Por Françoise Girard
Tradução autorizada do original em inglês pela equipe SPW.
Em 1º de dezembro, estive com outras ativistas da luta por justiça reprodutiva e direito ao aborto em frente à Suprema Corte dos Estados Unidos para ouvir argumentos do caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization. Este é o caso da lei Mississippi (HB 1510, a Lei da Idade Gestacional), que proíbe o aborto após 15 semanas de gravidez.
O sol brilhava, mas a atmosfera estava carregada. Vários ativistas antiaborto tinham colocado seus alto-falantes do “nosso lado” – ou seja, no espaço reservado para quem apoia a Jackson Women’s Health Organization, a única clínica de aborto que ainda existe no Mississippi e uma das partes no caso. Eram homens (brancos e mais velhos) que gritavam sem parar conosco: “Vão arder no inferno, assassinas de bebês!”, “Arrependam-se ou pereçam, rameiras da Babilônia!” Sempre que uma mulher negra compartilhava sua experiência de aborto, ou falava sobre a realização de abortos, a gritaria aumentava: “Genocídio negro! Vocês estão matando bebês negros!” Era implacável, violento e intenso.
No entanto, nossas oradoras continuaram nos inspirando, falando de compaixão, coragem, determinação, humor, mas também às vezes com raiva e indignação justa. Ali estavam: as e os ativistas do direito ao aborto: médicas/os, contadoras/es de histórias, organizadoras/es de comunidades e de jovens, advogadas/os, estudantes de medicina e membros de congressos – líderes corajosas/os e inspiradoras/es, a maioria mulheres de cor, muitas jovens e muitas pessoas queer, que conhecem muito bem os danos que a proibição do aborto inflige em suas comunidades. As organizações eram chamadas ao pódio pela incansável Renee Bracey Sherman dos grupo de contadores de histórias. Nós testemunhamos, acenando pompons prateados com os logos de várias organizações: Yellowhammer Fund, Mississippi Reproductive Freedom Fund, Abortion Care for Tennessee, SisterSong, All* Above All, Liberate Abortion Coalition, Access Reproductive Care-Southeast, Reproaction, Shout Your Abortion, Center for Reproductive Rights, NARAL Pro-Choice America, Planned Parenthood Federation of America.
Fiquei espiando alguns dos estudantes da Universidade Liberty do pastor Jerry Falwell, que foram recrutados às centenas para essa ocasião, ouvindo atentamente nossos oradores e rezando. Eles pareciam ser os estudantes de cor solitários num mar de casacos vermelhos da Liberty varsity.
Esta foi a primeira audiência plena da Suprema Corte para tratar de um caso de aborto desde que a ícone feminista Ruth Bader Ginsburg foi substituída pela ultraconservadora Amy Coney Barrett. As coisas não pareciam nada bem mesmo antes do início da audiência. Em um mundo onde o precedente legal de fato conta, a Suprema Corte nunca teria aceitado o caso Dobbs. Os tribunais inferiores já haviam declarado a lei do Mississippi inconstitucional porque ela viola claramente as decisões da Corte sobre a proibição do aborto pré-viabilidade (antes que o feto possa sobreviver sozinho) tomadas nos últimos 50 anos. A permissão para recorrer à Suprema Corte deveria, em tese, ter sido negada.
Em 1º de setembro, a mesma Suprema Corte havia se recusado a suspender outra proibição ao aborto, a SB 8, lei texana que proíbe o aborto depois das seis semanas de gravidez e que dá poder a “vigilantes civis” para fazer cumprir essa proibição. A SB 8 nega tão descaradamente às pessoas grávidas o direito constitucional de obter um aborto que a Suprema Corte deveria ter suspendido a aplicação da SB 8 até chegar a uma decisão definitiva. Isso porque quando uma contestação legal é apresentada contra uma nova lei que, supostamente, inflige danos graves, o tribunal normalmente suspende a aplicação da lei até que possa decidir o caso, para evitar esse dano. O fato da Suprema Corte se recusar a proteger as mulheres do Texas contra a SB 8 já foi um escândalo.
