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Um ano de COVID-19: retrospectiva da política sexual em tempos de pandemia

Primeiras palavras

Em 2020, de modo a ajustar nossas lentes às condições da COVID-19, suspendemos nossos anúncios mensais regulares e iniciamos uma série de três Edições Especiais buscando situar a política sexual no cenário da pandemia. Nesse novo formato editorial, o material compilado e selecionado foi organizado em relação às dimensões econômicas da COVID-19 e as respostas políticas dos estados ante a crise. Também identificamos e republicamos análises relevantes sobre a pandemia como uma crise biopolítica e, sobretudo, examinamos seus efeitos sobre a política sexual.

Em março-abril de 2021, quando se completa o primeiro ano de eclosão da pandemia no Brasil, pensamos que poderia ser produtivo fazer um balanço desse ano que, de fato, não acabou, selecionando e combinando conteúdos das edições anteriores de modo a oferecer um panorama desse primeiro ciclo da crise da COVID-19 em relação a esses vários ângulos ou dimensões.

DESTAQUES

Autores convidados – Nas três Edições Especiais de 2020, tivemos a contribuição de autor@s convidad@s que escreveram artigos especiais para o SPW analisando contextos e episódios emblemáticos do contexto da pandemia, mas também questões candentes sobre política sexual e gênero.

Na primeira edição, Amaral Arévalo e Humberto Meza escreveram sobre como os Estados responderam à pandemia em El Salvador e Nicarágua, no primeiro caso fazendo recurso à repressão e ao arbítrio e, no segundo, com base numa lógica negacionista que alinhou o presidente Ortega a Trump e Bolsonaro.

Na segunda edição, Debjyoti Gosh traçou paralelos entre as políticas de lei seca implementadas durante a pandemia na África do Sul e na Índia. Lorena Moraes escreveu sobre os problemas registrados em uma pesquisa oficial de testagem da COVID-19 no Brasil, inclusive de assédio e violência contra as equipes de profissionais em campo. Bárbara Sepúlveda e Lieta Vivaldi Macho relataram sobre a mobilização feminista no Chile contra a nomeação da sobrinha neta de Pinochet para Ministra da Mulher. Também traduzimos um texto de David Paternotte sobre os limites do enquadramento “backlash” para analisar as políticas antigênero.

Na terceira edição, Massimo Prearo examinou criticamente a recepção calorosa à declaração do Papa Francisco feita num documentário em favor de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. E, num mini anúncio mensal intermediário que publicamos em setembro, traduzimos um artigo de Andrea Dominguez sobre a nova onda de pânico moral deflagrada em relação à pedofilia na América Latina nos meses de junho e julho. E, esse balanço inclui o artigo de Bárbara Mendes e Pedro Pedro Barbabela  sobre as candidaturas de pessoas trans nas eleições municipais brasileiras de 2020.

As rotas letais da pandemia

A primeira onda da COVID-19 começou na China e se espraiou pelas chamadas economias centrais, antes de se alastrar por outras regiões. Seus efeitos se fizeram especialmente deletérios nos países do sul global,  especialmente na América Latina, que é hoje epicentro da pandemia, sendo o Brasil o exemplo mais drástico dos impactos decorrentes da má condução das respostas estatais. Contudo, quando essa edição estava sendo finalizada, uma matéria do New York Times (aqui em inglês) apontava para a possibilidade de que a Índia esteja trilhando uma rota parecida.

Entre junho e julho, conforme as medidas de isolamento se flexibilizaram na Europa, começou-se a falar de uma segunda onda na região. Em dezembro de 2020, passado um ano do primeiro registro do vírus SARS-CoV-2 em Wuhan, o mundo contava com mais de 74 milhões de casos e 1,6 milhão de mortos. A África foi o único continente em que os impactos da COVID-19 se mantiveram em níveis reduzidos (exceto na África do Sul), padrão que capturou a atenção de cientistas (veja aqui). Em março de 2021, quando alcançamos a marca de mais de 125 milhões de casos e 2,7 milhões de mortos globalmente, já se fala de uma terceira onda ou mesmo da possibilidade da COVID-19 se tornar sazonal, como outras epidemias gripais.

Ao longo do ano, um tema persistente foi a vulnerabilidade diferencial de pessoas e grupos quanto à exposição e letalidade do vírus, evidenciada pelo maior número de infecções tanto entre pessoas negras e latinos negros nas Américas quanto entre moradores de favelas em outras regiões. O padrão diferencial da epidemia também atinge especialmente as populações indígenas como, por exemplo, na região Amazônica brasileira, mas também em comunidades dos povos originários da América do Norte, como aconteceu na reserva Navajo, no sudoeste dos Estados Unidos. Essa tendência remete à dolorosa memória da exposição contínua de povos ameríndios às doenças letais ao longo da história colonial e pós-colonial. Para saber do estado atual da pandemia, consulte aqui.

A COVID-19 e economia

A escala e a velocidade da crise da COVID-19 estão diretamente vinculadas às condições do capitalismo no século XXI, ou seja, aos efeitos de políticas neoliberais das últimas quatro décadas que corroeram direitos trabalhistas e outras redes de proteção social e deliberadamente promoveram formas precárias de trabalho e desfinanciamento ou privatização dos sistemas de saúde. Não sem razão, como observou David Harvey, foram os países menos neoliberais que responderam melhor à crise.

Em meados de 2020, um prognóstico da OCDE previa que nas 47 maiores economia mundiais a queda do PIB seria maior que 8% no ano. Outras análises registraram um flagrante aumento das desigualdades e redução da qualidade de vida em regiões vulneráveis, nos países mais pobres e entre grupos sociais vivendo em estado de alta precariedade. A situação de imigrantes (em especial aquel@s sem documentação) se tornou particularmente dramática em termos de sobrevivência econômica, exposição ao vírus, mas também falta de acesso aos serviços de saúde.

