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Primeiras Palavras
O último especial de 2020 do SPW levantou a hipótese de que, durante o ano de 2021, por causa das vacinas, a Covid-19 deixaria de ser nosso tema principal. Mas isso não aconteceu. A pandemia seguiu seu curso devastador, com o surgimento de novas variantes mais agressivas, e a perda de vidas não arrefeceu. No Brasil, de onde escrevemos, 620 mil pessoas morreram até o final de 2021. A pandemia permaneceu como tópico dominante na agenda global de debates e, portanto, continuamos coletando e processando informações que contribuem para compreender melhor as múltiplas e complexas implicações da crise sanitária, inclusive no que diz respeito à política sexual, que é nosso tema principal.
Ao longo do ano, a propagação do vírus e seus efeitos se entrelaçou com uma cadeia de eventos e tendências políticas, econômicas, sociais, mas também no nosso campo de observação. O que marca essa dinâmica são os traços interconectados de desdemocratização e sedimentação autocrática, por um lado, e o agravamento dos padrões de desigualdade socioeconômica, por outro. Esse agravamento contrasta de maneira flagrante com projeções feitas no começo de 2020 de que a crise parecia estar abrindo espaço para o enfrentamento e a correção das iniquidades de acesso a recursos e bem-estar. Essa promessa é ilustrada pela declaração assinada por dezenas de milionários, publicada em julho de 2020 e hoje esquecida, que propunha a adoção de impostos sobre grandes fortunas como uma das soluções para a crise econômica decorrente da Covid-19.
Desde então, a pandemia de fato favoreceu o enriquecimento veloz dos mais ricos e a precarização agravada das condições de existência dos mais pobres, cuja vulnerabilidade, como sabemos, é atravessada por classe, raça-etnia, gênero, idade, capacidades e também por diferenças locacionais. O relatório anual da Oxfam, de 2021, cujo título é A desigualdade mata, mostra, entre outras coisas, que a riqueza dos 10 homens mais ricos do mundo dobrou desde março de 2020, enquanto 99% da população perdeu renda, acesso à terra, à comida e a serviços (clique aqui para acessar o relatório completo).
No contexto pandêmico, um efeito dramático dessa desigualdade amplificada é o apartheid vacinal. Em 31 de dezembro de 2021, apenas metade dos países africanos havia vacinado mais de 10% de suas populações. Em contraste, no Brasil, apesar de nossa brutal desigualdade e do negacionismo oficial, 70% da população já foi vacinada. O surgimento, em novembro, da ultracontagiosa variante Ômicron e sua propagação geométrica desde então sugerem que as condições desfavoráveis à igualdade não vão arrefecer. E, como têm dito ad nauseam virologistas e epidemiologistas, a disparidade vacinal favorece o surgimento de novas variantes. Esse é o cenário que se aponta para 2022.
Nesta retrospectiva de 2021, fica evidente que o ano foi muito duro, para não dizer assombroso. Mas também registramos eventos, momentos, análises e interpretações que nutrem nossas energias e impulsionam nossas imaginações na direção de um mundo mais respirável e mais vivível.
Análises feitas por colaboradoras e colaboradores
Ao longo do ano de 2021, publicamos um número significativo de análises elaboradas por nossas e nossos colaboradores que foram produzidos exclusivamente para o SPW ou que tivemos a exclusividade da tradução. A esta lista se adicionam dois novos textos publicados nesta edição. Agradecemos muito a generosidade dessas autoras e autores que ampliam a pluralidade das lentes que usamos para examinar as políticas do gênero e da sexualidade.
Brasil: Morte materna em contexto de Covid-19 (2020-2021) – Sandra Valongueiro
Um Ministério para uma Família: distopia e “familismo 2.0” – Andrea Moraes Alves
Covid e violências baseadas em gênero: uma análise dos impactos da crise no Senegal – Codou Bop
As mulheres são seres humanos? – por Françoise Girard
A Suprema Corte dos EUA é uma ameaça ao direito ao aborto – Françoise Girard
Desvelando a reconfiguração da política populacional na China – Yping Cai
Estado da Pandemia
Em 2021, 198 milhões de novos casos de Covid-19 foram registrados oficialmente, dos quais 3,5 milhões terminaram em óbito. O número pode ser ainda mais assustador quando se sabe que há, no mundo, um elevado padrão de subnotificação. A esperança de que a vacinação fosse debelar a pandemia não se concretizou por inúmeras razões. Conforme registramos em nossos especiais durante o ano passado, novos surtos despontaram em todos os continentes, tanto em países que em 2020 tinham sido poupados do vírus quanto naqueles que já tinham vivenciado cenários epidemiológicos dramáticos.
A vacinação teve, de fato, impacto positivo no enfrentamento da pandemia, assegurando proteção clínica contra formas graves da doença e permitindo que a vida social e econômica retomasse de algum modo seu ritmo habitual. Contudo, imprevisível em muitos aspectos, o vírus conseguiu driblar a imunidade construída pelos imunizantes, como prova a variante Ômicron. Como se não bastasse, a resistência à vacinação incentivada por forças negacionistas prejudicou a cobertura vacinal, adicionando longevidade à doença. E essa recusa disseminada em muitos quadrantes dá fôlego à circulação do vírus, como mostra reportagem da DW. Indicamos também artigo do The Lancet tratando do abismo vacinal como fator que potencializa novas variantes.
Nesse cenário de vacinação que avança, mas enfrenta resistências, o estado da pandemia no mundo continua reiterando a leitura da Covid-19 como sindemia, pois a doença se manifesta de maneira particular conforme os cenários econômicos, políticos e sociais por onde o vírus circula. Global pelo seu alcance, a Covid-19 desencadeou impactos locais e regionais distintos. O acesso à vacinação, por exemplo, seguiu padrões conhecidos de desigualdade Norte-Sul. Se há países a caminho da aplicação da quarta dose, outros, especialmente na África, patinam para ampliar a cobertura da primeira, conforme mostra matéria do New York Times. A Revista Piauí também publicou análises sobre a desigualdade vacinal interna ao Brasil e a escandalosa diferença no acesso à vacina em termos globais.
