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8 de março de 2022: resistência, celebração, cooptação, fraturas

Por Nana Soares 

Em 2022, as marchas do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, voltaram a ganhar as ruas mundo afora. Depois do intervalo inesperado provocado pela pandemia de COVID-19, as feministas de novo fizeram suas demandas presencialmente. Se a pausa de dois anos por um lado, deu motivo para celebração em muitos lugares, em outros escancarou as tensões e fraturas no interior dos feminismos. E, sobretudo, iluminou como as pautas feministas estão sendo cooptadas pelas vozes do conservadorismo e da direita. Essas condições levantam uma interrogação: ainda faz sentido a canonização do 8 de março como data simbólica e política principal e transnacional dos feminismos? Sem esgotar as respostas possíveis a essa pergunta, este artigo elenca alguns fatos e traços da celebração de 2022 como deflagradores dessa reflexão. Muito resumidamente, de onde olhamos a cena global pudemos identificar quatro tendências nas manifestações do #8M deste ano: resistência, celebração, fraturas e cooptação. 

No registro da resistência, as ilustrações mais fortes e positivas vem da China e da Turquia. No primeiro caso, ganhou destaque nesse #8M a imagem de uma mulher acorrentada em Xuzhou. A foto trouxe à tona as violências, opressões e desigualdades vividas no âmbito doméstico e da relações intrafamiliares na China e levou a muitos protestos e debates. Já na Turquia, as feministas tomaram as ruas e mais uma vez protestaram contra a saída do país da Convenção de Istambul, que define diretrizes de direitos humanos para a erradicação da violência de gênero. A saída da Turquia do Tratado se deve ao repúdio mobilizado por forças conservadoras no país, assim como na Europa de maneira mais ampla, ao conceito de gênero que ancora os conteúdos do mesmo. O regime Erdoğan fez de tudo para impedir as manifestações, mas não conseguiu – e por isso as marchas foram brutalmente reprimidas. Em Istanbul ao menos 38 mulheres foram presas (leia mais aqui). Mas o movimento de mulheres mostrou que não vai abandonar suas pautas mesmo num contexto abertamente autocrático. 

Também celebrou-se o 8 de março com muito vigor, pois voltar às as ruas depois de dois anos de pandemia não é exatamente trivial. Mas também porque mesmo que os custos humanos, sociais e econômicos da COVID-19 tenham sido extensos, em alguns países como Argentina e Chile houve vitórias feministas neste período sombrio. A Argentina celebrou com energia a legalização do aborto no país, aprovada em dezembro de 2020. No Chile, os movimentos feministas foram às ruas colher os frutos do estallido social de 2019, onde as vozes feministas foram clamorosas e tornadas icônicas pela difusão mundial da performance Un Violador En Tu Camino, do Coletivo Las Tesis. Celebraram a paridade de gênero da Convenção Constituinte e seus resultados positivos para os direitos das mulheres e, principalmente, comemoraram o governo feminista de Gabriel Boric que tomaria posse três dias depois. 

Resistir e celebrar também foram as marcas das marchas brasileiras que, entretanto, foram bastante modestas. A palavra de ordem em toda a parte foi a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas (veja a cobertura completa no Portal Catarinas). A celebração e a politização estavam presentes, mas, ao contrário de outros países latinoamericanos, não foram manifestações com grande apelo popular. Nada comparável ao que foi o #EleNão em 2018. Os eventos brasileiros deixam no ar uma pergunta espinhosa: os feminismos brasileiros vão posicionar suas pautas num processo eleitoral que mais uma vez será tumultuado e violento? O artigo que a ativista e jornalista argentina Marta Dillon escreveu sobre a mobilização do 8M de seu país pode ser, talvez, uma fonte de inspiração. Segundo ela, a megamarcha desse ano não foi espontânea, mas sim fruto de muita organização. Fica o lembrete neste ano decisivo para o Brasil. 

