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Primeiras Palavras
Desde abril de 2020, os boletins SPW têm acompanhado e analisado a política sexual no contexto da pandemia de COVID-19. Completados dois anos de crise sanitária, depois de picos brutais e sequenciais de letalidade distribuídos por diversas regiões e países, a pandemia está finalmente refluindo, graças à imunização alcançada pelas vacinas, mas também por efeito da adaptação do vírus.
Esse refluxo, contudo, nem impede novos surtos e nem apaga, num passe de mágica, os drásticos legados da pandemia. Assim sendo, vamos continuar falando de pandemia, seja a da COVID-19, seja de novas ondas epidêmicas. Por exemplo, quando esse informativo estava sendo finalizado, soou o alerta do espraiamento global da varíola dos macacos, enfermidade até então confinada ao continente africano, uma vez mais confirmando a facilidade com que crises epidêmicas deflagram estigmas. Não menos importante, nesta edição também falamos, ainda que de modo muito conciso, sobre a invasão da Ucrânia que, assim como havia acontecido muitas vezes no passado, entrelaça os efeitos da “peste” com a tragédia da guerra.
Finalmente algumas boas novas SPW. Lançamos duas duas novas publicações do SPW. Em março, publicamos o e-book Políticas antigênero na América Latina em contexto de pandemia, que em breve será traduzido ao inglês e português. Em maio, lançamos as duas versões de Termos ambíguos do debate político atual: o pequeno dicionário que você não sabia que existia, publicação exclusiva em português. E, para esta edição, temos uma colaboração de Maria Luísa Peralta sobre a questão da barriga de aluguel no contexto da guerra da Ucrânia. E nos congratulamos com a Gloria Careaga, membro do conselho do SPW que foi agraciada com o Prêmio Felipa de Souza pela OutRight Action International. Saiba mais sobre o prêmio e a cerimônia de entrega.
Boa leitura!
Equipe SPW (Sonia Corrêa, Nana Soares e Fábio Grotz)
O estado (quase terminal) da pandemia e seus legados
Muito embora por toda parte se fale sobre o fim da pandemia, surtos localizados continuam acontecendo. Desde dezembro de 2021, o espalhamento da variante Ômicron produziu ondas de contaminação na Europa, Américas e Ásia, onde foi especialmente agudo em Beijing e, sobretudo, Xangai. Nesta onda, o vírus finalmente chegaria à Coreia do Norte, onde não há acesso às vacinas. Na sequência, novos repiques da COVID-19 irromperam na Califórnia, em Mumbai, na Índia, e também no Brasil. Embora autoridades de saúde da OMS e dos estados nacionais continuem insistindo na manutenção de restrições e cuidados para conter infecções, em toda parte está instalada a fadiga das medidas coletivas e individuais de prevenção. Mas, de fato, a pandemia não acabou.
Como mostra o rastreador COVID-19 do New York Times, quase 70% da população mundial já recebeu ao menos uma dose da vacina e em torno de 30% recebeu duas doses. Vários países da Europa e das Américas já estão aplicando as 3ª e 4ª doses, mas os índices de vacinação na África continuam irrisórios, com o mesmo acontecendo em alguns países de outras regiões, tais como Guatemala, Haiti, Jamaica e Suriname (nas Américas), em contextos nacionais afetados por conflitos armados como a Síria, o Iraque, o Iêmen, o Afeganistão e também na Ucrânia e outros países da Europa do Leste e da Ásia Central.
Ou seja, o apartheid vacinal persiste e são enormes as disparidades globais em relação a insumos para tratamento da COVID-19. Assim sendo, é chocante a notícia publicada no final de maio de que a Suíça ia destruir mais de 600.000 doses vencidas de vacinas de RNA (Moderna). É também lamentável que a União Europeia e os EUA tenham obstaculizado de diversas maneiras as negociações da OMC em torno da flexibilização de patentes que havia ganhado ritmo e visibilidade em 2021.
Para concluir, a pandemia, que levou à morte de mais de 6 milhões de pessoas e instalou uma sombra densa de dor e luto no mundo inteiro, também deixou sequelas epidemiológicas de longo curso ainda mal compreendidas e legados socioeconômicos drásticos que tampouco serão equacionados a curto prazo.
A epidemia de agravamento das desigualdades
Às milhões de mortes e sobreviventes debilitadas/os e enlutadas/os soma-se a crise econômica global que implicou a volta a níveis elevados de pobreza, miséria, insegurança alimentar, fome, desemprego e maior precariedade laboral. Entre 2020 e 2022, a plataformização da vida social ganhou uma escala inédita e, mesmo quando isso possa ser lido como benéfico para a economia de serviços em contexto pandêmico, os efeitos deletérios dessa reorganização também precisam ser contabilizados, em especial no mundo do trabalho. A financeirização também se amplificou, sendo o Brasil um exemplo, onde uma parcela significativa do generoso auxílio emergencial foi canalizada para o sistema financeiro.
Sobretudo, ao contrário do que se especulou quando a pandemia se instalou, acentuaram-se os padrões de desigualdade e os ricos ficaram mais ricos. Esse agravamento foi tão acentuado que o título do relatório Oxfam de 2022 lançado em Davos é Lucrando com a Dor. Segundo a análise, no ano passado 573 pessoas entraram para o clube dos super ricos, cuja fortuna combinada cresceu US$ 3,8 trilhões desde 2020.
Como sabemos, em 2021, as empresas privadas de saúde brasileiras tiveram um hiper lucro enquanto a COVID-19 devastava o país. Já em 2022, segundo a Oxfam, a Cargill, gigante do setor alimentício, teve lucro líquido de US$ 5 bilhões, o maior desde sua fundação em 1865. Em contraste, uma epidemia de fome e insegurança alimentar está instalada no mundo. Um estudo recente brasileiro, feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), também mostra que os índices de insegurança alimentar cresceram vertiginosamente, sobretudo entre mulheres (46% da população feminina vive hoje em situação de precariedade alimentar).