E os argumentos orais em torno ao caso Dobbs, transmitidos em áudio, foram chocantes e enfurecedores. Felizmente, a fantástica juíza Sonia Sotomayor estava preparada para vociferar quando preciso. Do ponto de vista estritamente legal, o Mississippi tinha permissão para levantar um único argumento: se um Estado poderia proibir o aborto após 15 semanas em lugar de obedecer a definição vigente de 24 semanas. Essa definição de viabilidade fetal foi estabelecida em 1973, em Roe e novamente em 1992, no caso Casey (que revisou extensivamente a decisão Roe e a manteve). No entanto, ao comparecer perante a Corte, Scott Stewart, o Procurador Geral do Mississippi, levantou argumentos muito mais amplos. Alegou que Roe Vs Wade deveria ser completamente derrubada e que a questão do aborto deveria ser deixada para definição legal dos estados individuais. Durante os argumentos, o Juiz Chefe, John Roberts, observou que o Mississippi tinha “alterado sua argumentação”, o que teria sido suficiente para descartar o caso. Mas ao invés disso o Juiz Roberts deu cobertura ao Mississippi e deixou Stewart argumentar que era impossível levantar a questão da proibição por 15 semanas sem colocar em questão o direito fundamental das mulheres ao aborto. E por que o Mississippi havia mudado sua abordagem? A juíza Sotomayor explicou a razão desse desvio quando disse que: “Agora os patrocinadores desse projeto de lei, o projeto da Câmara no Mississippi, estão fazendo isso porque há novos juízes na corte'” (ou seja, Brett Kavanaugh e Coney Barrett). Sotomayor também advertiu a Corte contra a anulação de um precedente de 50 anos: “Será que esta instituição vai sobreviver ao mau estar que isso vai criar na percepção pública, ou seja a de que a Constituição e sua interpretação são apenas atos políticos?”.
Com relação ao argumento também levantado pelo procurador de que Roe foi erroneamente decidido porque a palavra “aborto” não existe na Constituição dos EUA, Sotomayor observou, com certa exasperação, que nem mesmo o papel da Suprema Corte como árbitro final da constitucionalidade está inscrito na Constituição. Em seguida, ela passou a enumerar os domínios de decisões pessoais nas quais, segundo interpretação da Corte, o Estado não pode intervir: a religião ensinada por pais e mães a seus filhos e filhas, a opção pela educação domiciliar, o uso de contraceptivos, o direito de casar com a pessoa de sua escolha. “Temo que nada disso esteja inscrito na Constituição. Todas essas situações (…) foram discernidas com base no enquadramento da Constituição”.
Quando perguntado por Coney Barrett se esses outros direitos seriam afetados pela derrubada de Roe, Stewart negou que casos como Griswold (direito de usar contraceptivos), Lawrence (direito de ter relacionamentos com pessoas do mesmo sexo), ou Obergefell (direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo) seriam afetados. No entanto, estes casos se basearam na mesma interpretação do texto constitucional que se aplica a Roe, conhecida como “processo substantivo devido” da Décima Quarta Emenda à Constituição. “Não tenho certeza de como sua resposta faz algum sentido”, disse Sotomayor. “Griswold, Lawrence, Obergefell – todos eles se apoiam no devido processo substantivo. Você está dizendo que não há um processo substantivo devido na Constituição, e se é assim essas decisões, de acordo com sua teoria, foram equivocadas”. E acrescentou: “Eu acho que você está apenas dissimulando quando afirma que uma decisão nesse caso não teria um efeito sobre essas outras decisões”. Sotomayor está certa: a derrubada de Roe abre campo para novos ataques ao direito à privacidade e à liberdade. Os direitos relacionados a contraceptivos, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, podem ser derrubados se isso acontecer com Roe.
O procurador do Mississippi chegou então a seu argumento principal: “Nenhum desses [casos] envolve o término intencional da vida”. Perplexa Sotomayor, perguntou: “O seu interesse no caso se justifica por alguma razão outra que não seja uma visão religiosa? A questão de quando a vida começa tem sido debatida calorosamente pelos filósofos desde o início dos tempos. Ainda é debatida em muitas religiões. Assim sendo, quando você alega que este é o único direito que limita a capacidade do Estado de proteger uma vida, essa é uma visão religiosa…”. Stewart esquivou-se da pergunta e respondeu que a ausência de acordo sobre quando a vida começa implicava que a questão deveria ser devolvida aos estados para que decidissem. Elizabeth Prelogar, a Procuradora-Geral dos Estados Unidos, pediu a palavra para deixar claro por que essa alternativa é inaceitável: “A Corte reconheceu corretamente que [o aborto] é um direito fundamental das mulheres, e no caso dos direitos fundamentais não cabe aos legisladores estaduais decidir se devem ou não honrá-los”.
Sotomayor , em seguida, fez um apelo à Corte para prestar atenção nas mulheres: “Então, quando a vida de uma mulher e o risco que ela corre entra nesse cálculo?”. Mas só quando Julie Rikelman, do Centro de Direitos Reprodutivos, e Prelogar se dirigiram à Corte, é que essas considerações seriam finalmente discutidas. “Quando um estado toma o controle sobre o corpo de uma mulher, exigindo que ela atravesse uma gravidez e um parto com todos os riscos físicos e consequências que alteram sua vida, ocorre uma privação fundamental da liberdade dessa mulher”, disse Rikelman. Prelogar, por sua vez, advertiu a Corte contra a promulgação de uma “contração sem precedentes dos direitos individuais (…) A Corte, até aqui, nunca revogou um direito tão fundamental para tantos americanos e tão central para sua capacidade de participar plena e igualmente na sociedade”.
