crítico” tão frequentemente incluído nos objetivos destes currículos. Quando a educação sexual trata do poder, ela geralmente ensina as crianças a questionar as desigualdades entre meninas e meninos, mulheres e homens, e às vezes também entre pessoas heterossexuais cisgêneros e pessoas que são LGBTQ+.* Este é um bom começo. Mas o que fica de fora são as histórias e contemporaneidades coloniais que geraram tanta doença sexual e reprodutiva, instaurou como norma as sexualidades heteronormativas brancas e patologizou qualquer um que se desviasse delas. Também estão fora da discussão as contínuas desigualdades globais que afetam a saúde e os direitos sexuais no mundo majoritário, tais como o subsídio africano aos sistemas de saúde do mundo minoritário através do treinamento de enfermeiras que migram, ou o patenteamento de drogas contra o HIV por parte de grandes farmacêuticas, colocando o lucro acima da saúde. E a educação sexual raramente ensina sobre as interseções da desigualdade e da opressão de gênero com o racismo e a exploração dos povos indígenas. As crianças são ensinadas a fazer escolhas ‘boas’ para preservar sua saúde sem abordar as desigualdades que limitam essas escolhas.

Como descolonizar a educação sexual?

Como os educadores em sexualidade podem responder ao colonialismo histórico e contemporâneo em nosso campo? Como uma pessoa branca de língua inglesa nascida no norte global, eu me beneficio de uma série de privilégios profundos e, portanto, tenho uma responsabilidade particular de contribuir para os esforços de descolonização do meu setor, sem cooptar esses esforços. Não tenho as respostas, mas vejo várias iniciativas e ideias emergentes que começam a abordar essas questões. 

Recursos e Reparação: Em reconhecimento aos danos causados aos corpos e às sexualidades dos povos do mundo majoritário pelos Estados e corporações mundiais minoritários, os recursos precisam ser deslocados para beneficiar as populações mundiais majoritárias. O que isto significa para a educação sexual? Um começo poderia ser a destinação de mais recursos do norte para o sul destinados à saúde, direitos e educação sexual, revertendo os cortes na concessão de verbas. Os recursos devem apoiar iniciativas lideradas pelas próprias pessoas marginalizadas, como a Teenergizer – uma rede de jovens vivendo com HIV na Ucrânia e em outras partes da Europa Central e Oriental.

Devemos também descolonizar o campo do  desenvolvimento. E embora a destinação de recursos possa ser um começo, está longe de ser suficiente. As reparações que não são nem ajuda nem caridade devem ser negociadas internacionalmente.

Mudando o conteúdo da educação sexual: O pensamento crítico deve incluir o exame das conexões entre colonialismo e sexualidade. O pesquisador da Universidade da África do Sul Lindokuhle Ubisi fez amplas recomendações sobre como integrar de/colonialidade, deficiência e sexualidade na educação anti-opressiva. A análise da professora Gomez Parra, da Universidade da Califórnia, sobre o legado colonial europeu e como o discurso e as políticas americanas em torno da imigração ressaltam como eles estigmatizaram as sexualidades das pessoas racializadas como perigosas e caracterizaram a reprodução como uma estratégia de acesso ao bem-estar social. Ela sugere que sua análise pode ser usada como um “plano curricular“.

O conteúdo elaborado no campo do desenvolvimento  precisa falar com as diversidades dos públicos. A educação sexual informada sobre traumas reconhece a  probabilidade de que qualquer sala de aula ou audiência inclua pessoas que tenham sofrido traumas. Isto precisa ser alargado  para além do trauma da violência sexual e de gênero para incluir a violência racista e colonialista, como sugere a educadora canadense Lydia Collins: 

“Vamos falar sobre como a guerra afeta a dinâmica do poder entre o ocupante e o ocupado, o que em última instância descarta a capacidade de consentir. Ou sobre como as crianças negras são bombardeadas com hipersexualização e adultificação, tendo sua juventude constantemente perturbada pelas perspectivas sociais de serem objetos sexuais e não crianças. Ou sobre como nossas identidades raciais e culturais podem tornar complexa nossa relação com a violência sexual e de gênero. Ou como o racismo anti-negros muitas vezes impede nossa capacidade de contar nossas histórias por medo”.

Mudando quem decide o conteúdo: Quem decide o conteúdo da educação sexual e o que ela inclui são questões interligadas. Deve haver uma mudança de construir e reconhecer a experiência ocidental e a não ocidental: por   exemplo, a contribuição da África do Sul para o trabalho transnacional de educação LGBTI. Os enquadramentos não-ocidentais precisam ser implementados, sem cair nas armadilhas do “conhecimento tradicional” romantizado, ou da oposição nacionalista simplista a um deboche ocidental imaginado (a la Putin). O site de educação sexual ‘Agents of Ishq’ faz isso de forma brilhante. Quando entrevistei sua criadora Paromita Vorha em 2020, ela explicou: ‘Nós minamos as tradições eróticas da Índia e as reposicionamos para a vida contemporânea. Como podemos ter uma discussão contextual que não cai nas mãos dos nacionalistas? Através da arte que pode lidar com as nuances”.

Também é necessária uma mudança na relação de poder entre professor e aluno, do ensino verticalizado  para apoiar as pessoas a aprenderem com suas próprias experiências. A educação sexual exige essa pedagogia porque é um tema orientado para a ação que começa com o próprio corpo das pessoas.

Isto chegou à mim durante a apresentação no 7ª Encontro de Pesquisa Acadêmica da Sexualidade Chinesa, quando fui desafiada pelo argumento do mentor de vida sexual Yang Chun de que  “a educação sexual é o tipo de coisa que você só tem que aprender com sua própria experiência; não é algo que as escolas possam ensinar”.  Como, me perguntei, educadores podem apoiar as pessoas a aprender com suas próprias experiências ainda antes delas terem uma primeira experiência sexual? Quando poderia ser útil entender preservativos, consentimento, comunicação, sentimentos e poder? O educador sexual britânico Justin Hancock inventou um exercício de aperto de mão que pode ser usado como  exercicio  de negociação de uma interação física, para ser aplicado mais tarde em situações  sexuais.

Desafiando o Legado

Desafiar nossos legados coloniais é uma enorme tarefa. É ainda mais difícil no mundo atualmente polarizado, onde a educação sexual está sob ataque do populismo de direita e dos movimentos antigênero. Mas é uma tarefa necessária e urgente.

Às vezes, somos acusados de exercer o poder colonial e de trazer valores ocidentais para minar nações e comunidades não-ocidentais. Isto nunca deve ser assim.  Devemos descolonizar a educação sexual para corrigir a violência do passado e para oferecer às pessoas o que elas realmente precisam saber. Desta forma, nosso trabalho resistirá melhor às acusações de imposição ocidental. Um primeiro passo pode  ser o reconhecimento dos traços  coloniais que permeiam nosso campo  de educação em sexualidade e que questioná-los deve fazer parte de nosso aprendizado, bem como de nosso modo de ensinar. 



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