Também registramos os alarmantes efeitos da vulnerabilidade diferenciada, pois é flagrante que gênero, raça e moradia foram e são determinantes para as condições de cuidado, doença e morte. No Brasil, estudo da Rede de Pesquisa Solidária mostrou como a letalidade por Covid-19 se distribuiu através dos diferentes setores do mercado de trabalho, revelando, sobretudo, que em todos eles ser negro ou ser mulher é sempre fator de maior risco.
Em meio a esses obstáculos, é fundamental visibilizar e valorizar as iniciativas da sociedade civil dedicadas a superar essas discrepâncias e propor soluções estruturais para a desigualdade como, por exemplo, o esforço para a suspensão de patentes das vacinas mobilizado pela Campanha Feminista por Vacinas.
Economia na Pandemia
Crise também econômica, a pandemia implicou efeitos catastróficos de recessão e destruição de cadeias produtivas e setores inteiros das economias nacionais. Esses impactos seguiram o padrão habitual das crises do capitalismo, atingindo perversamente e de forma desigual as classes trabalhadoras e setores menos favorecidos. O desfinanciamento e a desregulação dos sistemas de saúde e de proteção social cobraram um preço altíssimo, não só em termos de letalidade e morbidade por Covid-19, mas também potencializando o desemprego e a queda na renda.
A devastação econômica causada pela pandemia foi especialmente dura com as mulheres. As desigualdades de gênero foram exacerbadas, inclusive porque a pandemia ampliou a responsabilidade das mulheres na economia do cuidado e confinou as pessoas e a vida social ao ambiente doméstico. Indicamos a leitura de artigo do La Diaria sobre a crise no mercado de trabalho para mulheres e meninas na América Latina e Caribe e uma análise do Washington Post tratando das avarias que a pandemia causou na participação das mulheres no mercado de trabalho em termos globais. Artigo do The Lancet chamou atenção para as consequências desse cenário no médio e longo prazo. E, no caso do Brasil, um artigo recente da Folha de São Paulo analisou os impactos negativos da pandemia sobre as trabalhadoras domésticas.
O campo educacional foi outra área drasticamente afetada pela pandemia. Dados recentes da UNICEF informam que hoje 70% das crianças de 7 a 10 anos, nos países de renda média e baixa não conseguem ler e escrever por efeito da suspensão de aulas presenciais e falta de acesso a meios virtuais. Já no Brasil, segundo o Censo Escolar de 2021, divulgado pelo INEP no dia 31/01/2022, foram perdidas 650.000 matrículas de educação infantil que, segundo especialistas, não serão recuperadas com facilidade. O crescimento massivo da orfandade é outra tragédia que merece atenção e da qual tem-se falado muito pouco. A orfandade massiva provocada pela Covid-19 está associada a questões de gênero e cuidado, e seus desdobramentos sociais em termos de pobreza e acesso à educação exigem uma resposta robusta de política social, da qual não temos notícias.
Como já dito, a crise econômica brutal num primeiro momento ensejou sinais de que a pandemia poderia suscitar o reconhecimento mais pleno dos padrões de desigualdade e mobilizar políticas para dirimi-los. Entretanto, isso não aconteceu e vários estudos têm iluminado o agravamento cabal da desigualdade, como o já mencionado informe da Oxfam. Mas nada indica que esses novos apelos estejam sendo ouvidos. A cidade de São Paulo, por exemplo, registrou 32 mil moradores de rua em 2021, população maior do que a de 80% das cidades brasileiras – 71% desses moradores de rua são pardos/negros. Em todo o mundo, a fome e a insegurança alimentar se alastram, implicando um duro revés do progresso global no combate à fome. No Brasil, especificamente, como mostram matérias da BBC e da Folha de São Paulo, registra-se uma verdadeira devastação. As fotos de mulheres e crianças em fila, esperando o descarte de ossos feito pelos supermercados, ficarão registradas para sempre como deploráveis imagens do ano de 2021 no país.
Política: normalização da anormalidade
No plano político, uma tendência marcante dos tempos pandêmicos foi, como apontamos desde nossa primeira Edição Especial de abril de 2020, a profusão de episódios de desdemocratização e agravamentos de condições autocráticas. Desde então, esse traço vem se normalizando. Em 2020, a política de Duterte de atirar para matar quem desrespeitasse o lockdown, nas Filipinas, ainda causava espanto. Já ao longo de 2021, ocorreram vários golpes ou dinâmicas de desdemocratização que são noticiados para, em seguida, desaparecer rapidamente das telas e páginas.
Na Europa, contabilizaram-se novas ofensivas na Hungria de Viktor Orbán contra a sociedade civil e contra opositores e jornalistas. Na Polônia, denúncias de violação de direitos civis também continuam, especialmente no campo de medidas voltadas para enfraquecer órgãos de imprensa. Na Bielorússia, o regime Lukashenko, além de prosseguir sua escalada repressiva, ganhou repercussão global após ordenar o desvio de um avião para prender um jornalista que estava a bordo. Lukashenko também criou uma crise nas fronteiras da Polônia e Lituânia (membros da União Europeia) ao aceitar o desembarque no país de milhares de migrantes e refugiados.