Quando perguntada pelo juiz Roberts por que 15 semanas não era aceitável quando essa é uma definição próxima da linha traçada pelas leis de outros países, Rikelman observou que, enquanto outros países como a Grã-Bretanha têm uma linha nominal de 12 ou 14 semanas, eles ainda permitem o aborto após esse período por uma ampla gama de razões sócio-econômicas e de saúde, e não colocam os mesmos obstáculos ao aborto (custo, falta de um sistema universal de saúde…) no caminho das mulheres nos estágios iniciais da gravidez. Rikelman explicou porque algumas mulheres, muitas vezes as que se encontram nas circunstâncias mais difíceis, ainda precisavam de abortos após 15 semanas. São “mulheres com problemas de saúde ou de condições de vida durante uma gravidez, mulheres pobres, que têm o dobro da probabilidade de atraso no acesso aos cuidados, mulheres jovens, ou aquelas que engravidaram usando contracepção e levam mais tempo para reconhecer a gravidez”.
A juíza Coney Barrett chocou a audiência ao perguntar por que as recentes “leis de porto seguro”, que permitem que uma mulher abandone seu recém-nascido em um hospital ou delegacia de polícia, não seriam suficientes para abordar a questão da maternidade forçada levantada em Roe e Casey. E foi mais longe ao comparar, sem maiores pruridos, a violação da autonomia corporal infligida pela gravidez forçada à violação de ser vacinada. Rikelman lembrou ao Tribunal as consequências físicas frequentemente graves da gravidez e do parto e observou que no Mississippi uma mulher tinha 75 vezes mais probabilidade de morrer no parto do que se submeter a um aborto. Prelogar advertiu então a Corte contra “ignorar as consequências de forçar uma mulher (…) a decidir se deve ou não dar uma criança para adoção. Essa é, por si só, uma decisão monumental para ela”.
Foi então que o Juiz Sam Alito levantou seu argumento sobre as prerrogativas do feto ao perguntar: “o feto tem interesse em ter uma vida, isso se altera entre um ponto e outro da viabilidade?”. A resposta de Rikelman foi: “A Corte teve que estabelecer uma linha entre a concepção e o nascimento, e logicamente olhou para a capacidade do feto de sobreviver separadamente como parâmetro legal, porque isso é objetivamente verificável e não exige que a Corte tenha que decidir sobre premissas filosóficas [sobre de quando começa a vida]”.
O Juiz Kavanaugh, por sua vez, tentou comparar a derrubada de Roe e Casey com a decisão da Corte no processo Brown vs. Conselho de Educação, quando a Corte descartou a abominável decisão de 1896 no processo Plessy vs. Ferguson sobre a segregação racial. E listou outros casos em que a Corte anulou seus precedentes, incluindo Lawrence e Obergefell. Prelogar observou que, em todos esses casos, a decisão posterior não havia restringido mas sim ampliado direitos: “Nesse caso, a Corte estaria fazendo justo o contrário. Estaria dizendo às mulheres dos EUA que (…) a capacidade de controlar seus corpos e a decisão talvez mais importante de suas vidas sobre trazer ou uma criança a este mundo não é parte de sua liberdade protegida”.
No final da audiência, a maioria dos comentaristas, incluindo eu mesma, sentimos que a Corte provavelmente vai derrubar Roe e Casey. Com mais de 12 proibições de aborto pendentes em vários estados, uma torrente de outras restrições adotadas em 2021, e mais de 22 leis “gatilho” prontas para serem aplicadas caso Roe e Casey fossem derrubados, o estado dos direitos reprodutivos nos EUA é catastrófico. A liderança democrática no Senado americano (ou seja, o Senador Chuck Schumer), poderia usar a regra de obstrução para defender o direito ao aborto (e outros direitos civis e políticos), como fizeram para os orçamentos e o teto da dívida. Um projeto de lei codificando Roe, a Lei de Proteção à Saúde da Mulher de 2021, foi aprovado pela Câmara dos Deputados e está pronto para ser votado. Que ainda não tenha sido, é incompreensível e indefensável.
O que me dá energia são as ousadas e brilhantes jovens ativistas negras que naquele mesmo dia proclamavam nossos direitos diante da Corte, a solidariedade e determinação que expressavam, o apoio material que muitos fundos vêm dando, há anos, às pessoas que querem interromper a gravidez, dado a erosão constante do acesso ao aborto nos EUA. Continuaremos lutando pela justiça reprodutiva e o direito ao aborto!
Se você estiver nos EUA, ligue para Chuck Schumer, seus outros senadores e para a Casa Branca e diga a eles para aprovarem o WHPA. E, por favor, faça uma doação aos fundos para o aborto, que estão ajudando as pessoas grávidas neste momento. Este link permitirá que você apoie 10 organizações de aborto no Texas e em outros estados com um clique: https://secure.actblue.com/donate/abortionfund.
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