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Ofensivas antitrans no esporte de elite: a nova roupagem de um velho “problema”

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Por Nana Soares 

A Federação Internacional de Natação (FINA) anunciou no Mundial de Esportes Aquáticos, que aconteceu em junho em Budapeste, uma nova regra técnico-médica para regular a participação de mulheres trans nas modalidades esportivas sob sua gerência. Segundo os novos parâmetros, mulheres trans que tenham vivenciado etapas da puberdade como meninos não poderão mais participar de competições femininas. Essa decisão chega depois de um forte acirramento das tensões sobre a participação de atletas trans femininas ao longo de 2021 e 2022, mas as origens desse debate e de tais controvérsias são bem mais antigas. 

As discussões e tensões sobre a inclusão/exclusão de atletas trans revolvem e reativam visões e questões que atravessam a história da própria presença das mulheres nos esportes. Visões e questões que dizem respeito às definições de sexo e gênero, biologia e também aos direitos. Como lembra a bióloga feminista Anne-Fausto Sterling, a política do sexo/gênero está incrustada na trajetória dos esportes de elite desde seus primórdios: vetadas das Olimpíadas da Grécia Antiga, já que sequer eram consideradas cidadãs, as mulheres também foram inicialmente excluídas dos jogos da era moderna. O Barão de Coubertin, o “pai” dos Jogos Olímpicos, se opunha veementemente à essa participação pois considerava que os esportes femininos ofendiam as leis da natureza. Fausto-Sterling observa que “os funcionários das olimpíadas se apressavam a certificar a feminilidade das mulheres cuja participação permitiam, porque o ato mesmo de competir parecia implicar que elas não podiam ser mulheres de verdade”*. 

Tal política [e policiamento a ela associado] sempre existiu. Contudo, no dias de hoje, como mostramos regularmente em nossos boletins, o esporte se converteu em conflagrado campo de batalha em torno a participação de mulheres trans. Nesses embates, a visão de forças conservadoras antigênero se entrelaçam com posições feministas que alegam estar defendendo o lugar das mulheres nos esportes. Os argumentos brandidos por essas vozes apoiam-se em convicções fortes e evidências débeis ou, no mínimo, questionáveis. A recente decisão da FINA, embora se apresente como tecnicamente embasada, busca responder às interrogações levantadas por essas vozes e foi rapidamente replicada em outras modalidades esportivas (confira a cronologia ao fim do texto). 

Vamos aos fatos: No dia 19 de junho, a FINA anunciou que mulheres trans só poderão participar de competições femininas de elite se tiverem iniciado sua transição de gênero antes dos 12 anos de idade. Dito de outro modo, se não tiverem experienciado uma puberdade masculina. A decisão significativamente foi assinada e anunciada em Budapeste, que é hoje uma meca das ofensivas antigênero, e isenta os homens trans dessas regras, autorizando sua participação tanto de competições masculinas como femininas, desde que não estejam fazendo uso de andrógenos exógenos. E, como solução para a exclusão implícita nas regras, a FINA propôs a criação de uma nova categoria de competição “aberta”, em que as mulheres trans poderiam participar sem essas restrições. Isso significa confiná-las a uma categoria exclusiva de competição, o que implica, na prática, defini-las como uma categoria distinta de atletas, e portanto de seres humanos, ao contrário do que reivindicou e conquistou o ativismo trans nas últimas décadas no âmbito dos direitos humanos. 

O virtual banimento de mulheres trans nos esportes aquáticos não caiu do céu e nem se encerra nele mesmo. Ao contrário, tem antecedentes claros e seus efeitos já são visíveis. Uma primeira observação é que não há mulheres trans na elite dos esportes aquáticos a nível mundial. Lia Thomas, nadadora estadunidense que venceu competições importantes em 2022, ganhou torneios não federados à FINA – e que não seguem os mesmos parâmetros com relação à participação de mulheres trans. Se seguissem, ela já não poderia participar mesmo antes da mudança das regras. Isso significa que a nova regra parece deixar tudo como era antes.

A nova diretriz não pode ser compreendida sem se levar em conta as novas regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) sobre a participação de pessoas trans e sem considerar os virulentos debates suscitados pelas vitórias de Lia Thomas. Em novembro de 2021, o COI mudou suas diretrizes quanto à participação de atletas trans (leia mais no UOL, no O Globo e na Folha). Quando divulgadas, as novas regras até foram consideradas um avanço por deixarem para trás o parâmetro clássico baseado no nível máximo e universal de testosterona e por que explicitavam que a nova lógica visava não excluir nenhum ou nenhuma atleta com base em pressupostos injustos  de vantagem competitiva. No entanto, o COI deixou a cargo de cada federação determinar seus próprios parâmetros quanto à questão – o que, como se vê, abriu uma brecha para a virtual exclusão de pessoas trans de diversas modalidades “nobres” do esporte. Quando o COI publicou os novos parâmetros, a FINA criou três comitês para analisar a questão, anunciando suas novas regras pouco depois, e que valem para todos os esportes sob seu guarda-chuva

Essas novas definições e a rapidez com que foram adotadas não parecem estar dissociadas dos acirrados debates que aconteceram nos EUA em reação às vitórias da nadadora Lia Thomas, primeira atleta trans a ser campeã universitária da prova de 500 jardas de natação. No país, o esporte é um dos flancos de ataque antitrans (junto a educação e saúde), e nos últimos meses quase 20 estados apresentaram projetos de leis ou aprovaram legislações limitando a participação de mulheres trans nos esportes. As vitórias de Thomas ganharam tamanha repercussão – e causaram inúmeros protestos – a ponto de influenciar ou ao menos acelerar a entidade de esportes aquáticos a redefinir suas regras – que agora valem tanto para a natação como para a maratona aquática, o polo aquático, mas também os saltos ornamentais e o nado artístico, esportes que diferem bastante entre si e entre o que exigem de cada atleta. 