Na América Latina segue em curso o pesadelo político do regime Ortega-Murillo na Nicarágua, enquanto no vizinho El Salvador o autointitulado ditador Nayib Bukele continua atacando as instituições e alimentando um clima favorável à violação de direitos humanos. Na África, por sua vez, registrou-se uma sequência de golpes militares: em maio, no Mali; em setembro, na Guiné; e, em outubro, no Sudão, os militares tomaram o poder, interrompendo de maneira brutal um vibrante processo de redemocratização iniciado em 2019. Por fim, na região do Tigray, na Etiópia, a guerra separatista vem deixando um rastro de destruição, mortes, denúncias de abuso sexual e fome.
No mundo árabe, seguem os intermináveis morticínios que marcam os conflitos armados na Síria e no Iêmen. E, na Tunísia, o presidente de plantão, Kais Said, desferiu em julho duro golpe ao se outorgar superpoderes, episódio que significa o evanescimento final dos sonhos democráticos da Primavera Árabe, que completou 10 anos em 2021. E, na Ásia, enquanto na Índia do governo Modi e no Sri Lanka, regimes reconhecidamente autocráticos seguem firmes, no começo de 2022, no Cazaquistão, ao menos 225 pessoas morreram e 5 mil foram presas no contexto de protestos contra a alta do combustível.
O Brasil foi também palco inequívoco de dinâmicas desdemocratizantes. Ao longo de 2021, ataques sistemáticos às instituições e investidas antidemocráticas se entrelaçaram, num pacto macabro, com a biopolítica da pandemia. Não só a política neodarwinista e negacionista da administração Bolsonaro está implicada na perda de 620 mil vidas. A própria crise sanitária se converteu num palco em que foram exibidas medidas estatais arbitrárias e transcorreram “motociatas” inspiradas no fascismo italiano, insultos e ofensas rotineiros à imprensa e às instituições e uma crescente retórica golpista contra o sistema eleitoral. Isso tudo culminou no espetáculo golpista do 7 de setembro. Nesse contexto mais que conflagrado, a CPI da Covid-19 abriu um espaço não desprezível de evisceração de fatos e de identificação de personagens envolvidos no descalabro da resposta federal à pandemia, assim como dos crimes e violações de direitos humanos perpetrados desde 2020 (ver balanço feito em outubro de 2021).
Sobretudo, porém, é preciso não esquecer que 2021 começou com a invasão do Capitólio, a sede do Congresso norte-americano. Esse acontecimento insólito revelou, de maneira brutal, a escala e profundidade da erosão democrática nos EUA. O ataque, que teria sido impensável dez anos atrás, foi objeto de descrições e análises exaustivas, inclusive uma detalhada e cuidadosa reconstituição do fatídico dia feita pelo NYT. E, muito embora a arquitetura democrática norte-americana não tenha sido abalada de maneira definitiva, análises publicadas no começo de 2022 para marcar um ano da invasão interrogam, seriamente, se os EUA estariam ou não a caminho de uma guerra civil. É disso exemplo o artigo de David Remick, editor da New Yorker.
Sinais de autoritarismo crescente também se registram nos antípodas da polaridade geopolítica global, ou seja, na China. Essa tendência não é exatamente nova, mas ganhou tons mais fortes durante 2021. Eles estão plasmados na apoteótica comemoração do centenário do Partido Comunista, na onda de culto personalista em torno da figura do presidente Xi Jinping e, mais especialmente, no controle cada vez mais draconiano do sistema político em Hong Kong. Mas é preciso contabilizar também o recrudescimento da violência estatal contra a minoria muçulmana Uigur e as novas ameaças de invasão à Taiwan.
Em março de 2022, o V-DEM Institute, que em 2021 lançou o relatório O autocracismo se tornou viral (em inglês), vai publicar seu balanço do estado das democracias no segundo ano da pandemia. Saberemos então, com medida mais precisas, se houve ou não um agravamento dos processos de autocratização e desdemocratização no contexto pandêmico. Antes disso, uma pesquisa de opinião feito pelo YouGov , que ouviu 80 mil pessoas em 27 países, trouxe resultados paradoxais. Mostra, por um lado, que líderes populistas como Bolsonaro, López Obrador e Orbán vêm perdendo apoio eleitoral por efeito da má gestão da crise pandêmica, mas por outro também identifica maior adesão a políticas e lideranças autoritárias, especialmente entre jovens.
No plano geopolítico, 2021 foi também o ano da conturbada retirada militar dos EUA e o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão. Esse desastre tem sido interpretado em muitos quadrantes como signo forte de declínio do império americano. Também evidenciou, cabalmente que projetos de democracia impostos pela força das armas estão fadados ao fracasso. Nossa abordagem sobre essa nova tragédia política e humanitária no país enfatizou seus efeitos catastróficos nas vidas de mulheres, meninas e minorias e, resgatando o que aconteceu em 2001, sublinhou uma vez mais o quanto é problemático atrelar direitos das mulheres a jogos imperiais. Complementando essa análise, em janeiro de 2022, o Human Rights Watch publicou um relatório detalhado sobre as violações que se abateram sobre as pessoas LGBTTQ+ afegãs desde agosto.
Processos eleitorais
Outra faceta importante do cenário político global a examinar são processos eleitorais que sinalizam tanto para a resiliência de arquiteturas democráticas, mesmo quando seus resultados sejam paradoxais, quanto para riscos de erosão agravada. A América Latina, em especial, foi palco de várias eleições significativas.
Na Argentina, onde o ano havia iniciado com as comemorações pela reforma da lei do aborto, as eleições legislativas de novembro significaram uma derrota para o governo de Alberto Fernández e a extrema-direita ou direita libertária, cujo ícone é Javier Milei, ganhou legitimidade eleitoral.
Antes disso, em abril, no Equador, o ex-banqueiro Guilherme Lasso, conservador que, segundo consta, tem vínculos com a Opus Dei, venceu a eleição presidencial numa eleição em que a chegada ao segundo turno foi avidamente disputada entre duas forças de esquerda. O vencedor dessa contenda foi o líder indígena Yaku Pérez e o processo parece ter levado ao fim o chamado Correísmo. A Revista Rosa produziu dossiê sobre o processo e também compilamos artigos sobre as perspectivas e implicações do novo governo que, tão logo foi empossado, viu-se atingido por crises no sistema prisional e por acusações de más práticas fiscais contra o presidente, citado no Pandora Papers.