A política pós pandemia: mutações autocráticas
Como temos analisado desde 2020, a pandemia favoreceu ou aprofundou dinâmicas de desdemocratizacão e autoritarismo, o crescimento das forças de direita e derivas autocráticas. Nos últimos três meses, assistiu-se a uma repetição do padrão de exceção pandêmico verificado em 2020 na China. O novo surto em Pequim e Xangai levou à adoção de restrições para cumprir a diretriz de Covid Zero definida pelo governo central. Entre outras medidas, crianças positivadas foram separadas de suas famílias para frear a cadeia de contágio e prédios residenciais tiveram suas entradas trancadas para impedir a circulação de moradores. Ou seja, a gestão da crise mais uma vez se tornou janela de oportunidade para o recrudescimento do autoritarismo do regime chinês. Por outro lado, a reação e resistência social às novas medidas revelaram fraturas e tramas de poder em jogo no coração da administração de Xi Jinping.
Em 2021, o relatório do instituto sueco V-DEM caracterizou essas tendências como viralização do autocratismo. Muito embora desde 2020 muitos líderes como o próprio Xi ou Bukele tenham aproveitado a COVID-19 para consolidar medidas de arbítrio, na maioria dos países a desdemocratização e o autoritarismo não devem ser lidos apenas como efeito pandêmico, pois seus sinais vinham de muito antes. Apenas se multiplicaram ou se aprofundaram. O informe V-DEM de 2022 mostra que, mundialmente, os indicadores de democracia retornaram aos níveis de 1989, quando terminou a Guerra Fria. Esse declínio se deu por toda parte, inclusive na União Europeia.
O número de golpes bateu recordes em 2021: seis rebeliões militares e um autogolpe, todos no continente africano. Além disso, o número de autocracias extremas subiu de 25 para 30. Uma delas é a Nicarágua, onde o regime expulsou a OEA do país e uma brutal repressão política que se agrava a cada dia foi agora dirigida a organizações feministas. Essa tragédia se desenrola desde 2018 sob o olhar complacente da Europa, dos EUA e das esquerdas latino-americanas.
O relatório também observa que o autocratismo está se metamorfoseando, sendo o traço mais forte dessa mudança a multiplicação de regimes “autoritários democráticos”, nos quais formalidades democráticas coexistem com arbítrio estatal, ameaças a instituições, constrangimento crescente da esfera pública, perseguição de minorias ou outros “inimigos internos”. Hoje, 44% da população mundial vive sob regimes desse tipo, em países como a Hungria, Polônia, Sérvia, Rússia, El Salvador, Brasil e vários países africanos, mas também os EUA, onde sinais de erosão democrática continuam palpáveis.
A lista também inclui a Índia e o Sri Lanka, onde neste momento está em curso uma ampla mobilização de repúdio à crise econômica, brutalmente reprimida pelo regime. Nesse universo, há 35 países nos quais, ao longo de 2021, registrou-se agravamento do arbítrio e violência estatal – de que são exemplo as chacinas policiais no Brasil – e violações da liberdade de expressão, mas também conflitos e violência letal intercomunitária autorizada pelo Estado, como acontece na Índia, uma violência que agora se extendeu diretamente à oposição política.
As autocracias do presente coexistem com regras formais, mais ou menos preservadas, de procedimentos democráticos. Assim sendo, as dinâmicas de desdemocratização se manifestam, de maneira flagrante, em processos eleitorais. Começando pela Ásia, nas Filipinas, o filho do ex-ditador Ferdinand Marcos, Ferdinand “Bongbong” Marcos Jr., foi recentemente eleito presidente num processo “legítimo”. Ele contou com o apoio de Rodrigo Duterte, que presidiu o país desde 2016, usando e abusando do poder executivo, inclusive para legitimar execuções extrajudiciais. Já na Europa, Viktor Orbán foi conduzido pela quinta vez ao posto de primeiro-ministro da Hungria, pois seu partido, o Fidesz, conseguiu ampla maioria no parlamento nas eleições de abril, confirmando a eficácia da estratégia de erosão institucional usada por Orbán para se manter no poder.
Mas potenciais erosões democráticas também se registram em países bem pontuados no índice V-DEM. É o caso da França, onde a reeleição de Emmanuel Macron foi ameaçada pela direitista Marine Le Pen, que teve 41,46% dos votos no segundo turno, um avanço significativo em relação à votação de 2017. Um processo eleitoral em que também se assistiu ao furor causado pela campanha do ultradireitista Eric Zemour, pautada pela desinformação, fantasmas racistas e descrédito nas instituições democráticas. Como bem sintetizou o jornalista Jamil Chade: Macron foi reeleito, mas a extrema-direita venceu (leia nossa compilação em inglês/espanhol). E, na Coreia do Sul, um país bem pontuado pelo V-DEM, um ex-procurador conservador foi eleito presidente por uma pequena margem de votos. Seus discursos combinam a defesa acirrada da “liberdade”, hoje brandida por todos os líderes populistas de direita, e posições declaradamente antifeministas.
Dinâmicas eleitorais inusitadas e que implicam riscos democráticos também tiveram lugar na América Latina. Na Costa Rica, países da região que ocupa a posição mais alta no índice V-DEM, um outsider foi eleito presidente, a contrapelo de previsões que apontavam para a vitória da direita tradicional. Rodrigo Chavez é um economista ultra neoliberal que viveu trinta anos fora do país e renunciou de seu posto no Banco Mundial sob acusação de assédio moral e sexual. Tão logo eleito, se alinhou com as forças políticas do evangelismo fundamentalista que quase chegou ao poder em 2018 e, de imediato, foram anunciadas medidas de restrição ao aborto terapêutico.