O documento da FINA tem inúmeros pontos que valem uma análise minuciosa. Baseia-se na premissa de que a puberdade é um divisor incontornável das capacidades físicas entre homens e mulheres, a ponto de não poderem ser compensadas posteriormente. Também cita incessantemente uma preocupação com a justiça e com os direitos humanos, afirma que o esporte é para todos e que é um dever da entidade garantir oportunidades para meninas e mulheres e para o esporte feminino. 

As diretrizes já recebem críticas. Atletas e entidades trans questionam que a decisão, além de excluir atletas trans, desconsidera a variedade corporal mesmo entre mulheres cis. O médico Jairo Bouer, no UOL, também analisa criticamente alguns dos estudos disponíveis sobre a performance esportiva de atletas trans. 

A médica Tatiane Miranda, que atende adolescentes no Hospital Infantil João Paulo II, em Minas Gerais, resume sua crítica da seguinte forma: 

O que (a regra) vai mudar é o sofrimento que causa na população, porque medidas como essa legitimam sofrimentos e violências e sentenciam as pessoas a aquilo que a sociedade acha que elas são no nascimento, mas que elas não definiram que são. E falar de prática esportiva deveria ser justamente falar de desenvolver as potencialidades. (…) Não está claro o que pautou a decisão, porque os argumentos de bloqueio puberal e hormonização não são suficientes para justificá-la, até porque podem ocorrer variações. Não há, por exemplo, idade padrão para o bloqueio puberal, pois este depende do estágio da puberdade. Se uma pessoa de 12 anos está na fase 1, não há recomendação de bloqueio. Então qual a linha de raciocínio, uma verdade única já esgotada ou um controle pelo biopoder? É uma violência legitimada em nome da ciência, quando o debate deveria ser mais amplo. 

O que parece evidente a esta altura é que a discussão não se encerra aqui. Ao contrário, as reverberações da decisão da FINA, que ainda deve ser questionada e debatida em diversas searas, ainda estão em curso e colocaram ainda mais combustível em um debate já acalorado dentro e fora dos esportes. E cujas consequências na vida de pessoas trans, atletas ou não, são ainda imprevisíveis. 

* ”Dualismos em Duelo”, disponível aqui

Cronologia das movimentações antitrans no esporte de alto rendimento: 

  • 2018/2019: A World Athletics, que regula o atletismo a nível mundial, atualiza suas diretrizes reduzindo pela metade a concentração máxima permitida de testosterona em mulheres. Após questionamentos, mantém as diretrizes. Mas a regra só vale para atletas que disputarem modalidades entre 400m e 1500m. A medida exclui Caster Semenya das Olimpíadas de Tóquio, além de duas velocistas da Namíbia. Nenhuma das três atletas é uma mulher trans. 
  • Novembro/21: Comitê Olímpico Internacional (COI) atualiza diretrizes para a elegibilidade de pessoas transexuais e intersexuais. As diretrizes dão autonomia a cada federação, mas proíbem testes ginecológicos e reforçam a não presunção de vantagem. 
  • Março/2022: Lia Thomas se torna a primeira mulher trans a ser campeã universitária da prova de 500 jardas de natação nos EUA, sendo alvo de intensas críticas e enfrentando protestos em suas competições de pessoas que se opõem a sua participação.
  • Março/2022: ​​Emily Bridges, ciclista trans inglesa, foi declarada “não elegível” para sua prova do campeonato nacional britânico de ciclismo. A decisão foi tomada pela União Ciclista Internacional (UCI). 
  • 07/04/2022: Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, declara que “homens biológicos não deveriam competir em eventos esportivos femininos”.  
  • 16/06/2022: A União Ciclista Internacional (UCI) endureceu as regras para a participação de atletas trans em campeonatos de elite, reduzindo pela metade o nível máximo de testosterona permitido e exigindo ao menos dois anos de baixos níveis de testosterona. 
  • 19/06/22: Federação Internacional de Natação (Fina) anuncia a decisão de barrar a participação de mulheres trans das competições de elite em categorias femininas caso tenham iniciado a transição a partir dos 12 anos de idade.
  • 20/06/22: A FIFA e a World Athletics, que gerenciam o futebol e atletismo, respectivamente, anunciam que estão revisando suas regras de inclusão para atletas trans após a decisão da FINA. 
  • 21/06/22: Liga Internacional de Rugby (IRL) bane jogadoras trans de competições internacionais “até a organização realizar pesquisas que permitam uma política formal de inclusão trans”. A determinação contraria as novas diretrizes do COI, que dizem exatamente que a discriminação não é permitida a não ser que já tenha sido cientificamente comprovada com amplos estudos. 
  • 22/06/22: A Federação Internacional de Hockey, a Federação Internacional de Canoagem e a World Thriatlon também anunciam revisão em suas regras de inclusão de atletas trans nos esportes, com resultados previstos para novembro de 2022. 
  • 26/06/2022: A Secretária de Cultura do Reino Unido, Nadine Norris, clamou que todas as federações esportivas do país seguissem a regra da FINA.
  • 06/07/2022: A federação britânica de Triatlo baniu atletas trans de competirem nas categorias femininas e criou uma terceira categoria “aberta”.

Em contraste, a federação de futebol da Alemanha (DFB), em junho de 2022, aprovou regulamento sobre os direitos de participação no jogo de pessoas trans, inter e não binárias. Todos os atletas poderão decidir por si mesmos no futebol amador se jogarão por equipes masculinas ou femininas.



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