Em seguida, no Peru, o sindicalista Pedro Castillo venceu a eleição para a Presidência realizada em junho e, embora celebrado por setores de esquerda latino-americanos, sua chegada ao poder causou muita preocupação no campo dos debates sobre sexualidade, gênero e aborto por causa de suas posições conservadoras em relação a essas matérias. Ángel Pineda escreveu um artigo para o SPW sobre essas tensões. Além disso, desde julho de 2021, o governo tem experimentado ondas consecutivas de instabilidade, está sob ataque de um congresso hiper conservador. Há uma semana nomeou como presidente do Conselho de Ministros um político de direita, acusado de violência doméstica, que em seguida renunciou.
No Chile, o estallido social de 2019, instalou uma dinâmica política excepcional que levaria à instalação de uma Convenção a Constitucional, para vistas a reformar a Carta Magna herdada da ditadura Pinochet. Contudo, nas eleições presidenciais de novembro, o candidato da extrema-direita José Antonio Kast ganhou o primeiro turno. Embora a margem de votos tenha sido pequena, essa vitória sinalizava em uma direção radicalmente contrária ao processo social e político em curso no país.
Na sequência, após uma campanha intensa e acirrada, Gabriel Boric foi eleito presidente no segundo turno, realizado em dezembro. A vitória foi por margem significativa de votos e tem muitos significados. O mais importante é a derrota da extrema-direita, mas é vital sublinhar que Boric também representa uma renovação geracional do sistema político chileno e, sobretudo, sinaliza para a renovação da esquerda latino-americana (veja nossa compilação sobre a eleição de Boric). Boric já definiu seu gabinete que conta com 14 mulheres, um socialista como ministro da economia, um gay como ministro da educação e uma lésbica como ministra dos esportes.
Em Honduras, Xiomara Castro, esposa de Manuel Zelaya, cujo governo foi interrompido por um golpe militar em 2009, ganhou as eleições também liderando uma frente de esquerda. Essa vitória é não só relevante em razão desse evento passado, como também porque Honduras esteve, em anos recentes, sob o domínio de um narco-governo, cujas falcatruas e traços autocráticos são amplamente conhecidos. Xiomara teve um amplo apoio do movimento feminista hondurenho.
Finalmente, na Costa Rica o primeiro turno das presidenciais aconteceu no dia 6 fevereiro de 2022, numa eleição muito atomizada, em que os candidatos mais competitivos estavam todos situados à direita do espectro político. Vão para o segundo turno José Maria Figueres, do Partido de Liberação Nacional (PLN) e um ex-presidente do país, e o economista Rodrido Chaves, do recém criado Partido Social Democrático, de corte neoliberal. Segundo matéria da BBC, pesam sobre Figueres denúncias de corrupção, enquanto Chavez foi acusado de assédio sexual quando funcionário do Banco Mundial. Já o pastor cantor Fabrício Alvarado, que chegou ao segundo nas eleições de 2018 mobilizando uma forte pauta antigênero, teve 15% dos votos.
Voltando os olhos para a Europa, em 2021 encerrou-se a era Merkel na Alemanha. A longa vida política da chanceler terminou com uma vitória relativamente débil da social democracia que implicou negociações longas e complexas para a formação do novo governo. Sobretudo, a extrema-direita não teve bom desempenho. Antes disso nos países nórdicos, pela primeiras vez em várias décadas a Social Democracia voltou ao poder. E quando este balanço estava sendo finalizado, em Portugal, contradizendo os prognósticos de pesquisa, o Partido Socialista (PS) teve uma vitória avassaladora sobre o PSD, seu adversário de centro-direita. O PS vai ter maioria absoluta na Assembleia. No entanto, o pleito também significou a assunção da extrema-direita como terceira força no Congresso, pois o Chega, que tinha até agora um único deputado, passou a ter doze representantes no parlamento.
Mais eleições se anunciam para 2022. Na América Latina, Costa Rica terá seu segundo turno em breve e em março acontecem as eleições colombianas. No Brasil, em outubro, a catástrofe política do governo Bolsonaro será posta a prova. Até o momento, as pesquisas mostram que Lula lidera com ampla margem as intenções de voto. Na Europa, as eleições francesas se anunciam como as mais difíceis em muitas décadas. Mais especialmente, o governo Biden e o Trumpismo vão se defrontar nas legislativas de meio-termo. Ou seja, um ano eleitoralmente trepidante e com novas incertezas no horizonte.
Política sexual na pandemia
Ofensivas antigênero
As cruzadas antigênero não recuaram na pandemia. Pelo contrário, tal como assinalado por Clare Prevost, nos primeiros instantes da crise sanitária essas forças tiveram na crise um cenário de oportunidades. Em especial, porque o recurso às fake news e a promoção da desinformação típica dos movimentos antigênero confluiu com os delírios conspirativos dos movimentos antivacina, que já estavam em ação desde 2020 mas ganharam impulso expressivo em 2021.
No Brasil, a sobreposição de pânicos vacinais, morais, sexuais e anticomunistas decididamente colocou mais combustível na máquina de produção de desinformação. Registramos a vinculação de imunizantes ao uso de resíduos de fetos abortados como insumo e noticiamos a suposição conspiratória de que a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a China, se destinava a inserir um chip para esterilizar homens brasileiros. Conforme Isabela Kalil bem analisou em debate no Canal do Meio, essa onda de pânico anticomunista está, direta ou indiretamente, associada ao imaginário da “ideologia de gênero”. A Agência Pública, por sua vez, identificou a confluência entre grupos de médicos contrários ao direito ao aborto que também se dedicaram a combater o isolamento social e a promover tratamentos ineficazes contra a Covid-19, alguns dos quais instalados no Ministério da Saúde, como a chamada Capitã Cloroquina, e com vinculações com o Conselho Federal de Medicina.