Da mesma forma, a eleição colombiana realizada no final de maio foi vencida pelo candidato de esquerda Gustavo Petro, mas um outsider chegou ao segundo turno. Rodolfo Hernández é um engenheiro de 77 anos que, assim como Petro, tem como vice uma mulher negra e, no começo de junho, liderava as intenções de voto por uma margem de 3 a 4 pontos percentuais. Hernández foi prefeito de Bucaramanga e defende uma pauta radical pró-mercado e uma política tecnocrática. Mas não está alinhado automaticamente às pautas antigênero e antiaborto que caracterizam a direita colombiana. O que, em sua candidatura, sinaliza para riscos democráticos são os métodos e posições típicas dos populistas de direita, que conversam diretamente com o eleitorado e mostram desprezo pelas instituições.
Finalmente, no Brasil, ícone da desdemocratização na região e no mundo, embora as eleições presidenciais sejam apenas em outubro, a dinâmica eleitoral já está instalada. Desenha-se um pleito hiper polarizado entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula, que lidera, de maneira sustentada, as intenções de voto. A vantagem de Lula inevitavelmente insufla as tentações autoritárias de Bolsonaro, que voltou a atacar a Justiça Eleitoral e as urnas eletrônicas, suspeita sistemática que é um sintoma forte de autocratismo.
Mais grave ainda, desde abril a imprensa passou a falar abertamente da possibilidade de um golpe caso Lula vença as eleições (mais aqui e aqui). Nos meados de maio, lançou-se, numa reunião organizada por três institutos de pesquisa vinculados aos militares, um documento que ataca o “globalismo”, o “ativismo judicial” e a “ideologização da educação”. O texto também propõe um programa radical de privatização e projeta o controle político do país até 2035. Os próximos meses serão, portanto, cruciais. Não apenas para a democracia brasileira mas, como observa Jamil Chade, para definir o país que queremos ser.
A Guerra na Ucrânia: antecedentes, efeitos e significados
O relatório V-DEM 2022 observa corretamente que a invasão da Ucrânia não pode ser desvinculada da chegada de Putin ao poder vinte anos atrás e, portanto, compõe o cenário de longo curso de ressurgimento e sedimentação do autocratismo no século 21. Nesse ciclo longo também devem ser contabilizadas as invasões do Afeganistão (2001) e Iraque (2003), que coincidiram temporalmente com a ascensão do líder russo e, sobretudo, deflagraram dinâmicas de desdemocratização do tecido da política norte-americana. Não menos importante, os espectros dessas guerras assombram as motivações e justificativas de Putin para invadir a Ucrânia.
Na imbricação dos interesses e lógicas geopolíticas que precederam a nova guerra, que é complexa e profunda, o comportamento dos EUA, da Europa e da OTAN têm um peso incontornável. Mas ainda assim essa é uma guerra de agressão contra um país soberano e, como tal, deve ser repudiada. Além disso, a ameaça nuclear que paira sobre ela não pode ser minimizada e, como bem analisa Ivan Krastev, a dinâmica interna da Rússia tampouco pode ser excluída das equações que tentam explicar o conflito. Da mesma forma, é complexo e contraditório o cenário político ucraniano, pois nele vicejam tanto o populismo quanto forças religiosas hiper conservadoras e grupos de extrema-direita.
A guerra também trouxe à tona fantasmas e realidades neocoloniais. Iluminou a longa e brutal história da dominação russa (inclusive soviética) que, em grande medida, explica o vigor da resistência ucraniana. Mas também escancarou o contraste escandaloso entre a generosa abertura das fronteiras europeias para as pessoas que deixam a Ucrânia e o racismo e a xenofobia que persistem em relação a “outros” refugiados e migrantes. E, no início do conflito, foi marcadamente colonialista a insistência da imprensa global em afirmar que a Ucrânia “não é um estado falido do sul global”.
Fizemos este balanço quando a guerra completava cem dias. No começo de junho de 2022, o exército russo controlava 20% do território ucraniano, milhares de vidas haviam sido perdidas na carnificina do conflito, cidades inteiras estavam arrasadas, atrocidades de todo tipo foram cometidas, sobretudo pelo exército russo, e milhões de refugiados tinham deixado a Ucrânia. Na Rússia, a brutal repressão política tem impedido manifestações de resistência e empurra para o exílio quem se opõe à guerra e ao autoritarismo. As sanções econômicas impostas pelos EUA e Europa não tiveram efeitos imediatos, a diplomacia falhou, a militarização segue escalando. Mas o desfecho do conflito continua imprevisível.
Por outro lado, o impacto da guerra sobre a economia global já combalida pela pandemia tem sido devastador. A queda na produção de alimentos ameaça agravar a situação de segurança alimentar, especialmente na África e no Oriente Médio; e os efeitos sobre as cadeias globais de produção apontam para cenários de desdeglobalização e estagflação. E a guerra está, de fato, alterando a cartografia geopolítica que foi sedimentada desde o final da guerra fria. Segundo o politólogo Fyodor Lukianov, ela instala um ambiente propício para que as premissas de universalidade sejam abandonadas em prol do “pluralismo de valores” e para que os jogos de interesses retornem à lógica clássica do equilíbrio de forças e à guerra como resolução de conflitos (para compreender o substrato ideológico desse deslocamento vale ouvir Masha Gessen analisando a visão de Putin sobre a modernidade).
Contra esse pano de fundo, como mostra nossa compilação, tanto as condições da guerra como as narrativas sobre ela estão densamente povoadas por gênero e sexualidade. E no centro do palco está Vladimir Putin, figura icônica da masculinidade política tóxica, liderança vocal do campo hiperconservador que financia figuras políticas e organizações antigênero na Europa.
