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Desvelando a reconfiguração da política populacional na China

Foto: PixaBay

Por Yping Cai

O governo chinês anunciou a política de três filhos em maio de 2021, o que marcou a drástica e rápida reconfiguração da política populacional no país mais populoso do mundo e a segunda maior economia. Trata-se de outra grande mudança na política populacional desde a coercitiva e draconiana “política do filho único” no final dos anos 70. A “política do filho único” da China refere-se à política de planejamento familiar que restringiu o casal casado a apenas um filho. Na verdade, a política de planejamento familiar da China é mais sofisticada – por exemplo, permite que os residentes rurais tenham o segundo filho se o primeiro for uma menina (a chamada política de um filho e meio). A política foi aplicada pela Comissão Nacional de População e Planejamento Familiar, com um sistema de punição para os infratores (multas, esterilização forçada e aborto) e recompensas por cumplicidade (incentivos em dinheiro e outros benefícios sociais). Em novembro de 2013, esta política foi flexibilizada permitindo que casais casados que são os únicos filhos em suas famílias tenham dois filhos. No mesmo ano, a Comissão Nacional de População e Planejamento Familiar fundiu-se com o Ministério da Saúde para formar a Comissão Nacional de Saúde e Planejamento Familiar, que então é renomeada em 2018 como a Comissão Nacional de Saúde. A “Emenda à Lei de População e Planejamento Familiar da República Popular da China (Draft)” foi adotada em 2 de dezembro de 2015, e lançada oficialmente em 1º de janeiro de 2016. Ela visa acelerar a implementação de uma política abrangente de duas crianças em todo o país, que está diretamente associada à dinâmica do envelhecimento da população e da redução da taxa de natalidade. Entretanto, todos esses ajustes políticos nos últimos anos não foram capazes de efetivamente reverter a tendência de diminuição da taxa de fertilidade na China. A taxa de fertilidade total da China (TFR) continua a cair de 5,6 filhos por mulher (1970) para 2,6 (1980) para 1,6 (2017) para 1,3 (2020), abaixo do nível de reposição de 2,1 necessário para uma população estável (Zhao, 2019; Zhao & Zhang, 2021).

As tendências demográficas e a mudança da política demográfica na China atraem a atenção da mídia global, que a chama de “crise demográfica”, e estudiosos de diversas origens disciplinares analisam seus impactos abrangentes. Até agora, as análises e reflexões sobre a mudança da política demográfica na China concentram-se nas quatro áreas principais – (1) a lógica por trás das mudanças políticas, ou seja, a crise demográfica; (2) a eficácia das intervenções políticas em termos de aumento da fertilidade; (3) os impactos econômicos e sociais mais amplos no crescimento, composição da força de trabalho, estrutura familiar; mais especificamente (4) os impactos nos direitos humanos, nos direitos das mulheres e na igualdade de gênero. O consenso entre demógrafos, sociólogos, historiadores e ativistas feministas e de direitos humanos é que a política dos três filhos não reverteria o declínio da taxa de natalidade devido a várias razões. Os sociólogos argumentam que a política não aborda as causas fundamentais – tais como urbanização, maior acesso das mulheres ao ensino superior, expectativas crescentes sobre os padrões de vida, entre outras, que resultam na norma e mudança de comportamento, ou seja, as decisões das mulheres chinesas de adiar o casamento e a procriação (Wang & Cai, 2021). Ao examinar a história do aborto e do controle da natalidade na China, os historiadores apontam que a interferência do Estado e o foco no monitoramento do corpo das mulheres não é algo novo.  Eles criticam a persistente falta de humanidade no planejamento familiar e nas políticas populacionais de longa data desde o século 20 até o presente, da eugenia à teoria malthusiana da população, à engenharia social (Rodriguez, 2022). Os demógrafos propõem as estratégias mais eficazes e de longo prazo para complementar a política de três filhos, tais como adiar a idade da aposentadoria, aumentar a produtividade dos trabalhadores e melhorar a saúde da população (especialmente nas idades mais velhas), para tratar das realidades demográficas (Zhao & Zhang, 2021). Os comentários e respostas das jovens feministas chinesas são contundentes e resolutos: elas não considerariam entrar no casamento e produzir bebês, até que uma sociedade não discriminatória e de igualdade de gênero se torne uma realidade, conforme expresso por Crystal L1.