Enquanto setores inteiros da economia foram destruídos pelo lockdown e pela quarentena, empresas de call center, plataformas digitais de venda e comércio e serviços de delivery continuaram a todo vapor ou mesmo se expandiram durante a crise. Nestes setores, os empregos não foram perdidos, mas @s profissionais sofreram os riscos do trabalho sem equipamentos de proteção adequada, em regimes de jornada excessiva e sofrendo os riscos da super exposição à COVID-19. No LatFem (leia em espanhol), a pesquisadora feminista argentina Flora Partenio relatou sobre como trabalhador@s de plataformas digitais estão se mobilizando politicamente a despeito das enormes restrições na América Latina.

Além disso, em variados contextos, a crise do novo coronavírus tem servido como cortina de fumaça para ocultar padrões clássicos de exploração laboral e destruição ambiental. No Equador, por exemplo, um grande derramamento de petróleo – que coincidiu com o aumento exponencial do número de mortos da pandemia em Guayaquil – não teve a devida atenção midiática que teria tido em outro momento.

Neste cenário catastrófico e num percentual muito elevado de países, as mulheres constituem a maioria da força de trabalho sujeita a regimes precários de trabalho e, portanto, foram as mais drasticamente afetadas pela COVID-19. No Brasil, por exemplo, elas constituem 82% do mercado informal de trabalho, estando concentradas no trabalho doméstico, a chamada economia do cuidado. Não sem razão, a crise econômica provocada pela pandemia tem sido nomeada de “shecession” (“a recessão delas”, em tradução livre), pois, até 2030, poderá levar 453 milhões de pessoas de volta à pobreza até 2030, das quais 279 milhões serão mulheres (veja uma compilação).

Por outro lado, esse drástico impacto diferencial de gênero deu maior visibilidade e reconhecimento à centralidade e ao significado da economia do cuidado, dominantemente gerida por mulheres, no capitalismo. Essa dimensão teve grande visibilidade no começo da epidemia e foi objeto de inúmeros artigos e debatesHelen Lewis logo no início da pandemia já sublinhava que a pandemia estava destacando, a um só tempo, a persistente divisão sexual do trabalho e a centralidade do cuidado na própria resposta à pandemia. As mulheres não só estão na vanguarda da resposta de saúde, mas são em grande parte responsáveis pela sustentação da vida e das pessoas em situação de quarentena. Não é excessivo dizer que, por efeitos da pandemia, a perspectiva feminista da economia do cuidado adentrou as correntes principais do debate sobre políticas públicas e, em alguns países, como é o caso da Argentina, essa dimensão é hoje um componente da política econômica nacional (veja uma compilação).

Num balanço sobre COVID-19 e política sexual, outro aspecto a se considerar é que, por efeito do não-reconhecimento e criminalização da prestação de serviços sexuais, os efeitos da pandemia foram dramáticos para trabalhador@s sexuais ao redor do mundo, como informam matérias e análises sobre o Brasil, Colômbia, Argentina, Bolívia, México, Tailândia, Bangladesh, EUA, França e Espanha (veja compilação aqui e aqui). Diante da gravidade da situação, a Rede Global de Projetos de Trabalhadoras Sexuais (NSWP) e a UNAIDS emitiram um chamado para que governos garantam o acesso de trabalhador@s sexuais aos programas nacionais de proteção social, prevenindo que sejam excluídas das medidas emergenciais de proteção a trabalhadores, especialmente nos países onde o trabalho sexual é criminalizado.

Entretanto, várias notícias mostram que o estigma moral e as exigências burocráticas injustificáveis têm impedido ess@s profissionais de acessar o auxílio emergencial contra a COVID-19 no Canadá, França, Tailândia e Japão (leia em inglês). Em contraste, na Nova Zelândia, um dos poucos países que derrotaram a COVID-19,  onde o trabalho sexual é plenamente descriminalizado, prostitutas puderam acessar facilmente as medidas de alívio emergencial. Também é interessante observar que, ao longo de 2020, vários veículos da mídia global passaram a abordar a prostituição como trabalho, abandonando o tratamento moral que tende a dominar as matérias jornalísticas sobre esse tema.

Em março de 2021, no Brasil, o atual epicentro da crise, trabalhadoras sexuais de Belo Horizonte foram às ruas para protestar por não terem sido incluídas na lista de prioridades de vacinação definidas por categorias ocupacionais.

A economia política das vacinas

Um capítulo incontornável da relação entre a pandemia e a economia diz respeito às complexas dinâmicas geopolíticas e geoeconômicas relacionadas às vacinas contra a COVID-19, objeto de todas as edições especiais do SPW. Na primeira edição, em abril de 2020, falamos da competição frenética entre empresas farmacêuticas pela descoberta da primeira vacina que, em alguns casos, implicou na falsificação de dados. Ao final do ano, registramos a criação da plataforma COVAX, estabelecida pela OMS para facilitar o acesso de países mais pobres à imunização e sublinhamos os enormes desafios para produção, transporte e logística da vacinação. Em março de 2021, os esforços da COVAX se desdobrariam na proposta mais robusta de adoção de um tratado internacional para garantir respostas sanitárias rápidas em contextos pandêmicos.

Por outro lado, desde 2020 já se registravam outros obstáculos de acesso à vacina decorrente da lógica da soberania, como o chamado “nacionalismos da vacina” e,  sobretudo, da primazia do lucro e da acumulação que continuam prevalecendo na cadeia de produção farmacêutica e que pode ser traduzida na resistência dos países ricos em apoiar a flexibilização de regras de propriedade intelectual para vacinas e outros produtos necessários para a resposta à COVID-19 – como a proposta na OMC pela Índia e África do Sul. No começo de 2021, quando terminávamos esse balanço anual, surgiu uma nova tendência deletéria no Brasil: a privatização do acesso às vacinas. Grupos empresariais pressionaram por leis que permitem o setor privado comprar vacinas para seus funcionários sem nenhuma contrapartida para o setor público e ainda com abatimento do imposto de renda. Como analisa Isabela Kalil, se aprovadas, essas leis vão resultar num vergonhoso “apartheid sanitário” no país que é hoje epicentro da epidemia e onde sua contenção está completamente fora de controle.