Em outubro passado, Putin propôs que “ideologia de gênero” fosse definida como “crime contra a humanidade” e certamente concorda com patriarca ortodoxo de Moscou que em março de 2022 justificou a guerra como medida para “conter a imposição ocidental do homossexualismo”. Olhando a cena a partir da América Latina, tampouco é politicamente trivial o sólido acordo militar entre a Rússia e o regime Ortega-Murillo, na Nicarágua, e menos ainda a visita que Bolsonaro fez a Putin quando já rufavam os tambores da guerra.
No dia 8 de maio, aconteceu o webinário Tranfeminist Solidarity for Ukraine, convocado pela filósofa ucraniana Irina Zherebkina, Judith Butler e Sabine Hark. Neste intercâmbio que está disponível em vídeo, feministas ucranianas e da Europa do Leste denunciam o caráter imperialista da guerra e analisam como a ideologia antigênero está incrustada no cerne do conflito. Também elaboram, corajosamente, sobre a vacuidade de posições antiguerra e antimilitarização descontextualizadas que pretendem falar em nome delas. Esse diálogo é referência fundamental para compreender a complexidade do conflito e melhor captar o vigor feminista e democrático da resistência ucraniana.
As políticas antigênero
O lugar que o repúdio ao gênero ocupa no cenário da guerra é o traço mais relevante das políticas antigênero nos primeiros meses de 2022. Há, porém, outras dinâmicas significativas a relatar, a começar pela fratura que o conflito produziu entre as forças que se movem nesse campo. Ela é flagrante, por exemplo, no contraste entre a posição radicalmente pró-Ucraniana da Polônia e as relações que Viktor Orbán continua mantendo com o Kremlin. Na América Latina, o governo Giammattei (Guatemala) que, no ano passado, assinou um pouco antes da Rússia o chamado consenso de Genebra, também está alinhado com a Ucrânia e rompeu relações com Moscou. Para captar melhor as motivações subjacentes a esses deslocamentos, recomendamos a leitura do artigo escrito por um intelectual ultracatólico australiano tão logo o conflito se instalou. Essa diferenciação de posições frente à guerra, porém, não parece estar afetando a capacidade de mobilização dessas forças.
Os intensos périplos de Angela Gandra, a Secretária Nacional da Família do governo Bolsonaro, entre janeiro e maio de 2022, ilustram essa vitalidade. Em janeiro, a secretária esteve em Bogotá para uma reunião da Arte Academy, programa de formação da Alliance Defending Freedom (ADF) e, estando em Bogotá, reuniu-se com José Antonio Kast. Em fevereiro, pouco antes da reunião do Foro de Madrid em Bogotá, Gandra participou de um evento paralelo da Comissão de Desenvolvimento Social da ONU sobre o fortalecimento da família.
Em março foi com Damares Alves à Guatemala para participar na Cúpula Iberoamericana de Defesa da Vida e da Família e inaugurar um documento de defesa da vida descrito em suas postagens como um Tributo ao Consenso de Genebra. Em seguida esteve em Dubai, para atividades públicas na Expo 22 e na Arábia Saudita, sendo que, em ambos os países, se reuniu com autoridades locais. Finalmente, em maio, acompanhada da nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Gandra foi às Nações Unidas em Nova Iorque e, em seguida, foi à OEA, em Washington, onde Alejandro Ordoñez, embaixador da Colômbia no organismo, anunciaria a adesão do país ao Consenso de Genebra. Essa adesão não teve grande repercussão interna na Colômbia, mas é significativa no plano internacional, um ganho importante da diplomacia ultraconservadora conduzida pela secretária desde 2019.
Em seguida, Gandra participou, em Budapeste, da IV Cúpula Transatlântica da Political Network for Values, agora presidida por José Antonio Kast, em que foi muito elogiada. O mote central do evento foi liberdade e nele se denunciou a “distorção sistemática dos direitos humanos promovida pelas esquerdas, feminismos e movimentos LGBTTI”. No evento também foram feitas orações pelo fim do aborto no mundo. Não é excessivo afirmar que Budapeste está se convertendo numa Roma do neoconservadorismo e da ultradireita – tanto que, durante o Campeonato Mundial de Esportes Aquáticos, realizado na capital húngara, a Federação Internacional de Natação (Fina) restringiu a participação de mulheres trans em torneios. Alguns dias antes da Cúpula Transatlântica aconteceu na cidade uma conferência da plataforma norte-americana CPAC que, em breve, deve se reunir de novo em Campinas, no Brasil.
Leis, políticas públicas e mobilizações sociais antigênero
Nessa nova quadra das políticas antigênero, as conflagrações mais agudas vêm se dando em relação a direitos LGBTQIA+, especialmente trans, e gênero e sexualidade no campo educacional. Começando pela Hungria, em paralelo às eleições que confirmaram Orbán no poder, um referendo não teve votação suficiente para ratificar a lei de 2021 que havia abolido o currículo de respeito pela diversidade sexual nas escolas. Contudo, a maioria absoluta obtida por Orbán nas eleições legislativas indicam fôlego e força política para investidas similares nos próximos anos. Além disso, como analisa matéria da BBC, o sistema educacional como um todo está sujeito a um flagrante policiamento ideológico. Na África, em Moçambique, um livro didático foi atacado por supostamente propagar a homossexualidade e, no começo de maio, no Peru, o Congresso aprovou uma lei que autoriza as famílias a revisarem os currículos escolares com especial ênfase para educação sexual. Enquanto isso, na Argentina, o Ministério da Educação de Buenos Aires assinou uma resolução proibindo professores de usar linguagem inclusiva em sala de aula, porque estes dificultariam o aprendizado. O argumento ancora-se em uma dita preocupação com a “emergência educacional gerada pela pandemia” para opor-se à linguagem inclusiva.