Na Colômbia, por sua vez, protestos antivacina se apropriaram do vocabulário das lutas feministas brandindo cartazes onde se liam “meu corpo, minha decisão”. Forças antivacina levaram multidões às ruas tanto na Europa quanto nos EUA e Canadá. Para compreender a escala e significado dessas mobilizações nos faltam análises de de amplitude e curso longo. Nesse sentido, recomendamos como um bom ponto de partida o artigo de Richard Parker sobre a produção de ignorância na pandemia.
A pandemia ofereceu, portanto, às forças antigênero, novos ambientes de agitação. Mas também notamos que a partir de meados de 2021 essas ofensivas começaram a se deslocar da dinâmica epidemiológica para retornar a seu habitat mais diretamente ligado à política de gênero e da sexualidade. Esse retorno foi decididamente marcado por uma intensa conectividade transnacional. Por exemplo, em setembro, o Papa Francisco visitou Hungria e Eslováquia. Nesse tour, o papa repetiu suas conhecidas recomendações sobre o “acolhimento pastoral dos homossexuais” aproveitando, contudo, para reativar o ataque ao “gênero”. Em conversa com jesuítas na Eslováquia, Francisco disse que gênero é um conceito abstrato que “exerce uma fascinação diabólica porque não se encarna”. Tudo indica que essa declaração mirava o debate parlamentar em curso na Itália sobre a lei Zan de crimes de ódio e contra a discriminação que foi paralisada um mês mais tarde. Em entrevista exclusiva, o cientista político Massimo Prearo analisou o debate parlamentar italiano a luz do que ele chama o movimento neocatólico, avaliando também o papel e lugar do Vaticano no processo.
A Hungria foi um epicentro importante dessas conexões. Logo após a visita papal, Budapeste sediou a IV Cúpula Demográfica, promovida pelo governo húngaro desde 2018 para discutir o declínio da fecundidade na Europa e o “problema da migração”. E Marine Le Pen também esteve em Budapeste para discutir com o primeiro-ministro Orbán as “imposições” da União Europeia que, segundo ambos, infringem a “identidade constitucional de seus países”. A se destacar também que, pouco antes da Cúpula do G-20, o presidente russo Vladimir Putin fez um longo discurso sobre as condições geopolíticas e a economia global, no Valdai Club Discussion, no qual vários parágrafos foram dedicados ao “problema do gênero”.
A movimentação também foi intensa na América Latina., com representantes do VOX, o partido espanhol, visitando a região para colher adesões à Carta Madrid, numa investida que chamou atenção por causa do plano da plataforma íbero-americana de extrema-direita que vai se materializando. Quando estávamos fechando esse balanço, uma matéria do jornal espanhol El Diário, trouxe a cobertura de uma reunião recente das direitas europeias em Madrid, na qual o VOX se posicionou como articulador potencial entre as forças europeias com suas congeneres no continente americano.
E, na América Latina, o Brasil foi outro polo de hiperatividade. No final de setembro, Bolsonaro, que em julho havia recebido uma líder da AfD, conversou (fora da agenda oficial) com dois ativistas antivacina alemães. Antes disso, em preparação para as marchas do 7 de setembro, o clube ultraconservador americano CPAC voltou a se reunir no país, com ataques ao feminismo, ao aborto e à identidade de gênero. No mesmo período, registrou-se o apoio deputado bolsonarista Luiz Felipe de Orleans à construção de plataforma digital de Steve Bannon, a patética participação do presidente Bolsonaro no encontro do G-20 a qual se seguiu o anúncio feito pelo Itamaraty que Bolsonaro faria uma visita oficial à Rússia. Desde então, apesar das muitas tensões diplomáticas derivadas da ameaça russa de invasão da Ucrânia, a pauta da viagem está, aparentemente, mantida e uma parada estratégica em Budapeste foi adicionada à programação.
Sobretudo, é preciso mencionar que uma diplomacia paralela ao Itamaraty vem se desdobrando desde o começo de 2021, quando o ministro Ernesto Araújo deixou o cargo e a pauta como o campo ultra-conservador internacional foi transferida para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Essa dinâmica é liderada sobretudo por Angela Gandra, Secretária Nacional da Família, mas também conta em alguns casos com a participação da Ministra Damares Alves. No especial de outubro, fizemos um balanço das movimentações de Gandra e Damares ocorridas desde julho. No começo de 2022, há sinais que essa estratégia diplomática agora se volta para América Latina. Durante o mês de janeiro, Angela Gandra esteve na Colômbia para uma atividade da rede hiper conservadora norte-americana Alliance Defending Freedom (ADF) e, em seguida, esteve com José Antonio Kast em Santiago do Chile. Também visitou a embaixada do Equador em Brasília e já anunciou sua participação no Congresso Íbero-americano pela Vida e pela Família que acontecerá na Guatemala.
Muitos campos de batalha
Em termos factuais, notícias de retrocessos relacionados a essa movimentações não faltam. O governo Orbán proibiu conteúdos LGBTTQ+ nas escolas e nas publicidades e na Polônia, pautas ultracatólicas estão agora integradas às políticas educacionais. Essas notícias chamaram a atenção porque ambos os países são pontos nodais do eixo de movimentos antigênero que se traduzem em políticas de Estado – divulgamos o relatório Tip of the Iceberg detalhando os fluxos de financiamento dessa rede na Europa e registramos que a política de definir-se como “zona não-LGBTTQ+”, adotada por regiões da Polônia, ficou abalada após a União Europeia ameaçar cortar financiamento.