A política na COVID-19

Desdemocratização, negacionismo, resistência

Desde o início da pandemia, assistiu-se no mundo à disseminação de uma semântica de guerra  que potencialmente justificava a adoção de antigas e novas formas de vigilância e violência como resposta, ou seja, a instalação de um clima de exceção. A pandemia acirrou a tendência de erosão democrática em curso em muitos contextos há pelo menos duas décadas. Ao longo de 2020, assistimos à multiplicação de intervenções estatais coercitivas, restrições à imprensa, à liberdade de expressão e associação. Em 80 países, onde vivem 51% da população mundial, registrou-se o menor índice de liberdade de expressão em 20 anos. Destacam-se nesse grupo Rússia, Índia, Oriente Médio. Mas, como observou com perspicácia Masha Geschen, os EUA também devem ser incluídos nesta lista porque a gestão de informação sobre a COVID-19 da administração Trump foi muito parecida com os métodos desinformativos usados pelo governo soviético durante o desastre de Chernobyl. Além disso, em junho de 2020, na contenção dos protestos mobilizados pelo Black Lives Matter em Portland, o Departamento de Segurança Nacional se comportou como uma polícia política (ver aqui e aqui).

Ásia

Na China, epicentro original da pandemia, segundo as pesquisadoras feministas chinesas Cai Yiping e Ai Yu, a COVID-19 contribuiu para o emprego de novas e sofisticadas formas de vigilância digital estatal, levando a padrões ainda mais elevados de coerção, repressão e censura. Investigação da ProPublica informou que, de fato – como havia sido denunciado por vários atores e instituições, sistemas de controle da internet estabelecidos em 2014 foram usados desde o primeiro momento para censurar a circulação de informação sobre a gravidade da enfermidade. A gestão coercitiva da vida social na China durante a epidemia parece não ter paralelo no mundo. Assim, não surpreende que, no segundo semestre de 2020, tenham sido levadas ao extremo as pressões sobre a política de Hong Kong, culminando em novembro com a suspensão do mandato de 4 parlamentares pró-democracia, o que levou os demais membros do bloco a renunciar, fato interpretado como fim da autonomia política garantida ao território em 1999.

Na Índia, a pandemia também implicou na redução dos espaços democráticos ameaçados desde antes, como ficou evidente na reação do governo Modi às manifestações contrárias à Lei de Cidadania. A pandemia suscitou a estigmatização e perseguição de muçulmanos e agravou o arbítrio contra vozes da sociedade civil indiana, mas também de organizações internacionais. Em setembro, a Anistia Internacional suspendeu suas atividades no país depois ter a sua conta bancária congelada. Os controles estabelecidos como resposta à COVID-19 também agravaram as condições na Cachemira e Assam, zonas sujeitas desde muito tempo a estados de exceção.

Atos autoritárias justificados pela pandemia também foram registrados em outros países asiáticos, como as Filipinas, onde o presidente Duterte autorizou as forças de segurança a atirar nas pessoas que desobedecessem as regras de lockdown. No Sri Lanka, onde desde os meados de 2020 se registrou um franco endurecimento do regime político, e também em Myanmar, onde em março de 2021 aconteceu um novo e sangrento golpe militar. No Vietnã, a censura estatal comprometeu de maneira grosseira os impactos positivos de saúde pública das políticas de enfrentamento à pandemia no país.

África Subsaariana

Muito embora os impactos da pandemia não tenham sido tão extensos e dramáticos na região, foram registrados padrões de coerção e arbítrio no Burundi, Quênia, Uganda (em especial contra pessoas LGBTTI) e Zimbábue, à medida que a COVID-19 se espalhava (veja compilação). Na África do Sul – país mais atingido da região pela COVID-19 – as condições democráticas foram preservadas e uma política de saúde pública não-coercitiva foi adotada. No entanto, episódios de despejo e violência policial extrema contra trabalhadores e imigrantes se multiplicaram.

MENA

No Norte da África e no Oriente Médio, a intensificação do estado de coerção e controle político também foi flagrante. Na Argélia, por exemplo, o controle estatal da COVID-19 paralisou a insurgência em curso desde o início de 2019. No Egito, pela primeira vez desde que o General Sisi chegou ao poder em 2013, ocorreram amplos protestos ao redor do país, mas que foram violentamente reprimidos.

América Latina

Embora com menos intensidade que em outras regiões, medidas autoritárias e arbitrárias também foram registradas na América Latina. O exemplo mais flagrante foi o de El Salvador, que foi analisado por Amaral Arévalo, mas também em outros países da América Central (com exceção da Costa Rica), como Honduras e Guatemala, Bolívia, Equador, Peru, Venezuela e Panamá, onde a população em geral ou grupos específicos foram sujeitos à violência estatal justificada como combate à pandemia. 

Europa e Turquia

O acirramento do arbítrio, coerção e censura também se verificou no Leste Europeu, em particular Hungria, Polônia, Rússia e Turquia, países cujos regimes são conhecidos por seus traços autoritários com efeitos especialmente deletérios para gênero e sexualidade.  Um comentário instigante sobre como o estado bósnio reagiu à COVID-19 sugere, contudo, que em vários contextos, os Estados responderam à pandemia usando a polícia e métodos autoritários como forma de mostrar que estavam fazendo alguma coisa e isso é assim porque, de fato, não têm a “capacidade efetiva para cuidar dos seus cidadãos”.