EUA e Brasil: as batalhas mais renhidas
Muito embora esses embates estejam por toda parte, têm sido mais claramente virulentos nos EUA e no Brasil. Nos EUA, a multiplicação de leis, decretos e políticas contra direitos trans e que abolem currículos de gênero e sexualidade é tão intensa que é difícil contabilizá-las. Estima-se que mais de 230 projetos de lei discriminatórios tenham sido apresentados em 2022, cujos alvos são os direitos das pessoas trans a banheiros correspondentes a sua identidade social, ensino de diversidade nas escolas, participação nos esportes e acesso à assistência em saúde (saiba mais aqui). No caso específico da educação, vários estados adotaram leis contrárias ao ensino da diversidade nas escolas e mais da metade dos estados estão censurando livros em escolas e bibliotecas. É importante referir que, na maioria dos casos, esses ataques estão associados ao repúdio à teoria crítica racial. E essa escalada atingiu um alvo improvável: na Flórida, a Disney Co. perdeu alguns de seus privilégios fiscais por seu posicionamento contrário à lei estadual que praticamente proíbe o debate da diversidade sexual nas escolas. O New York Times relata o imbróglio. No caso dos esportes, o mais recente e flagrante absurdo foi aprovado no estado de Ohio, onde o Congresso aprovou que não apenas todas as meninas trans sejam proibidas de praticar esportes nas escolas como que, em caso de dúvida, se realize uma verificação genital.
No caso brasileiro, o fato mais relevante foi a aprovação pela Câmara, no final de maio, de uma lei que legaliza a educação domiciliar (homeschooling) como diretriz da política educacional. Essa lei considerada prioritária pelo governo Bolsonaro deve ser compreendida como um desdobramento das guerras contra “gênero” e “ideologia” na educação, em curso desde 2013. Ela é inspirada pelas teses ultraconservadoras de que a família deve ter tutela plena sobre a educação de crianças e adolescentes e de que a escola é um lugar “ideologicamente perigoso”. Salomão Ximenes, em artigo publicado no UOL, avalia que a lei tal como aprovada deprecia a escola como um bem público, desvaloriza o magistério profissional e desconstrói um núcleo essencial do direito fundamental à educação.
Embates mobilizados pelo feminismo antigênero
No Reino Unido continuam fervilhando as guerras em torno dos direitos trans que estivemos reportando desde 2020. O primeiro-ministro Boris Johnson declarou ser contrário à participação de “homens biológicos […] em eventos esportivos femininos” e o governo anunciou que vai proibir as chamadas terapias de conversão, mas apenas para pessoas gay e bissexuais, excluindo pessoas trans – um critério que contraria até mesmo as diretrizes do sistema público de saúde (NHS).
Vale dizer que isso transcorria enquanto o mesmo governo organizava a Conferência “Safe to be me”, em comemoração aos 50 anos das primeiras Paradas do Orgulho no país. A adoção da nova lei contra terapias de conversão, contudo, suscitou um boicote em massa à conferência que levou ao cancelamento do encontro. Uma conferência alternativa foi convocada, cuja pauta questiona a lavagem de imagem acionada pela administração conservadora que buscou projetar o Reino Unido como referência internacional da agenda LGBTQIA+ quando, de fato, uma parcela significativa desta população tem seus direitos cada vez mais ameaçados no país. Embora o boicote seja positivo, nada indica que os ataques antitrans irão arrefecer em um futuro próximo.
O sistema multilateral como campo de batalha
Essas tensões e conflagrações, inevitavelmente, se transportam para as arenas multilaterais. Durante a 66ª Comissão da ONU sobre o Status das Mulheres (CSW66), em março, o tema central, gênero e mudanças climáticas, foi ofuscado por múltiplas tensões. A ONG norte-americana C-Fam circulou uma petição alegando que grupos antiaborto estavam de fora das negociações por terem opiniões diferentes de “grupos poderosos com vieses de esquerda”. Além disso, as feministas que se definem como “críticas ao gênero” e se opõem ao trabalho sexual atacaram o sistema internacional de direitos humanos por incluir a linguagem de identidade de gênero em declarações, resoluções e campanhas, argumentando que essa definição borra as identidades cissexuais. A Citizen GO estava uma vez mais presente e disseminou amplamente essas posições por seus canais digitais (para uma análise detalhada sugerimos a leitura da matéria da OpenDemocracy e da nota do CESR).
Também a Assembleia Mundial de Saúde foi palco de tensões e disputas. Na última sessão, a discussão sobre nova estratégia global de resposta ao HIV, Hepatite B e ISTs foi procrastinada devido a discordâncias sobre termos consagrados como: “direitos sexuais”, “sexualidade” e “orientação sexual”. A resolução final só foi aprovada porque a delegação do México, no último minuto, propôs retirar o glossário que definia estes termos, decisão essa que foi apoiada pelo Brasil. Países que capitaneavam a ofensiva contra os termos, como a Arábia Saudita, ainda não se deram por satisfeitos e se abstiveram da votação final. Mais detalhes no Health Policy Watch.
Direito ao Aborto: De volta ao futuro?
No campo do direito ao aborto, o evento mais significativo dos últimos três meses foi, sem dúvida, o vazamento da minuta da decisão sobre a nova lei de aborto do estado do Mississipi elaborada pelo Juiz Samuel Alito e que expressa a opinião do grupo ultraconservador da Suprema Corte dos EUA. O documento propõe a derrogação da jurisprudência que garante proteção constitucional ao direito ao aborto, firmada em 1973, no caso Roe Vs. Wade, e reiterada por decisões posteriores. Essa regressão potencial extrema resulta da persistente reação conservadora ao direito ao aborto que se instalou logo após a decisão de 1973, culminando na indicação de três juízes hiperconservadores por Trump (2018-2020) e na aprovação, desde 2021, de legislações draconianas em seis estados, inclusive o Mississipi.