Feministas e defensores da saúde e direitos sexuais e reprodutivos (SRHR) sempre criticaram a coerção e a violação de direitos na aplicação das políticas de planejamento familiar por décadas. A mudança na política do filho único  não diminui sua cautela e suspeita. Além disso, desde muito desconfiam que o acesso das mulheres ao aborto seria limitado num contexto em que políticas pró-natalistas fossem adotadas. De fato, em setembro de 2021, o governo chinês lançou a nova diretriz política para as mulheres, a saber, “Programa para Mulheres e Desenvolvimento (2021-2030)”. Na área de “Mulheres e Saúde”, declara a “redução dos abortos por razões não médicas” como uma das estratégias para atingir o objetivo de saúde2. Esta linguagem desencadeia a vigilância de muitas feministas e defensores dos SHRH que prevêem de forma deprimente que, durante a próxima década, o acesso ao aborto será restrito aos casos com indicação médica. Sem dúvida, a preocupação das feministas não é infundada,  especialmente se localizarmos estas mudanças políticas na China no contexto global mais amplo de ferozes campanhas antiaborto e ideológicas antigênero que acontecem nas Américas, Europa e África3. Embora existam diferenças nas motivações e racionalidades que informam as políticas de aborto em cada país, seja em benefício dos objetivos do Estado (maior fertilidade) ou em nome de um mandato moral derivado principalmente de doutrinas religiosas cristãs, essa incomum convergência, entre a China e o resto do mundo,  merece uma pesquisa mais sistemática e reflexões críticas.

A política de aborto da China sempre foi muito complicada e controversa. Por um lado, a criminalização do aborto foi deixada para trás para ceder à política de controle da fertilidade estabelecida no final dos anos 70, cujas características coercitivas foram objeto de duras críticas, inclusive por feministas, defensoras dos direitos humanos  de todo o mundo. Não surpreendentemente, a polêmica também foi alimentada por  forças religiosas e de direita conservadoras ocidentais antiaborto que fizeram do Partido Comunista Chinês (PCC) um de seus principais alvos ideológicos. Por outro lado, como o programa de planejamento familiar visa principalmente as mulheres casadas, isso deixa os jovens sem acesso aos serviços contraceptivos e informações sobre saúde sexual, o que resulta na alta prevalência de gravidezes indesejadas e nas altas taxas de aborto entre jovens solteiras (Kaufman et al., 2014; Hu, 2015; UNFPA China, 2018). O UNFPA e a UNESCO, por sua vez defendem a educação sexual, apelam para a oferta de educação sexual abrangente e de serviços de saúde sexual e reprodutiva favoráveis aos jovens como medidas efetivas a serem tomadas para enfrentar o problema.

A preocupação com o desequilíbrio da razão de sexo, pois nascem muito menos meninas que meninos na China acrescenta mais complicações ao debate em torno do aborto. O desequilibrio é explicados pela conbinacão entre uma cultura predominante de preferência por filhos homens e o aborto seletivo para que essa expectativa seja preeenchida (UNFPA, 2007) 5. Embora a seleção de sexo por razões não médicas tenha sido tornada ilegal por lei desde 1994, a prática persiste.  Tendo revisto essa complicada trajetória da política de aborto na China e  debates a ela relacionados, não surpreende a diretriz para “reduzir o aborto por razões não médicas” que consta do  recém-lançado Programa Nacional sobre Mulheres e Desenvolvimento 2021-2030. Essa diretriz  não só está alinhado com a nova política pró-natalista, como é  consistente com a política que busca reduzir o aborto seletivo que esxiste dsde os anos 1990.   Em tais circunstâncias,  análises contextualizadas e que fçam atenção às nuances são cruciais. Mais importante ainda, estudiosas feministas e ativistas de direitos humanos precisam intervir ativa e estrategicamente no processo em andamento, participar dos debates, monitorar de perto a implementação das políticas e suas implicações na saúde e nos direitos das mulheres. 

