Uma nova ramificação das cruzadas contra o gênero, no Brasil e no mundo, que também se vincula ao campo educacional, mas não se restringe a ele, é o repúdio a chamada linguagem neutra (também conhecida como linguagem não-binária ou neolinguagem). Esse termo se refere a propostas de intervenção linguística que questionam a existência de somente dois gêneros (masculino e feminino) e que se materializam na criação de novos sistemas pronominais e marcas gramaticais que visam o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas não-binárias. A linguagem neutra, por estar claramente vinculada a uma geração mais nova do movimento trans e fazer demandas mais fortes de desconstrução das dicotomias de gênero, tornou-se o o mais novo alvo de ataques antigênero no país.
Além de críticas que vinham sendo veiculadas na imprensa e nas redes sociais há algum tempo, desde 2020, assiste-se à proliferação de projetos de lei cujo objetivo é proibir o uso de linguagem neutra nas escolas e outros serviços públicos. Esse movimento teve início em novembro de 2020 no Rio de Janeiro quando o Liceu Franco-Brasileiro, uma escola particular, divulgou uma nota informando aos pais que passaria a utilizar o termo “alunes” com o objetivo de reconhecer as diversas identidades de gênero do corpo discente. Logo em seguida, os deputados estaduais Marcio Gualberto e Anderson Moraes do PSL (Partido Social Liberal) apresentaram o Projeto de Lei 3.325 que “estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes do estado do Rio de Janeiro ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com as normas e orientações legais de ensino”.
Em dezembro de 2020, dois textos semelhantes foram propostos na Câmara dos Deputados: o PL 5.198/2020 idealizado por deputado Júnior Amaral (PSL) e o PL 5.248 do Capitão Derrite (PRO). Vale salientar que esses PLs, em grande medida, reproduzem argumentos utilizados pelo projeto apresentado à Assembleia Nacional francesa em julho de 2020 por um grupo de políticos liderados por Marine Le Pen que também visa proibir o uso de escrita inclusiva em escolas e instituições públicas. Embora a lei francesa não tenha sido votado, no começo de 2021 o Ministro da Educação Gabriel Attal assinou um decreto que assimila o seu conteúdo e proíbe linguagem inclusiva. Tanto na Câmara dos Deputados quanto em níveis municipais esses projetos aguardam votação. Mas há também duas situações locais em que essas regras, assim como aconteceu na França, também estão sendo adotadas por decreto. Uma delas é a Resolução 03/2021 da Secretaria de Educação do município de Santo André (SP) e a outra o Decreto Estadual 1.329/2021 de Santa Catarina, proposto pela deputada Ana Caroline Campagnolo (PSL) e sancionado pelo governador do estado, Carlos Moisés (PSL), em junho de 2021.
Essas propostas parecem proliferar como estratégia para driblar as decisões do STF a lentidão na aprovação de projetos de lei apresentados pelo Movimento Escola Sem Partido. OU seja o fico se desloca do gênero na educação para a defesa intransigente da norma linguística culta como uma estratégia para censurar o debate sobre igualdade de gênero e diversidade nas escolas ao associar a linguagem neutra à “ideologia de gênero”. De diferentes formas, essas disposições partem de equívocos ou deturpações legais e linguísticas sobre ensino de língua portuguesa e sobre o fenômeno da linguagem neutra. São, portanto, inconstitucionais e sem lastro empírico na realidade dos fenômenos que pretendem regular. Esses argumentos são levantados pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.925/2021 ajuizada em julho de 2021 pelo Partido dos Trabalhadores (PT) ao Supremo Tribunal Federal contra o decreto de Santa Catarina. Atualmente, a ADI aguarda análise do relator, Ministro Nunes Marques.