Para justificar a derrogação, a minuta arrola teses jurídicas e decisões da common law inglesa dos séculos 13 e 17, assim como a opinião de um juiz americano dos tempos coloniais. Argumenta, por exemplo, que nem a tradição jurídica nem a história do país reconhecem o direito ao aborto e e questiona, por vários ângulos, o uso da premissa de direito à privacidade como âncora de Roe Vs. Wade. Várias das críticas feitas ao texto contestam o primeiro desses argumentos, enfatizando, com razão, que o texto original da Constituição não mencionava os direitos das mulheres nem tampouco abominava a escravidão, o que não legitima essas ausências. Também sublinham, com firmeza, que o direito à privacidade está solidamente sedimentado na heurística jurídica e não pode ser aplicado seletivamente. Os argumentos jurídicos esgrimidos pela maioria conservadora nos dizem que, no debate da Suprema Corte, com potenciais efeitos globais, estão em disputa ferrenhas concepções divergentes em relação não apenas ao aborto, mas aos próprios fundamentos de constitucionalidade e procedimentos jurisprudenciais, com repercussões potenciais sobre direitos humanos de maneira mais ampla.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao significado e motivações do vazamento. O episódio suscitou interessantes investigações jornalísticas mostrando que vazamentos da Corte Suprema são raros, mas não excepcionais, um deles tendo ocorrido em relação à própria decisão Roe Vs. Wade. De imediato, as forças de direita acusaram as equipes de juízes progressistas de terem sido autoras do vazamento. Análises mais acuradas, como as de Françoise Girard, sugerem, contudo, que o vazamento pode, na verdade, favorecer a bancada conservadora, pois pode ter sido uma estratégia para forçar o juiz Roberts, presidente da Corte, a alinhar-se com a posição extrema proposta pela minuta. O episódio, sobretudo, contribuiu para erodir a credibilidade da Corte, já afetada por denúncias recentes sobre tráfico de influência operado por Virginia Thomas, a esposa ultradireitista do Juiz Clarence Thomas. E levou à instalação de uma investigação rigorosa.
Dada a atual composição da Suprema Corte, o teor da potencial decisão não surpreende e já estava anunciado desde a audiência de dezembro de 2021 sobre o caso (ler análise de Françoise Girard). É fundamental lembrar que o texto reflete a visão da maioria conservadora da Corte, mas não corresponde à posição da maioria da sociedade estadunidense, na qual três em cada quatro pessoas são a favor do direito ao aborto. Uma possibilidade aventada para conter os efeitos da decisão anunciada seria a aprovação da lei de saúde das mulheres, a Women’s Health Protection Act (WPHA), aprovada pela Câmara no ano passado, mas que precisava ser ratificada pelo Senado. Levada à votação em 11 de maio, a proposta foi derrotada por 51 votos a 49, o que indica que também são muito difíceis as condições políticas no Legislativo.
Os efeitos da derrogação serão devastadores no contexto estadunidense, legitimando as leis draconianas adotadas desde o ano passado e afetando drasticamente a vida das mulheres mais pobres e negras, com níveis educacionais e renda mais baixa: 49% delas vivem abaixo da linha de pobreza. Mas os impactos transnacionais também serão inequívocos. Caso confirmada, a decisão vai inspirar iniciativas jurídicas em outros países e insuflar a energia das forças antiaborto no mundo inteiro. No Brasil, por exemplo, Bolsonaro de imediato declarou, irresponsavelmente, que vai usar os argumentos da minuta para bloquear a tramitação da ADPF 442 no STF, mesmo quando não tenha poderes para tal.
O fim de Roe Vs Wade também vai liberar recursos financeiros até aqui investidos nos EUA para conseguir esse objetivo, os quais poderão ser usados para financiar campanhas antiaborto em outros continentes. O The Guardian publicou duas matérias (aqui e aqui) que examinam como a decisão americana abre rotas para que essas forças comecem a atacar legislação pró direito ao aborto na Europa.
No que diz respeito à América Latina, vários artigos foram publicados argumentando que as reformas legais e decisões sobre o direito ao aborto na região (Argentina, Colômbia, México e Uruguai) não estão diretamente ameaçadas pelo que aconteceu nos EUA, seja porque são decisões legislativas (Uruguai e Argentina), seja porque estão ancoradas em fundamentos jurídicos que não são os mesmos que informam Roe Vs Wade. Ardilla, por exemplo, relembra que a decisão da Corte Colombiana se ancora em premissas de dignidade e superação da desigualdade, que estão ausentes da decisão americana de 1973. Por outro lado, não se pode minimizar que a globalização intensificada da guerra antiaborto terá inevitáveis impactos na região.
Outros obstáculos e retrocessos
No âmbito dos debates sobre direito ao aborto, há outros retrocessos a mencionar, como, por exemplo, situações derivadas da guerra na Ucrânia. O jornal “Público” e o Brussel Times publicaram matérias sobre a situação dramática à que estão submetidas, na Polônia, as refugiadas ucranianas grávidas após terem sido estupradas por soldados russos, pois, como se sabe, o país tem uma das legislações de aborto mais restritivas do mundo. E outras barreiras foram notícia na Europa. Como mostra reportagem da openDemocracy, mulheres europeias que vivem em países onde há restrições ao aborto já não podem, desde o Brexit, aceder ao procedimento no Reino Unido..
E, nos últimos três meses, também se verificam sinais de capilarização de atividades antiaborto no continente africano. No Quênia, uma associação cristã se associou à representante da plataforma espanhola CitizenGo no país para questionar recente decisão da Suprema Corte segundo a qual o acesso ao aborto seguro como um direito humano deveria estar refletido nas leis do país. E, mesmo na América Latina, apesar dos ganhos recentes, regressões também foram registradas. No Equador, a luta renhida pelo direito ao aborto no caso de estupro levou à aprovação de uma lei que embora muito limitada foi vetada pelo presidente Lasso. E, na Guatemala, que é hoje, tal qual o Brasil, um dos polos mais ativos do repúdio ao aborto, foi aprovada uma nova legislação draconiana contra o aborto, o matrimônio igualitário e o ensino escolar sobre diversidade sexual. Contudo, sob pressão dos países doadores, o presidente declarou que iria vetar a nova lei.