O governo Bolsonaro deu uma significativa contribuição ao cenário das cruzadas antigênero. Conseguiu nomear André Mendonça, um pastor presbiteriano fundamentalista antigênero e antiaborto para o Supremo Tribunal Federal (leia a compilação) e criou um instrumento macabro ao arsenal de políticas estatais destinadas a criminalizar o “gênero”: recentemente, o MMFDH alterou a arquitetura dos hotlines através dos quais se fazem as denúncias de violação de direitos humanos. No novo manual para orientar o registro de denúncias, os termos “gênero”, “homofobia” e “transfobia” foram abolidos. Mais grave ainda, definiu-se “ideologia de gênero” como motivação de “violência institucional” contra crianças e adolescentes. Em novembro de 2021, uma professora e um professor foram objeto de denúncia policial por terem sido denunciados como propagadores de “ideologia de gênero” e “comunismo”. Investigação jornalística revelou que ao menos em um dos casos a polícia foi ativada pelo MMFDH após uma denúncia ter sido recebida pelo Disque 100. Ou seja, como analisa a nota publicada pelo SPW, o que era instrumento para denúncia de direitos humanos foi convertido num mecanismo de vigilância, arbítrio e policiamento político-ideológico.
É preciso dizer ainda que, desde 2020, a linguagem inclusiva de gênero se tornou o novo alvo dessas cruzadas. Em 2021, França, Espanha e Alemanha estiveram no centro dessa trincheira gramatical. O caso francês teve repercussão especial depois que o tradicional dicionário Le Robert incluiu o pronome neutro “iel” em seus registros, explicando que “se o uso desse pronome ainda é relativamente pequeno […], ele está em forte alta nos últimos meses”. A onda também está instalada no Brasil, onde dezenas de projetos de lei foram apresentados e adotaram-se vários decretos executivos que proíbem o uso de vocabulário inclusivo para eliminar o neutro genérico do masculino e designar pessoas não-binárias.
Não menos importante, em 2021 a paisagem das políticas antigênero foi também marcada pela expansão e maior visibilidade dos feminismos radicais, ou antigênero, especialmente na Espanha e na Inglaterra. Um dos casos mais emblemáticos foi a entrevista da filósofa Judith Butler ao The Guardian, cuja repercussão foi enorme depois que o jornal foi acusado de editar trechos da mesma. Pouco tempo depois, o jornal publicou um artigo da filósofa – traduzido para o português por Sara Wagner e revisado pelo SPW – , no qual ela retoma e amplifica sua análise sobre as interseções entre os feminismos trans-excludentes e as forças de extrema-direita e de inspiração fascista.
Finalmente, um fato não trivial do cenário antigênero nacional e mundial foi a morte de Olavo de Carvalho, ideólogo tradicionalista, conhecido como guru da família Bolsonaro e amigo de Steve Bannon. Carvalho encarnou, desde os anos 1990, como nenhuma outra figura, o personagem de líder intelectual brasileiro do chamado giro Gramsciano que, em grande medida, explica a ascensão das forças de direita no mundo e no Brasil. A revista Piauí fez reportagem sobre a herança deixada por Olavo de Carvalho e as pistas sobre o financiamento de sua atuação, e o caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo publicou uma excepcional análise de Camila Rocha sobre sua trajetória intelectual e política.
Direitos LGBTTQ+ ameaçados
Ataques aos direitos LGBTTQ+ foram notícia no continente africano. Episódios de perseguição e violência contra indivíduos e retrocessos jurídico-legais ganharam manchete em Botsuana, Gana, Senegal, Camarões e Quênia (saiba mais aqui). Da mesma forma, no Leste Europeu reportamos reveses, com destaque para Lituânia e Georgia. Na Ásia, o governo chinês excluiu conteúdo LGBTTQ+ de plataformas digitais e registrou-se se uma ofensiva contra “homens efeminados” claramente motivada por uma ideologia nacionalista e masculinista.
Na América Latina, é importante chamar atenção e repudiar o projeto de lei que deputados da Guatemala apresentaram no Congresso que se vale de linguagem patologizante para restringir direitos de pessoas trans e impedir acesso à educação, informação e saúde.
Na Europa, houve os mencionados ataques aos direitos LGBTTQ+ na Hungria e paralização no parlamento italiano de lei contra crimes de ódio e discriminação. Também há que mencionar as “zonas livres de pessoas LGBT” na Polônia que suscitaram condenações e medidas da União Europeia.
E, nos EUA, as ofensivas têm sido também brutais, pois dezenas decretos, leis e projetos de lei que restringem direitos LGBTTQ+ têm sido apresentados e adotados. A Human Rights Campaign publicou uma nota sobre uma onda de ataques sem precedentes contra direitos trans nos legislativos estaduais. Em outubro, o Texas se juntou a outros sete estados banindo a participação de meninas trans em esportes femininos. Além disso, ofensivas contra educação sexual vêm assumindo novos contornos. Segundo um artigo da New Yorker, a campanha vitoriosa do republicano Glenn Youngkin na Virginia teve como alvos a hesitação do retorno às aulas após a pandemia, a “intrusão da teoria crítica de raça nos currículos, e o respeito a normas fluidas de gênero em escola públicas”. Iniciativas semelhantes estão sendo propostas na Flórida.
Violência de gênero
Dois casos ecoaram mundialmente. A renúncia do governador de Nova Iorque Andrew Cuomo, após denúncia e investigação sobre assédio sexual contra mulheres de sua equipe, e a acusação de violência sexual da tenista chinesa Peng Shuai contra ex-vice-premiê da China. Após expor o caso, a esportista ficou desaparecida por três semanas e, quando reapareceu em público, negou o que dissera. Mais notícias sobre mobilizações, desafios e debates pelo mundo em torno do enfrentamento à violência de gênero podem ser conferidas aqui. Ainda em janeiro de 2022, as mulheres uruguaias convocadas pelos feminismos fizeram amplas mobilizações em todo o país em protesto contra a violência sexual. As marchas foram motivadas por um caso brutal de estupro coletivo que chamou a atenção no país.