Exceções

Contra esse sombrio pano de fundo, é fundamental mencionar os países que escapam dessa descrição, contextos em que respostas bem sucedidas à epidemia não implicaram em efeitos desdemocratizantes. O exemplo mais citado desde o ano passado é a Nova Zelândia, mas deve-se mencionar também a  Alemanha, Barbados, Coréia do SulDinamarcaIslândia, Noruega,  Portugal e Taiwan.

Negacionismo: a outra face da resposta a COVID-19

Entre março e julho de 2020, o debate intelectual sobre a pandemia, especialmente no contexto europeu, mas não exclusivamente, se centrou sobre temas como estado de exceção, arbítrio e securitização (veja a seção subsequente COVID-19: implicações biopolíticas). Contudo, mesmo quando  a pandemia tenha, de fato, ampliado o autoritarismo e o arbítrio estatal em muitos contextos, essa tendência coexistiu ao longo de 2020 com uma outra vertente de resposta estatal,  pautada pela minimização da escala da pandemia e pelo negacionismo das medidas de prevenção, como lockdown, isolamento social, máscaras e até mesmo da vacina. O negacionismo continua sendo uma opção deliberada de descontrole sanitário em nome da preservação da economia e da liberdade individual (levada a um extremo quase místico), mas que também deve ser intepretada como estratégia dos dirigentes qua assim agiram para preservar o poder a qualquer custo.

Essas políticas foram muito significativamente adotadas por líderes de regimes políticos ideologicamente díspares. À direita do espectro político, essa lista incluiu os governos de Trump nos EUA, Boris Johnson no Reino Unido, Bolsonaro no Brasil, Lukashenko na Bielorússia (leia mais aqui e aqui) e a ditadura do Turcomenistão (veja compilação). Mas nela também devem ser contabilizados o governo populista de esquerda de López Obrador no México, o regime autoritário (originalmente de esquerda) de Ortega na Nicarágua e as diretrizes laissez-faire adotadas inicialmente pelo governo social-democrata sueco, que seriam inclusive citadas por gestores do governo Bolsonaro no começo de 2020 como modelos a serem seguidos. Tanto Bolsonaro quanto López Obrador minimizaram os feitos da COVID-19 alegando que “seus povos” podiam resistir biologicamente ao vírus. Segundo Bolsonaro, o “seu povo” é um que “nada em esgotos e não fica doente” e, segundo AMLO, porque “seus ancestrais sobreviveram a outras epidemias” no México.

Em abril, Boris Jonhson desenvolveu um quadro grave de infecção pelo SARS-CoV-2 e, por efeito dessa experiência, infletiu as diretrizes de sua política impondo restrições e medidas preventivas que foram relaxadas entre julho e dezembro, mas que se tornaram muito rígidas novamente após o aparecimento da variante inglesa do vírus no segundo semestre. Por efeito da alta letalidade por COVID-19 no país, a Suécia também alteraria as diretrizes de sua resposta. No México, a capacidade técnica sanitária parecia ter contido os impactos do negacionismo presidencial de algum modo.

Mas, nos demais países, as políticas negacionistas seguiram seu curso com efeitos desastrosos, especialmente nos EUA e no Brasil. Nos EUA, essa rota catastrófica foi interrompida pela derrota eleitoral de Trump. No Brasil, no entanto, onde houve 4 ministros da saúde desde abril de 2020, ela continua em curso nos atos de fala presidenciais, mas também em medidas deliberadas do governo federal, como mostrou a 10ª edição do Boletim Direitos na Pandemia, elaborado pela Conectas Direitos Humanos e pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA/FSP/USP). O resultado, como se sabe, é uma verdadeira hecatombe: surgimento de novas variantes mais infecciosas e talvez mais letais,  350 mil mortos, o sistema de saúde em colapso e risco de um colapso funerário com implicações gravíssimas de contaminação de solo e água por outros patógenos. O Brasil se tornou o mais catastrófico cenário da pandemia de todo o planeta (veja uma compilação).

Na superfície, o argumento negacionista parece se opor à racionalidade da vigilância e do controle que potencialmente desagua em estados de exceção pandêmicos. Mas, como analisou Sonia Corrêa numa reflexão sobre COVID 19 e biopolítica, ambas lógicas se organizam ao redor de um núcleo comum: a regulação estatal dos humanos como seres biológicos. No cerne da lógica negacionista, está a figura da imunidade de rebanho, a qual supõe que, para salvar a economia, a pandemia pode seguir seu curso natural, pois ainda que muitas pessoas morram, os mais fortes sobreviverão. Numa entrevista para o The Nation, Judith Butler corretamente afirmou que essa é uma estratégia de negligência deliberada de viés neo-Darwinista, ancorada na ideologia novecentista de “sobrevivência dos mais fortes”. Neste mesmo registro, numa afiada crítica da conduta de Bolsonaro durante a COVID-19, o médico brasileiro Arnaldo Lichenstein sublinhou, com razão, que, em condições pandêmicas, o neo-Darwinismo, de fato, significa eugenia.

Contestações paradoxais

Se, por um lado, ao longo de 2020 assistimos ao recrudescimento da arbitrariedade e do autoritarismo, o ano também foi marcado por protestos com perfis muito díspares.

No Sul global, essas mobilizações envolveram principalmente trabalhadores, migrantes e pessoas pobres protestando contra os efeitos econômicos e espaciais impostos pelos lockdowns e, em alguns casos, contra formas severas de coerção estatal e violência. Na China, pesquisadores e profissionais de saúde contestaram a censura estatal em relação a dados da COVID-19 e/ou exigiram equipamentos de proteção e melhores condições de trabalho. Na Índia, irrompeu uma greve de mulheres profissionais da saúde. Nos Estados Unidos, depois do assassinato de George Floyd em 25 de maio, irromperam as massivas manifestações do Black Lives Matter que, embora não diretamente associadas à COVID-19, se tornariam um dos fatos políticos mais importantes do cenário americano e global em 2020 (leia mais).

