Com muito prazer, republicamos o ensaio “Gênero em tradução: além do monolinguismo”, de Judith Butler, em excelente tradução de Fernanda Miguens e Carla Rodrigues. O texto foi originalmente publicado em dezembro de 2021 no Dossiê do II Encontro de Filosofia e Gênero, volume 39 2/2021 dos Cadernos de Ética e Filosofia Política. Uma versão modificada do texto foi apresentada na palestra inaugural do Congresso Mundial de Filosofia sobre Simone de Beauvoir, realizado em agosto de 2018 em Pequim, e versões anteriores foram debatidas nos Institutos de Gênero da Universidade de Cambridge e no Departamento de Gênero da London School of Economics (LSE) em 2016.
O ensaio nomeia, sem temor, problemas do conceito de gênero que não são tão amplamente debatidos como deveriam ser. Revisita sua origem no paradigma normalizador da sexologia americana dos anos 1950, ou seja, no ambiente das cruéis intervenções feitas por John Money em corpos que não cabiam nos moldes estabelecidos do gênero. Critica, com acuidade, os traços imperiais da língua em que o conceito está inscrito e examina situações complexas de intraduzibilidade do seu significado.
O gênero já estava sob ataque há bastante tempo quando as primeiras versões do texto foram debatidas. Em 2016, quando a primeira versão do ensaio foi apresentada nos seminários do Reino Unido, o recurso ao espantalho da “ideologia de gênero” acabaria por impactar, negativamente, o referendum do Acordo de Paz na Colômbia. Um ano depois, a efígie de Butler como bruxa foi queimada em praça pública de São Paulo, um evento grotesco que antecipou o recrudescimento e amplificação das ofensivas antigênero que temos assistido nos últimos cinco anos no Brasil e em boa parte do mundo.
Em condições tão conflagradas somos, facilmente, tentadas a defender o conceito com unhas e dentes, fazendo dele um axioma. Em contraste, as elaborações críticas de Butler nos lembram, com fineza e firmeza, que o gênero não é dogma, mas sim um conceito aberto à crítica. Essa abertura é, exatamente, o que diferencia o campo dos estudos e da política do gênero da ortodoxia e estreiteza das forças que converteram o gênero numa fantasmagoria e alvo político. O ensaio também é revigorante para os estudos e ativismos feministas e queer ao reiterar que mesmo em contextos inóspitos é possível desestabilizar as normas recorrendo aos “vários vocabulários que tornam a vida mais vivível”. E, tece argumentos para contestar, com a serenidade necessária, as espirais de demonização que tentam fazer do gênero uma abjeção.
O ensaio chega, portanto, em boa hora para nos lembrar que disputas e tensões são inerentes ao percurso do pensamento crítico e das contestações políticas cujos resultados não estão nunca definidos de antemão.
Acesse aqui o ensaio “Gênero em tradução: além do monolinguismo”.