E, quando este informativo estava sendo fechado, mais um capítulo de ataques ao direito ao aborto foi registrado no Brasil: a Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde lançou o manual “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, que preconiza a investigação de mulheres que recorrem ao procedimento mesmo nos casos previsto em lei.
Direito ao Aborto: as boas notícias
A Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou um guia com mais de 50 recomendações para que o aborto seja realizado de maneira segura. O documento foi lançado no dia 8 de março e inclui a recomendação pela descriminalização do aborto, tal como recomendado pela Conferência de Pequim de 1995.
No Chile, o direito ao aborto foi incluído no novo projeto de texto Constitucional, que será votado em julho e levado a referendo em setembro. No México, onde a Suprema Corte julgou a criminalização do aborto inconstitucional em setembro de 2021, os estados de Sinaloa, Guerrero e Baja California Sur aprovaram reformas que descriminalizaram a prática, ampliando para nove o número de estados do país em que o direito ao aborto está garantido. E, no final de maio, a Espanha aprovou uma revisão da lei de aborto. A partir de agora, jovens a partir de 16 anos podem interromper a gestação sem precisar do consentimento. Isabel Valdés faz um bom resumo das alterações nesta reportagem de El País.
No Brasil, onde Bolsonaro festejou o teor da minuta vazada sobre Roe Vs Wade e o governo acaba de adotar uma medida drástica e anticonstitucional para coagir mulheres que acessam o direito ao aborto no caso do estupro, o debate político sobre o tema já estava aquecido. Em abril, o ex-presidente Lula, candidato que lidera as pesquisas para a Presidência, manifestou-se favorável à interrupção da gravidez como “um direito de todo mundo e problema de saúde pública”. A fala teve ampla repercussão na imprensa e foi tanto apoiada quanto criticada por uma vasta gama de atores políticos, mas, decididamente, fomentou o debate sobre o tema, geralmente evitado em momentos eleitorais. É interessante mencionar ainda que uma pesquisa recente informa que 74% dos brasileiros são favoráveis à manutenção ou ampliação dos casos de aborto previstos em lei. E, enquanto finalizávamos este boletim, sondagem do Datafolha apontou queda no apoio à proibição total do procedimento no Brasil. Leia a nossa compilação das reações à declaração de Lula.
Finalmente, é vital sublinhar que a reação à potencial derrogação de Roe Vs. Wade também foi muito positiva. As forças que apoiam o direito ao aborto se mobilizaram muito rapidamente nos EUA e a inércia que parecia ter se instalado após quase 50 anos de direito garantido vai sendo superada. Tanto a imprensa norte-americana quanto veículos globais e nacionais fizeram uma cobertura ampla e qualificada do episódio. O podcast “The Daily” do New York Times, por exemplo, resgatou episódios anteriores sobre a história da decisão e fez novas reportagens muito consistentes sobre o tema. E, no final de maio, The Cut e New York Magazine produziram um número especial conjunto que é, de fato, um manual atualizado sobre como aceder a um aborto seguro mesmo em condições muito restritivas. Fizemos uma compilação das análises publicadas sobre o fato e as reações e mobilizações que se sucederam.
Direitos LGBTQIA+: retrocessos e ameaças
Na África subsaariana, sanções ainda mais duras contra a homossexualidade estão sendo aprovadas, mesmo nos países onde a conduta já é criminalizada. Em Gana, a proposta de endurecimento da pena partiu de atores evangélicos, que foram às ruas em nome do endurecimento da legislação. Por outro lado, como alertam ativistas quenianos, que acusam o Judiciário de morosidade nas investigações de um brutal assassinato de uma lésbica não-binária, os crimes de ódio que atingem a população LGBTQIA+ não causam tanta comoção.
Na Ásia também há más notícias. Em Singapura, não houve endurecimento de legislações proibitivas, mas perdeu-se a oportunidade de enterrar a lei nacional que criminaliza o sexo entre homens. A corte que julgou o caso argumentou que os homens que moviam a ação não estavam sob risco real de perseguição. E, no Qatar, a repressão à população LGBTQIA+ parece que vai ser a tônica durante a Copa do Mundo de Futebol, pois o governo já anunciou que vai confiscar símbolos, como bandeiras do arco-íris. Órgãos e redes internacionais expressaram preocupações com relação a essas potenciais violações de direitos humanos, mas nenhuma medida concreta foi tomada até o momento, e a discriminação continua e de maneira bem explícita.
Já na América Latina, em Cuba, ativistas LGBT+ e religiosos ultraconservadores confrontaram-se fisicamente na cidade de Vedado. O culto, que mencionou “conversão a heterossexualidade” e “orações para eliminar os desvios” dos homossexuais, foi alvo de protestos dos ativistas da ilha. O Cubacute relatou o episódio em detalhes.
Política sexual: Boas Notícias
Considerando a centralidade da Hungria na dinâmica transnacional da política antigênero, mencionada anteriormente, é muito positiva a notícia que o governo Orbán foi derrotado no referendo convocado para ratificar a lei proibindo conteúdos LGBTQIA+ em livros e propagandas. Também é importante mencionar a volta da educação sexual aos currículos escolares de Uganda.
Nova Zelândia e Grécia proibiram as chamadas “terapias de conversão” – ao contrário do Reino Unido, sem excluir as pessoas trans. O Tribunal Constitucional do Kuwait declarou inconstitucional uma lei que criminaliza a “imitação do outro sexo”. Destacamos também que, no estado de Jalisco (México) e no Chile, o casamento entre pessoas do mesmo sexo agora é permitido por lei.