E é preciso dizer que nessas terras houve ilustrações lamentáveis da nova lógica de cooptação do #8M. No Brasil e em muito países, felicitações, flores e votos enviesados já há muito têm colonizado o 8 de março. Mas em 2022 a apropriação assumiu contornos mais indigestos, entre outras razões por ser este um ano eleitoral. Assistimos como as forças antigênero instaladas no poder usaram descaradamente a data para legitimar sua pauta política antifeminista e projetar seu ideário acerca do lugar e papel das mulheres na sociedade. Dessa avalanche de falas e eventos, é inevitável pinçar o discurso de um sorridente Jair Bolsonaro: as mulheres estão “praticamente integradas à sociedade”. Por pouco não ouvimos afirmação ainda mais absurda como complementação: as mulheres só perdem para os indígenas. Já o Procurador-Geral não perdeu a oportunidade para explicitar sua própria definição de “integração das mulheres”: Augusto Aras declarou que o #8M é uma homenagem às mulheres por que agora elas já podem fazer o que quiserem “sem perder a feminilidade”, por que já  têm o enorme “prazer de escolher a cor das unhas” e também “o sapato”. Ou seja, uma versão “adulta” do conhecido bordão da ex-ministra Damares Alves: “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”. 

Do outro lado do mundo, tal como relatado no Global Voices, a ditadura do Turcomenistão – regime que também ficou famoso pelo negacionismo frente ​​à COVID-19 – também fez do #8M uma data da maternidade e da feminilidade. Já no vizinho Uruguai, a deputada Inés Monzillo, do partido de extrema-direita Cabildo Abierto, aproveitou a ocasião para criticar o “Feminismo do 8M” e difundir a que a educação sexual deve ser ministrada em casa e pela família. 

Mas o exemplo mais grotesco de como as forças conservadoras e de direita estão reconfigurando a data vem da Espanha, onde a ONG Hazte Oir inaugurou um centro dedicado a dissuadir as mulheres de interromper uma gravidez indesejada. A instituição, chamada #RefugioProVida, está localizada em frente a um centro de saúde que realiza o procedimento. Na inauguração da nova entidade, o porta-voz da Hazte Oir disse que essa “iniciativa memorável” tinha como objetivo lembrar às mulheres no 8 de março que elas devem “se comprometer com a vida que carregam dentro de si”. 

Foi também na Espanha que assistimos as cenas mais perturbadoras deste #8M. As manifestações de rua revelaram que uma fissura, talvez incontornável, está cruzando o campo feminista, pois marchas separadas aconteceram em várias cidades do país. Isabel Valdés, em reportagem no El País, informa que a marcha “tradicional”, da qual participavam mulheres trans e trabalhadoras sexuais, teve como mote “¡Feminismos canarios sin fronteras! ¡Mujeres libres y diversas!¡Derechos para todas!”. Já as outras manifestações, organizadas por feministas que se definem como “radicais” ou críticas ao gênero, clamaram pela abolição da prostituição, das “barrigas de aluguel” e repudiaram o direitos à identidade de pessoas trans e não binárias. 

Essa fratura é, de fato, uma culminação das tensões em torno a essas questões que desde muito fermentam no campo feminista espanhol, assim como acontece em outros contextos. Mas essas tensões assumiram novos contornos num ambiente marcado pelo crescimento político da direita, e ganharam uma nova escala no embates acerca da lei de identidade de gênero recentemente aprovada. Essa lei permite a retificação de nome social e do gênero sem a necessidade de diagnósticos biomédicos.  

Essas muitas faces do #8M de 2022 nos instigam a pensar sobre que discursos e sujeitos estão sendo acionados e mobilizados nesta data icônica. Sem dúvida, o #8M é um dia de celebração e resistência feminista, mas há indícios claros de que sua representação e significado está sendo alterada. Nessa dinâmica, a cooptação e regurgitação dos repertórios feministas por forças da direita é possivelmente o sintoma mais preocupante dos tempos do agora. É preciso perguntar: o que podemos fazer para que essa data, historicamente vinculada às lutas feministas de contestação e solidariedade, não se reduza a mais um significante vazio inserido em concepções e pautas políticas que se opõem ao ideário que criou o dia internacional das mulheres?



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