Porém, um pouco mais tarde, nas Américas e sobretudo na Europa, eclodiram protestos contra as gestões da pandemia pautadas por quarentenas, lockdowns, distanciamento social e uso de máscara. Nos Estados Unidos e no Brasil, as ruas foram tomadas por apoiadores do negacionismo neo-Darwinista de Trump e Bolsonaro. Mobilizações semelhantes e usando o mesmo repertório ocorreram, ainda que com menos impacto, no Canadá, México, Chile e Argentina (veja compilação em português e inglês).

Nos EUA, a partir de julho de 2020, essas manifestações se desdobraram nos protestos atiçados pelo movimento QAnon e se sobrepuseram à dinâmica eleitoral de maneira cada vez mais intensa, culminando com o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 (veja uma compilação). No Brasil, o cenário também tem sido grotesco e politicamente perigoso. Entre maio e junho de 2020, os protestos se deram num clima de golpismo político, com o presidente incentivando e participando de manifestações que clamaram por intervenção militar. Mesmo com altos e baixos, elas não arrefeceram. Nas condições sanitárias catastróficas do começo de 2021, as bases políticas do bolsonarismo continuam sendo negacionistas, avessas às medidas de prevenção e defensoras do chamado “tratamento precoce” – cloroquina e ivermectina – cuja ineficácia e riscos foram reiteradamente comprovados.

Protestos contra lockdown e outras medidas de prevenção e controle –  que as interpretam como expressão de “estado de exceção” e agregam grupos situados em polos opostos do espectro político –  também se tornaram frequentes na Europa a partir do verão de 2020 e continuaram se replicando no outono, quando a segunda onda pandêmica levou vários Estados a adotarem novas medidas duras de contenção.

É preciso dizer que, em quase todos esses protestos, forças antiaborto e antigênero estavam presentes e, em alguns deles, foram as suas principais lideranças. Assim como se deu nas campanhas antigênero da última década, o repertório dessas manifestações replicam e invertem os sentidos de protestos dos feminismos, movimentos LGBT+ e da esquerda. Isso fica claro no slogan meu corpo, minhas regras” usado por manifestantes contra o uso de máscaras nos EUA. O colaborador do SPW, Alrik Schubotz, ao analisar essa cacofonia nos protestos em Berlim, observou que essas contradições desafiam tanto os liberais quanto a esquerda a esclarecer com maior coragem e precisão seus parâmetros éticos e epistemológicos em relação ao significado e efeitos da COVID-19.

COVID-19: Implicações biopolíticas

Desde um primeiro momento, a COVID-19 e seus múltiplos efeitos foram inevitavelmente analisados como manifestações de uma crise biopolítica. Todas as edições especiais de 2020 do SPW dedicaram uma seção a essa chave de leitura. No que diz respeito a essa dimensão e seus registros, ao final do ano observamos que a pandemia parece ter produzido um deslocamento da leitura biopolítica da crise do universo acadêmico, onde ela vicejava de maneira intensa, para veículos midíaticos das correntes principais, ou mainstream, do debate público. Uma ilustração flagrante desse deslizamento foi o artigo “Meet the philosopher who is trying to explain the pandemic”, de Christopher Caldwell, publicado pelo New York Times em agosto de 2020, que busca traduzir para a audiência norte-americana, as controversas posições do filósofo Giorgio Agamben sobre as respostas do estado italiano à COVID-19 num sentido amplo. Ainda mais significativo, nos parece, foi o comentário “COVID-19 – Uma crise de poder, assinado por Richard Horton, editor do The Lancet, publicado pela revista em outubro. Nele, Horton afirma que:

Continuamos a viver numa era da governamentalidade, na qual as ações individuais são moldadas por um poder que ancora sua legitimidade da verdade científica. A saúde pública desenvolveu-se como parte dessa mesma trama social e política. Os governos viram a saúde das populações como um fundamento para proteger e aumentar as forças.

Esse reconhecimento não é, exatamente, fato trivial numa revista que é, desde muito, a principal fonte do pensamento biomédico e da saúde publica. E, o fato de essa lente de leitura ter sido transportada para outros espaços é muito bem-vinda, pois, de fato, a COVID-19 atualizou e, em certos casos, radicalizou dispositivos governamentais, tecnológicos e científicos de gestão em larga escala da população para disciplina e vigilância dos corpos individuais e do corpo social (le corps social). Como veremos a seguir, ela também reativou a lógica clássica de conversão de pessoas e grupos sociais, especialmente os mais vulneráveis, em “vetores nefastos” de infecção que devem ser controlados ou mesmo eliminados.

Efeitos biopolíticos

No início da pandemia, Richard Parker, presidente da ABIA, ao escrever sobre a falta de testes para a COVID-19 no Brasil, observou que, assim como aconteceu durante a epidemia de HIV/AIDS, a resposta à COVID-19 poderia facilmente impulsionar discursos e práticas para culpar, estigmatizar e produzir violência contra “outros”.

E, de fato, isso já estava acontecendo. Na Índia, profissionais de saúde e grupos vulneráveis, como dalits, pessoas com deficiência, mulheres e, sobretudo, a população muçulmana muito rapidamente se tornaram alvos de ataque. Na China, trabalhadoras de saúde que atuavam na linha de frente da contenção tiveram suas cabeças raspadas compulsoriamente. Em inúmeros países, as pessoas que não cumpriram com as regras de quarentena foram sujeitas à coerção e violência do Estado, incluindo a violência letal, como nas Filipinas.

Outro traço marcadamente biopolítico da pandemia é a vulnerabilidade diferencial. Como assinalou Judith Butler, se, de um lado, o vírus explicitou nossa precariedade compartilhada, de outro, seus riscos e efeitos – sejam eles patológicos, sociais ou políticos –  têm sido radicalmente diferenciados quando considerados idade, status de saúde, raça, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, etnia, casta, classe e lugar de moradia. Essa vulnerabilidade diferenciada é tragicamente ilustrada pelo fato que a primeira mulher a morrer de COVID-19 no estado do Rio de Janeiro foi uma trabalhadora doméstica de 63 anos, portanto grupo de risco, exposta ao vírus pela patroa de quem cuidou e que havia sido infectada numa viagem à Itália.