Na Argentina, comemorou-se 10 anos de sua lei de identidade de gênero, e o censo nacional registrou e documentou, pela primeira vez, a autopercepção sobre orientação sexual e identidade gênero (esse último quesito, como já informamos, havia sido questionado judicialmente por feministas antigênero). E, no Brasil, foram publicados dados demográficos sobre orientação sexual coletados pela Pesquisa Nacional de Saúde, resultados esses criticados por pesquisadoras/es e ativistas LGBTQIA+. Além disso, decisão da justiça estadual do Acre determinou que o Censo de 2022 inclua questões sobre orientação sexual e identidade de gênero, decisão já rechaçada pelo IBGE, que ameaça adiar mais uma vez o levantamento caso tenha que incluir tais dados.
Finalmente aplaudimos o repúdio à deportação da ativista brasileira Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Keila foi impedida de entrar no México onde participaria do Fórum Social Mundial, sob a alegação de que seu nome social não estava retificado na documentação e que ela não tinha bilhete de volta. Foi detida por cerca de 10 horas e ficou incomunicável no aeroporto, retornando ao Brasil no dia seguinte. O episódio gerou uma vigorosa onda de protestos contra esse ato de flagrante discriminação transfóbica, no Brasil e no México. E o fato teve ampla repercussão na imprensa brasileira.
Trabalho Sexual
O Parlamento da Bélgica aprovou reforma de lei que descriminaliza o trabalho sexual, tornando o país o primeiro da Europa a reconhecer esse status legal à prostituição. Na contramão, a lei também definiu o aumento de pena para proxenetismo. O estado de Victoria, na Austrália, também descriminalizou a prática – com uma margem folgada na votação parlamentar -, tornando-se o terceiro estado do país a fazê-lo. E, na Índia, a Suprema Corte decidiu favoravelmente às trabalhadoras do sexo, reafirmando a legalidade da profissão e determinando o tratamento digno das profissionais, categoria comumente desrespeitada por autoridades policiais.
Violência de Gênero e outros debates feministas
No Brasil, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou números desoladores sobre a prevalência da violência sexual, mostrando que o problema está longe de ser uma prioridade governamental – diagnóstico corroborado por recente pesquisa do Inesc mostrando a ínfima alocação orçamentária para o combate à violência contra as mulheres nos últimos 4 anos.
No Peru, o presidente peruano Pedro Castillo propôs castração química para os abusadores sexuais, confirmando o apego das esquerdas latino-americanas ao populismo punitivista. Como apontam Violeta Barrientos e Susana Chávez em excelentes artigos analisando a proposta do presidente, essa lógica não só ignora as assimetrias de poder envolvidas na violência sexual como também desconsidera a necessidade de políticas públicas para prevenir a violência e desconsidera os efeitos colaterais de medidas punitivas desse teor.
Outro tema que ganhou ampla repercussão midiática foi o julgamento do litígio entre a atriz Amber Heard e seu ex-marido, o também ator Johnny Depp. O evento foi acompanhado por um aluvião de misoginia e ataques antifeministas nas redes, à medida que, conforme apontaram alguns veículos, o caso foi explorado por forças de extrema-direita. Compilamos o episódio e suas repercussões. Destacamos em especial a newsletter “Debatable”, do New York Times, que evoca o enfraquecimento e debate os limites do movimento #metoo, cinco anos após seu surgimento.
Por fim, ganha relevância a divulgação dos números aterradores de violência política contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ no Brasil. A pauta ganhou visibilidade após a visita do relator especial da Organização das Nações Unidas sobre a liberdade de reunião e de associação, Clément Nyaletsossi Voule, ao país. O relator foi firme ao afirmar que a violência política no país tem um claro recorte racial e de gênero, além de incidir com força na comunidade LGBTQIA+, e que a gravidade dos casos está matando a democracia brasileira ao impedir candidaturas. Este foi o caso de Manuela D’Ávila, que descartou participar do pleito de 2022 pelos sucessivos ataques e ameaças a ela e sua família. O apelo do relator da ONU encontra coro em pesquisa recente divulgada pelo #VoteLGBT, que mostrou que ataques e subfinanciamento também dão a tônica das candidaturas LGBTQIA+ no Brasil. Este texto da Conectas elenca alguns marcos importantes no tema da violência política contra as mulheres no país.
Despedida
No dia 19, perdemos Adrienne Germain, cofundadora da International Women’s Health Coalition, pioneira dos direitos reprodutivos, companheira incansável nos debates das Nações Unidas dos anos 1990 e uma parceira histórica dessa luta no Brasil. Essa é uma perda inestimável que revolve as memórias de várias de nós que, durante décadas, dialogamos e colaboramos com Adrienne em arenas internacionais. Uma amiga querida, um exemplo de tenacidade e integridade. Para rememorar Adrienne compartilhamos um belo artigo de Margareth Arilha e as notas de Carmen Barroso e da Fós Feminista.
Recomendamos
Recursos
– Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil
– A conta do desmonte – Balanço do Orçamento Geral da União 2021
– Protestos Mundiais: Um resumo das questões-chave do século 21
– Rede Unidas: briefing do encontro sobre movimentos antigênero na Europa
Artigos
– El fascismo también fue latinoamericano – El País
– And Still She Rises – François Girard
– Why Critics of Angry Woke College Kids Are Missing the Pointhttps – Wendy Brown
– Homophobia is a feminist issue – HRW
– Climate justice for women´s rights – Global Voices
– Língua Cortada – por Sérgio Ramirez
Sex& Art
– Cecilia Vicuña Liberates the Body and the Land in Her New Guggenheim Retrospective
– Há 100 anos nascia o cineasta Paolo Pasolini. Por ocasião da efeméride, oferecemos a cobertura especial da Folha de São Paulo e retomamos o especial do SPW produzido para os 180 dias do governo Bolsonaro.