Resistências e boas novas
Mas há também boas novas. A nova lei espanhola de identidade de gênero, aprovada em junho após longo e polarizado debate, foi uma delas. Depois, comemoramos decreto promulgado pelo Executivo na Argentina que complementa a Lei de Identidade de Gênero de 2012, autorizando o registro de pessoas não binárias no Documento Nacional de Identidade. No Brasil, o estado do Rio de Janeiro passou a incluir o gênero não-binarie em certidões de nascimento.
No âmbito de decisões jurídicas de alto nível, um número importante de julgamentos positivos aconteceu na América Latina, os quais, substantivamente, derivam da Opinião Consultiva 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 2017. A primeira dessas decisões foi a condenação de Honduras pelo assassinato da mulher trans Vicky Hernandez, no contexto do golpe de estado de 2009, pela Corte Interamericana. Uma segunda decisão de mesmo teor foi emitida pela Sala III da Corte Constitucional da Costa Rica que reconheceu que a vulnerabilidade da violência contra mulheres também se aplica a pessoas com gênero assignado. Finalmente, no Panamá, a Corte Suprema de Justiça julgou inconstitucional a regra de restrição de mobilidade baseada em sexo/gênero adotada em 2020, as quais haviam sido analisadas num artigo de Sonia Corrêa, publicado em 2020.
Na ONU, foram apresentados, em junho e outubro, os informes El Derecho a la Inclusión e Practicas de la Exclusión elaborados pelo Perito Independente Victor Madrigal-Borloz, que analisam e respondem do ponto de vista da norma internacional as ofensivas antigênero. Também cabe mencionar que 53 Estados solicitaram que o Conselho de Direitos Humanos da ONU adote medidas de proteção dos direitos humanos de pessoas intersexo.
No campo da chamada “cura de homossexuais” três notícias muito positivas: a Suprema Corte de Madras (Índia) proibiu a prática em junho; no Canadá, o Parlamento aprovou em dezembro lei proibindo as chamadas “terapias de conversão”; e, na França, o Parlamento aprovou lei proibindo a prática. O casamento entre pessoas do mesmo sexo também avançou em 2021. Suíça e os estados mexicanos de Sonora e Querétaro aprovaram leis de matrimônio igualitário. Também relevante foi o avanço em Cuba após projeto de novo código familiar ampliar a definição de casamento.
Os Jogos Olímpicos de Tóquio, apesar das limitações impostas pela Covid-19, também trouxeram boas notícias. A profusão de demonstrações de diversidade sexual e religiosa e a participação de atletas trans e não-binários foram destaques. Recomendamos, na ocasião, reportagem da Folha de São Paulo sobre o apelo dos jogos a “questões universais” e a excelente reportagem da Gênero e Número sobre participação LGBTTQ+.
Direito ao Aborto
Em que pese os avanços, a cena do direito ao aborto foi marcada por notícias preocupantes vindas das duas maiores potências globais. Nos EUA, o espectro da derrubada de Roe vs. Wade tornou-se mais factível com a nova maioria conservadora da Suprema Corte e devido à proliferação de projetos restritivos nos legislativos estaduais. O horizonte da batalha pelo direito ao aborto ficou ainda mais desfavorável após a entrada em vigor de lei draconiana do Texas, que acabou sendo objeto de suspensão e reativação no circuito da Justiça Federal – produzimos extensa compilação sobre o caso e sugerimos particularmente a análise de Françoise Girard sobre a cena norte-americana. Como a autora evidencia com a análise da Suprema Corte da Lei do Mississipi – que pode ser ainda mais restrita -, a ameaça ao direito ao aborto é real no país. Em meados de janeiro, a Suprema Corte manteve a lei do Texas em vigor. Vale registrar ainda que, lamentavelmente, o modelo texano de restrição extrema das possibilidades de aborto foi seguido por Ohio e Florida, onde projetos draconianos tramitam nos respectivos legislativos estaduais.
Na China, o governo anunciou em setembro que o plano de políticas voltadas para as mulheres e crianças prevê que, ao longo da próxima década, o acesso ao aborto será restrito a casos com indicação médica. A mudança da política está diretamente associada à dinâmica de envelhecimento populacional e à redução da natalidade que, já em 2013, havia levado à flexibilização da política do filho único. Cai Yping, em artigo exclusivo para o SPW, desvela com maestria a reconfiguração das políticas populacionais do país. Leia também nossa compilação com notícias e análises sobre a nova política chinesa.
Na América Latina, a más notícias também são muitas. No Brasil, 100% dos projetos apresentados na Câmara dos Deputados, como mostra a Gênero e Número, são regressivos. E o cenário político do Congresso, segundo a Agência Pública, é muito desfavorável a essa pauta. Além disso, a cidade de Fortaleza criou a “Semana Pela Vida”, que tem em mira o direito ao aborto e à contracepção; e o primeiro serviço de aborto por telemedicina foi alvo de ataques de setores conservadores.
No Uruguai, várias formas de resistência ao direito ao aborto ganharam espaço com a eleição de um governo conservador em 2019. O fato mais recente foi a denúncia que uma médica que ocupa um posto de coordenação na ASSE, a mais importante rede de serviços do país, havia tentado persuadir uma mulher a não abortar. Em resposta, as feministas se mobilizaram em defesa da lei de 2012. Em El Salvador, o presidente Bukele descartou a legalização do aborto terapêutico no projeto de reforma constitucional.