Não menos importante, a COVID-19 também implicou na adoção de velhas e novas lógicas de espacialização ou segregação espacial. A começar pelo confinamento doméstico compulsório das quarentenas, do qual resultou um flagrante aumento da violência de gênero, incluindo violência sexual, especialmente contra crianças e adolescentes, e assassinatos (veja compilação). Por volta de julho, a grande imprensa já nomeava o epifenômeno da violência de gênero como a nova epidemia invisível. Contudo, outras situações devem ser consideradas ao analisar os efeitos do confinamento e da espacialização, como o mal estar e a violência experimentados por pessoas LGBT+, forçadas pela pandemia a retornar ao espaço familiar. E também, a situação ainda mais drástica das pessoas encarceradas.

Finalmente, em alguns governos latino-americanos, como do Panamá, Peru e da cidade de Bogotá, critérios de sexo/gênero foram adotados para definir quem poderia sair de casa a cada dia da semana para evitar aglomerações. No artigo que escreveu sobre essa política, Sonia Corrêa observa que a regra de segregação baseada em sexo/gênero reifica o determinismo biológico do dimorfismo sexual colocando, de imediato, as pessoas não-binárias em situação de maior risco e vulnerabilidade ante a coerção do Estado e contribui para cristalizar a dita “ordem natural” de sexo/gênero, reativando camadas profundas onde se assentam a divisão sexual do trabalho e as desigualdades entre homens e mulheres.

Debates intelectuais

Desde o início, os traços biopolíticos da pandemia se tornaram objeto de um intenso debate intelectual em grande medida desatado pelas já mencionadas posições críticas de Giorgio Agamben em relação à resposta estatal italiana. Num breve artigo, publicado em março de 2020, o filósofo interpretou a pandemia como uma “invenção”  destinada meramente a justificar a “excepcionalidade de medidas estatais”, que provocou uma série de críticas e respostas.

Nesse conjunto de instigantes reflexões, destacamos o exercício desenvolvido por Philipp Sarasin, no qual o autor retoma e diferencia as duas modalidades foucaultianas de governança social dos corpos para conter doenças e “fazer viver e deixar morrer”. A perspectiva de Sarasin é analiticamente produtiva porque permite delinear cartografias mais nuançadas da pandemia da COVID-19 como biopolítica. Nesses mapas, é possível verificar que, de fato, em muitos casos, a pandemia levou a medidas verticais de contenção estatal e vigilância rigorosa, que se traduzem em poderes excepcionais e, eventualmente, em violência estatal. Mas, em outros contextos, as respostas foram mais bem guiadas pelo “modelo de resposta à varíola”, ou seja, por métodos de mensuração epidemiológica agregada, modulação, confinamento e isolamento social “consensual”, criando estados sanitários de emergência que não se converteram automaticamente em “estados de exceção”.

Quando este balanço estava sendo finalizado, tivemos acesso ao artigo “The COVID pandemic and social theory: Social democracy and public health in the crisis”, da feminista britânica Sylvia Walby, que adiciona novos elementos e mais nuances a essa cartografia. Walby revisita criticamente os debates sobre COVID-19 e biopolítica. Ela examina o lugar e o significado da ciência nas condições políticas contemporâneas, interroga os vínculos estabelecidas por Foucault e oferece novas angulações para a interpretação da noção de “crise”. Sobretudo, como indica o título, introduz no debate o paradigma da democracia social como contraponto a lógicas autoritárias de gestão da pandemia que, segundo ela, devem ser pensadas como desdobramentos do neoliberalismo.

A política sexual na paisagem da COVID-19

Políticas antigênero

Desde o início da pandemia, ações de forças antigênero e antiaborto, assim como os regimes políticos aos quais elas estão associadas, não arrefeceram. No período entre março e abril, objeto do primeiro especial do SPW, vozes religiosas conservadoras (paralelamente engajadas em campanhas antigênero e antiaborto) já estavam contestando análises e dados científicos relativos à COVID-19, propagando visões que interpretavam a pandemia como conspiração ou punição divina (leia aqui). E, nos EUA e no Brasil, já se iniciaram disputas políticas e jurídicas em relação ao fechamento de igrejas que, no caso brasiliero continuam sendo objeto de intenso debate.

Esses grupos usaram claramente a pandemia como uma oportunidade para atacar a legislação de gênero e para criar barreiras adicionais aos direitos e serviços de aborto, especialmente na América Latina. Líderes católicos na Argentina interpretaram a COVID-19 como um castigo pelos esforços de legalizar o aborto e, no México, pela radicalidade feminista e pelos direitos à diversidade sexual conquistados. Igrejas evangélicas também circularam panfletos que ensinavam mulheres a se comportar como boas esposas durante a quarentena.

Em Israel, o rabino Meir Mazzur declarou que a epidemia era um castigo pelas Paradas do Orgulho LGBT e, na Europa, o catolicismo conservador vinculou a propagação do vírus ao chamado “inverno demográfico” em referência à queda de fecundidade. Na Polônia, onde hoje existem zonas em que está proibida a presença de pessoas LGBT+, o Partido da Justiça, no poder há muito tempo, usou a pandemia para conseguir rapidamente aprovar a proibição total do aborto. Já nos Estados Unidos e no Brasil, as forças antigênero, reiterando sua ideologia anti-intelectualista, sustentaram e ainda sustentam os discursos presidenciais que desqualificam a gravidade da pandemia e hostilizam epidemiologistas e outros cientistas.

