Desde meados de 2021, as ofensivas antigênero parecem estar se descolando da dinâmica da epidemia para voltar a seu ritmo habitual mais diretamente vinculado à política. E, como veremos a seguir, entre agosto e outubro, foi intensa a movimentação política do neoconservadorismo e da direita. E é bastante notável que o significado e efeitos da COVID-19 não tenham tido maior visibilidade em muitos dos eventos listados a seguir, mesmo quando envolvendo países muito afetados pela pandemia. Esta seção também examina com maior detalhe embates mobilizados pelo feminismo “crítico do gênero” e faz um balanço sucinto de ofensivas específicas contra leis e políticas públicas.
Movimentações transnacionais
Em setembro o Papa Francisco visitou a Hungria e a Eslováquia e, neste último país, em conversa com um grupo de jesuítas, repetiu recomendações sobre o acolhimento pastoral dos homossexuais e, ao mesmo tempo, reiterou suas críticas ao “gênero” que, segundo ele, é um conceito abstrato que “exerce uma fascinação diabólica porque não se encarna”. Essa fala tinha endereço certo: o debate parlamentar em curso na Itália sobre a lei Zan de crimes de ódio e contra a discriminação. Como observou Massimo Prearo em entrevista exclusiva, a lei seria paralisada um mês mais tarde, inclusive por efeito de um argumento jurídico apresentado pelo Vaticano. Em seguida à passagem do papa, realizou-se, em Budapeste, a IV Cúpula Demográfica promovida pelo governo húngaro, desde 2018, para discutir o declínio da fecundidade na Europa e o “problema da migração”.
Em outubro, Marine Le Pen também esteve em Budapeste para discutir com o primeiro-ministro Orbán as “imposições” da União Europeia que, segundo ambos, infringem a “identidade constitucional de seus países” e, muito possivelmente, a Convenção de Istanbul estava na agenda. Uma outra conexão importante entre os dois países é o acordo de colaboração firmado pelo Collegium Intermarium – universidade criada pela organização ultracatólica polonesa Ordo Iuris – com o Institut de Sciences Sociales, Économiques et Politiques (ISSEP), fundado por Marion Marechal, sobrinha de Le Pen. Na Polônia, o Collegium comemorou seu primeiro aniversário com uma conferência sobre o tema do “cancelamento”. Não menos importante, um pouco antes da Cúpula do G-20, Vladimir Putin fez um longo discurso sobre as condições geopolíticas e a economia global, no Valdai Club Discussion, no qual vários parágrafos foram dedicados ao “problema do gênero”, especialmente contra gênero na educação e identidade de gênero na infância e afirmando que a “ideologia de gênero é um crime contra a humanidade”.
A movimentação também foi intensa na América Latina. Desde o começo de 2021 representantes do VOX, o partido espanhol, têm visitado a região para colher adesões à Carta Madrid. Em agosto, seu líder Santiago Abascal reuniu-se com membros do PAN e do PRI no México e os eventos provocaram fortes reações e polêmicas. Esse episódio de grande visibilidade estimulou a imprensa a mapear com mais precisão os contornos da plataforma ibero-americana de extrema direita que vai se materializando na região.
O Brasil foi outro palco de hiperatividade. No final de setembro, Bolsonaro, que em julho havia recebido uma líder da AfD, conversou (fora da agenda oficial) com dois ativistas antivacina alemães. Segundo a DW, a dupla, que também esteve com a Ministra Damares Alves, está sob vigilância do Estado alemão por propagar teorias de conspiração. Antes disso, em preparação para as marchas do 7 de setembro, o clube ultraconservador americano CPAC voltou a se reunir no país contando com a participação de dezenas de autoridades governamentais, ativistas brasileiras/os e atrizes/atores de fora do país (saiba mais aqui). No evento, que teve a liberdade como mote principal, o feminismo, o aborto e a identidade de gênero na infância foram alvos de ataques virulentos.
Em outubro, o Financial Times noticiou que a Digital Acquisition Corporation, empresa do deputado bolsonarista Luis Felipe de Orleans e Bragança, está alavancando financiamento para a plataforma digital que está sendo criada por Donald Trump. E, logo em seguida, durante o G-20 – quando Bolsonaro ficou isolado de seus pares (saiba mais aqui), cometeu gafes e foi conivente com agressões contra jornalistas – o Itamaraty anunciou que ele fará uma visita oficial à Rússia ainda em novembro de 2021.
No mesmo período, intensificou-se a diplomacia paralela que vem se desdobrando desde o começo de 2021, quando o governo Bolsonaro se tornou o novo líder das pautas conservadoras lançadas pelo governo Trump. Assim como acontece na Hungria, onde essa linha da política externa é conduzida por Katlin Novak (Ministra da Família), no Brasil é Angela Gandra, secretária Nacional da Família, quem lidera essas iniciativas. No começo de setembro, embora estivesse de férias, Gandra passou por Portugal e depois, na Espanha, participou de uma reunião de líderes políticos católicos e se encontrou com um juiz conservador da Corte Constitucional. Em seguida, na Ucrânia esteve no famoso Prayer’s Breakfast reunindo uma ampla gama de atores de direita e antidireitos LGBTTIA+ (leia o artigo de Jamil Chade que cobre todo esse périplo). Ainda em setembro, Gandra participou virtualmente do webinário da Political Network of Values (PNV) para avaliar uma década de políticas familiares na Hungria.
Em outubro, Gandra e Damares participaram como líderes do chamado Consenso de Genebra em cerimônia organizada pelo governo da Guatemala para marcar a adesão do país ao documento. Também estiveram em Genebra para uma série de atividades diplomáticas: reunião com países da Comunidade de Língua Portuguesa, uma audiência com o diretor da OMS, visita ao ACNUR, reunião com o chanceler húngaro e um painel coordenado pela OIT com participação dos governos da Hungria e Polônia para discutir a questão da conciliação entre trabalho e família. E, em reunião que aconteceu na Missão Permanente do Brasil para comemorar um ano de lançamento do Consenso, foi anunciada a adesão da Federação Russa ao grupo.