Lamentavelmente, como é rotineiro no universo da criminalização do aborto, o destino trágico de uma mulher ganhou manchetes: uma polonesa de 37 anos morreu após o procedimento ter sido atrasado com base na draconiana lei do país, que entrou em vigor em janeiro de 2021 e já fora responsável pela morte de outra gestante em novembro.
Boas Novas
E há também razões para comemorar nas difíceis trincheiras do direito ao aborto. Comemoramos, por exemplo, o primeiro aniversário da lei de aborto argentina, que legalizou o procedimento. Página 12 e La Malafe documentam o que se seguiu à lei. Em Honduras, a reforma constitucional de janeiro que definiu uma proibição futura de legalizar o aborto gerou uma expressiva contestação feminista e, seis meses mais tarde, foi apresentada à Corte Constitucional uma demanda de descriminalização do aborto. No Equador, em abril, a Corte Constitucional descriminalizou o procedimento para mulheres grávidas por estupro.
Já no México os avanços foram ainda mais significativos, pois a Suprema Corte de Justiça descriminalizou, de jure, o procedimento ao considerar inconstitucional uma lei estadual que penaliza ao aborto. Seguiu-se uma diretriz da Procuradoria Federal orientando os judiciários locais a reverem com a maior brevidade possível as condenações de mulheres que estão presas ou indiciadas. E, em seguida, a Corte também emitiu uma decisão que restringe o escopo do direito à objeção de consciência. O significado dessa várias decisões foi analisado pelo Juiz Zaldivar, que é o presidente da Corte, em artigo para o Washington Post. Ainda no México, os estados de Vera Cruz e Hidalgo também descriminalizaram a prática. Além disso, a imprensa estadunidense publicou matérias sobre feministas mexicanas que estão facilitando o acesso de mulheres que vivem no Texas a serviços de aborto em seu país.
Em outra decisão judicial importante, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou El Salvador por violar os direitos de uma jovem condenada a 30 anos de prisão após uma emergência obstétrica. Também trouxeram ânimo o Chile, com avanço de projeto de legalização na Câmara em setembro, e a Colômbia, com a entrega à Corte Constitucional da ação elaborada pela campanha Causa Justa, que demanda pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto.
Luto
O ano de 2021 registrou perdas irreparáveis e duras para o ativismo e o pensamento no campo do gênero e diversidade. A socióloga argentina Susana Checa; a filósofa brasileira Fran Demétrio; o filósofo Roberto Machado; o psicanalista Contardo Calligaris; e o também filósofo José Arthur Gianotti partiram (clique aqui para mais detalhes da biografia de cada um). E, em dezembro, a teórica feminista bell hooks também partiu (leia mais sobre seu legado no artigo de Silvia Pimentel e Alice Bianchini).
Duas partidas muito dolorosas que aconteceram entre o fim de 2021 e o início deste ano foram a da cantora Elza Soares, ícone do feminismo e um dínamo da resistência negra; e a do arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu, figura importante no enfrentamento ao apartheid na África do Sul e na promoção dos direitos LGBTQQ+.
Especiais na íntegra
Para acessar na íntegra os especiais de 2021, clique abaixo.
Política Sexual em Tempos de Pandemia: Janeiro – Julho 2021
Política Sexual em tempos de pandemia: Agosto – Outubro 2021
Recomendamos
Nossa lista de artigos acadêmicos e de imprensa, publicações e recursos multimídia é imensa, motivo pelo qual linkamos aqui e aqui as seções de cada um dos dois especiais produzidos durante 2021. Não obstante, listamos abaixo aqueles que consideramos fundamentais e inescapáveis na descrição e análise da cena da política sexual em 2021.
Gênero e tradução:além do monolingusimo – Judith Butler
Alegoria trans em novo ‘Matrix’ passou de libertação a desencanto – Folha de S. Paulo
Brasil assume liderança de aliança internacional antiaborto – Por Sonia Corrêa e Gustavo Huppes
Muito antes de Mendonça, o Estado brasileiro já não era laico – Por Salomão Ximenes e Sonia Corrêa
Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 – Antra
Juventudes e democracia na América Latina – Luminate, Unifesp e Cebrap
“Menino veste azul, menina veste rosa”: Bolsonaro e a agenda antigênero como política
de governo no Brasil – Daniela Rezende
Quando o aborto encurta o luto e alivia o sofrimento – AZMina
El guardián que defiende el derecho al aborto en el Brasil más pobre – El País
‘Desdenhar evangélicos é desconhecer o Brasil popular’ – Nexo
Aqui Mando Yo: Democracias frágiles, políticas autoritárias – proyecto periodístico y académico en México, El Salvador, Nicaragua, Colombia, Venezuela, Brasil y Chile para entender los ataques a la democracia y las políticas autoritarias que afectan a la región.
Que em 2022, um ano decisivo e de eleições, a gente seja ‘indomesticável’ – Andrea Dipp
Estamos Listas, el movimiento de mujeres que busca llegar al Congresso en Colombia – El País
Estudo pioneiro na América Latina mapeia adultos transgêneros e não-binários no Brasil – Jornal da Unesp
Entrevista: ‘Repensar o masculino deveria ser prioritário’, diz escritor João Silvério Trevisan – O Globo
Nenhum futuro para a heterossexualidade na terra do “orgulho hétero” onde reina a LGBTIfobia de Estado? – Bruna Irineu
Desequilíbrio no sistema: Desigualdade entre homens e mulheres marca a distribuição de bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq – Pesquisa Fapesp
Arte e Sexualidade
Os Jogos Olímpicos de Tóquio nos inspiram a revisitar uma breve nota, Arte, Risco, Desconstrução sobre o teatro físico de Elizabeth Streb.
Paula Rego, a pintora portuguesa dos “pasteis do aborto”, também foi destaque, com retrospectiva do museu Tate Modern trazendo obras inéditas.