Não menos importante, no terreno das cruzadas antigênero em 2020, vozes feministas que também se opõe ao gênero, à perspectiva queer e aos direitos trans ganharam muito espaço e visibilidade política. Estas visões colocaram em risco as diretrizes de política de identidade de gênero do Reino Unido. Confrontos ainda mais acirrados estão em curso na Espanha, onde está em debate um nova lei de identidade de gênero proposta pela coalizão de esquerda Unidas Podemos, mas que não conseguiu consenso no partido governista PSOE (confira uma compilação). Em junho, os ataques feministas a pessoas trans ganharam uma nova escala quando J.K. Rowling, autora da série de livros Harry Potter, fez declarações contra o uso de uma linguagem neutra. Sem pretender esgotar as motivações e implicações dessas controvérsias, recomendamos o ensaio de Laurie Penny (em inglês) e a entrevista de Judith Butler para a New Statesman.

Finalmente, como já mencionado, as forças antigênero vinculadas ao neoconservadorismo religioso e a direita estiveram engajadas em protestos negacionistas contra os lockdowns, o distanciamento social, o uso de máscaras e as vacinas. No contexto dos protestos anti-lockdown, uma nova formação chamada QAnon tornou-se proeminente nos EUA ao promover teorias conspiratórias que ligam a pandemia e a vacina às elites norte-americana e globais e à pedofilia. Esse discursos, assim como outros fenômenos da política digital, se espalharam muito além das fronteiras dos EUA (veja uma compilação em português e em inglês).  Esse fenômeno foi analisado no mini anúncio que o SPW publicou em setembro (leia aqui e aqui).

Mais tarde, no segundo semestre, as vacinas começaram a mostrar resultados positivos. Nos EUA, o QAnon passaria a atacar as vacinas como sendo mais uma estratégia da elites pedófilas e as vertentes religiosas antivacinas começaram a argumentar que elas são produzidas por tecido fetal proveniente de procedimentos abortivos (argumento principalmente católico) ou que seriam portadoras do vírus HIV (principalmente evangélico). Também se espalharam rumores sobre a falta de segurança das vacinas, seus efeitos colaterais e a inescrupulosa manipulação científica. Esta propagação reativou as camadas já existentes de opiniões e sentimentos antivacina, com destaque para os EUA e o Brasil (onde pesquisam indicam que a confiança na vacina diminuiu), mas também na Europa, onde o clima promovido por essas conspirações têm dificultado as campanhas de vacinação. Nesse cenário, o Brasil ocupa um lugar peculiar, pois essas narrativas conspiratórias e que produzem pânico recorrem a fantasias sexuais  e foram propagadas por autoridades públicas, inclusive o presidente, quando declarou que não ia tomar vacina “para não se transformar em jacaré ou ficar com a voz fina” .

Como argumentou Claire Prevost em artigo publicado no openDemocracy, o estado de anormalidade e emergência instalado no planeta criou condições muito favoráveis para que as forças antigênero propagassem suas pautas, mas também para propor o fechamento de fronteiras, ganhar maior controle sobre o poder do Estado nos contextos em que já estão instaladas ou para projetar usos eleitorais futuros sobre as tragédias resultantes da epidemia. Nesse mesmo período, Benjamim Teiteulbaum, em artigo publicado pelo The Nation, examinou a percepção de duas figuras centrais da direita global sobre a pandemia: o guru de Putin, Alexandr Dugin, e Steve Bannon. O artigo informa que, embora discordem radicalmente quanto ao papel do Ocidente e dos Estados Unidos no sistema-mundo, ambos avaliam que a pandemia vai produzir transformações sistêmicas que serão favoráveis às suas visões e propostas de repúdio à modernidade em suas múltiplas manifestações.

Outros fatos relevantes

Apesar do sombrio, complexo e muito incerto contexto pandêmico global, fatos relevantes e muito positivos aconteceram no cenário da política sexual ao longo do ano de 2020.

Em maio de 2020, a Costa Rica tornou-se o primeiro país centro-americano a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na sequência, contudo, a mesma Corte emitiu outra decisão sobre objeção de consciência (em espanhol), que pode criar obstáculos para a implementação da lei.

Em 15 de junho, a Suprema Corte dos EUA também tomou uma histórica decisão em favor da não-discriminação no mercado de trabalho, que inclui a orientação sexual e a identidade de gênero. Duas semanas depois, no dia 29, a Corte também declarou inconstitucional a lei do estado de Louisiana impedindo o funcionamento de clínicas de aborto, exceto em condições muito restritas.

No Brasil, o movimento Escola Sem Partido – que é também antigênero – sofreu várias derrotas depois que a Suprema Corte reafirmou a constitucionalidade da inclusão da questão de gênero na educação.

Na Europa, a legislatura alemã aprovou no dia 8 de maio a proibição da propaganda e da prática de terapias de conversão sexual em menores.

Em junho foi lançado o Relatório Sobre A Suposta “Terapia de Conversão” elaborado por Victor Madrigal, especialista independente da ONU sobre proteção contra violência e discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero. Em seguida, mais de 60 membros do Parlamento Europeu fizeram um apelo pela proibição dessas práticas em toda a Europa.

Nas sessões de junho-julho e setembro do Conselho de Direitos Humanos ONU, várias discussões relevantes e alguns resultados positivos sobre gênero e sexualidade tiveram lugar quando se debateram a Eliminação da Discriminação contra Mulheres e Meninas, a Eliminação da Mutilação Genital Feminina e a eliminação da discriminação de gênero e raça nos esportes. Em setembro, também foi apresentada uma declaração de ONGs sobre o direito ao aborto para marcar o 28 de setembro. Na Assembleia Geral da ONU em Nova York, foi dedicada uma sessão especial para marcar os 25 anos da 4a Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, quando declaração que reafirma os compromissos de 1995 foi assinada por 82 estados.