Até onde vai  a política da população chinesa, e em que direção ?  Como pensar as novas  restrições ao aborto na sua relação como demandas por egalização dos direitos sexuais e reprodutivos para todos, incluindo a população LGBT? Ainda não sabemos a resposta. Como sempre houve, continua havendo muitos campos de contestação envolvendo atores muito diversos e poderosos, nos quais as  feministas e defensoras/es dos direitos das mulheres deveriam ter suas vozes críticas  ouvidas.  Talvez um primeiro passo para enfrentar a atual crise demográfica seja superar a a obsessão com a fecundidade e  o fetichismo  das  políticas demográficas e da engenharia social. É tempo de  mudar o foco de uma lógica de controle do corpo e da sexualidade das mulheres e voltar concentrar atenção e recursos na melhoria da saúde e do bem-estar de todos, incluindo sua saúde e direitos sexuais e reprodutivos, respeito e proteção da integridade corporal das mulheres e promoção da igualdade de gênero.

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1 A apresentação da Crystal L. pode ser encontrada na série de Webinars sobre a China e o mundo, Episódio 4. Os movimentos sociais da China. (https://www.youtube.com/watch?v=oozxsKFYiY0). Recuperado em 8 de dezembro de 2021.

2 Conselho de Estado da República Popular da China, Programa para a Mulher e o Desenvolvimento (2021-2030). 8 de setembro de 2021. (http://www.gov.cn/zhengce/content/2021-09/27/content_5639412.htm ). Recuperado em 7 de dezembro de 2021.

3 Mais informações e análises podem ser encontradas em “Recursos sobre Ideologia AntiGênero” compilados pelo Global Philanthropy Project. (https://globalphilanthropyproject.org/2018/11/29/resistingagi/#1574262046103-f70c01c6-b764 ). Recuperado em 8 de dezembro de 2021.

4 A proporção sexual ao nascer refere-se ao número de nascidos vivos masculinos por 100 nascidos vivos femininos. A proporção “normal” ao nascer é, em geral, entre 103 e 107. Países que são conhecidos por terem ou terem tido uma proporção maior que esta incluem a Coréia do Sul, Índia e China. 

5 Após 1990, a Comissão Nacional de População e Planejamento Familiar, o Ministério da Saúde e outras agências relacionadas promulgaram uma série de regulamentos administrativos para proibir a identificação sexual fetal e a interrupção da gravidez por motivos não médicos. Mais importante ainda, tanto a Lei de Saúde Materna e Infantil (1994) quanto a Lei de População e Planejamento Familiar (2001) tornaram ilegais a identificação sexual fetal e a interrupção da gravidez por motivos não-médicos.

Referências

Hu, Yukun. 2015. “The reproductive health crisis of a large group: analysis on abortion among Chinese youth and adolescence”. In Social Sciences Forum. Vol. 11. pp. 206-218.

Kaufman, Joan, Mary Ann Burris, Eve W. Lee, and Susan Jolly. 2014. “Gender and reproductive health in China: partnership with foundations and the United Nations”. In Philanthropy for health in China. ed. by Jennifer Ryan, Lincoln C. Chen, Tony Saich. Indiana University Press. 

Long US-China Institute, UCI. 2021. “Urban Women and China’s Demographic Crisis” (https://youtu.be/wiHNEKUCQK8) Retrieve on 5 December 2021

Rodriguez, Sarah Mellors. 2022. Reproductive Realities: Birth Control and Abortion in Modern China. Cambridge University Press. (Forthcoming)

State Council of People’s Republic of China, Program for Women and Development (2021-2030). 8 September 2021. (http://www.gov.cn/zhengce/content/2021-09/27/content_5639412.htm). Retrieve on 7 December 2021.

Transnational Institute. 2021. China and the world series: Episode 4China’s social movements. (https://www.youtube.com/watch?v=oozxsKFYiY0). Retrieve on 8 December 2021.

UNFPA China. 2007. Sex ratio – facts and figures 2007. 

UNFPA China. 2018. Ending Unintended Pregnancies among Chinese Youth by 2030. UNFPA China Policy Brief Series.  

Wang, Feng and Yong Cai. 2021. The real reason behind China’s three-child policy. The New York Times. 7 June 2021. (https://www.nytimes.com/2021/06/07/opinion/china-three-child-policy.html). Retrieve 6 December 2021.

Zhao, Zhongwei; China’s fertility woes. 1 May 2019. (https://www.eastasiaforum.org/2019/05/01/chinas-fertility-woes/). Retrieve on 7 December 2021.

Zhao, Zhongwei & Guangyu Zhang; The reality of China’s fertility decline; 8 July 2021. (https://www.eastasiaforum.org/2021/07/08/the-reality-of-chinas-fertility-decline/). Retrieve on 7 December 2021.

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