No início de dezembro, o governo Fernández cumpriu sua promessa eleitoral e apresentou um novo projeto de reforma da lei do aborto na Argentina. No dia 10 de dezembro, a disposição da lei foi aprovada pela Câmara dos Deputados com 131 votos a favor e 117 contra e enviada ao Senado onde, no dia 30, também seria aprovada. Essa foi uma vitória notável da tenacidade feminista na defesa do direito ao aborto na América Latina (compilação em português e espanhol)

Política vaticana: eventos dispersos, uma mesma trama

Fatos significativos também aconteceram na esfera da política do Vaticano que, como se sabe, é um ator incontornável da política sexual. No começo de outubro de 2020, o papa Francisco I publicou sua nova encíclica. Nomeada “Fratelli Tutti” (‘Todos irmãos’ em português). Dois meses mais tarde, no começo de dezembro, foi anunciada a criação do Conselho para o Capitalismo Inclusivo com o Vaticano, plataforma que reúne corporações e algumas instituições filantrópicas como as Fundações Ford e Rockfeller (compilação de notícias em inglês). No final de novembro, uma análise do El País informava que Francisco, após ter criado 73 novos cardeais, finalmente detém o controle do colégio cardinalício que elegerá seu sucessor. E, entre a publicação da encíclica e a matéria do El País, irrompeu a notícia de que o papa teria feito uma declaração a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo no documentário “Francesco”, do diretor russo Evgeny Afineevsky, exibido no Festival de Roma, notícia que teve ampla difusão e efusiva recepção nos meios de comunicação e no campo dos ativismos LGBT+ e feminista.

Comentando o episódio, o cientista político Massimo Prearo publicou no Facebook uma nota que foi posteriormente transformada em artigo para o SPW. Posteriormente, Sonia Corrêa revisitou o episódio em conexão com outros eventos relevantes do mesmo período como, por exemplo, as eleições americanas. Essas duas análises trazem elementos para compreender porque a condenação do casamento igualitário proclamada por Francisco em março de 2021 não deveria ser motivo de surpresa.

Sexualidade & arte

Para esta edição,  que revisita o primeiro ano de pandemia, exibimos ‘Diva’, a obra de Juliana Notari, que suscitou debates intensos no Brasil ao final de 2020, com uma ampla repercussão internacional. Também resgatamos o conteúdo sobre Sexualidade & Arte publicado nas três Edições Especiais anteriores sobre os  trabalhos da inglesa Anna Dumitriu, da brasileira Ventura Profana e do argentino Léon Ferrari.

Diva, de Juliana Notari

Anticorpo Fabricado, de Anna Dumitriu

Raça, religião, sexualidade e gênero, em Ventura Profana

Contestação radical da religião, em Léon Ferrari

Recomendamos

Artigos

Série SPW e Coluna Mulheres em Movimento/FolhaPE – Nosso corpo, nosso direito, nossa escolha

Série especial #Pandemia Crítica – N-1 Edições

Seção especial ‘Reflexões na Pandemia’ – Revista Dilemas

Série especial da Gênero & Número

Um retrato das mães solo na pandemia

Pandemia acentua dificuldades para acadêmicas negras e mães

Na pandemia, redes feministas se tornam ainda mais fundamentais para as mulheres que abortam na América Latina

Pesquisa expõe vulnerabilidade de profissionais da assistência social durante a pandemia de coronavírus

Biopolítica

Paul B. Preciado: Aprendendo com o vírus – AGB Campinas

Biopolítica nos Tempos do Coronavírus. – Instituto Unisinos

Biopolítica e Coronavírus, ou não esquecer Foucault – Felipe Demetri – Medium

A necropolítica das epidemias – Débora Diniz – El País

#SomosTodasVelhos: notas sobre grupo de risco em tempos de pandemia – Memória LGBT

Políticas antigênero

Judith Butler: guerras culturais, JK Rowling e tempos anti-intelectuais – SPW

“Ideologia de gênero”, neointegrismo católico e fundamentalismo evangélico: a vocação antidemocrática – Revista Rosa

O grupo cristão que atua para reprimir homossexualidade e identidade de gênero trans na América Latina – Agência Pública

Os milhões enviados da Polônia para radicais da TFP no Brasil e pelo mundo – UOL

COVID-19 e política

O futuro pós-coronavírus já está em disputa – Eliane Brum – El País

Metáfora da guerra não faz bem à saúde pública ou à democracia – Folha de São Paulo

O andar de cima sabia mais, e a cólera matou 10 mil pessoas na última epidemia na Europa – Elio Gaspari – Folha de São Paulo

Castells: A hora do Grande Reset – Outras Palavras

Un vírus antisistema – El País

COVID-19 e capitalismo

“O capitalismo tem seus limites”, afirma Judith Butler sobre o COVID-19 – Judith Butler – Blog Boitempo

O futuro pós-coronavírus já está em disputa – Eliane Brum – El País

Gênero, direitos das mulheres e feminismo

A necropolítica das epidemias – Débora Diniz – El País

Trabalhadoras informais temem não ter como alimentar os filhos em crise do coronavírus – AzMina

Feminismos

Judith Butler: “De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público” – El País

Emitxin: Los feminismos del fin del mundo – La Tinta

Trabalho sexual

‘Nós somos invisíveis’: trabalhadoras sexuais são afetadas pela pandemia – Uol

A prostituta, o vírus, a cidade – Observatório da Prostituição

Direitos LGBTTI+ e sexualidade

Pandemia, sexualidade e percepção do risco: algumas notas sobre quarentena e desejo – antropoLÓGICAS EPIDÊMICAS

#SomosTodasVelhos: notas sobre grupo de risco em tempos de pandemia – Memória LGBT

Saúde e direitos sexuais e reprodutivos

O antineomalthusianismo populacionista e o pronatalismo coercitivo, artigo de José Eustáquio Diniz Alves – EcoDebate

A pátria é pária e antifeminista, por Sonia Corrêa e Gustavo Huppes – O Globo

Migrantes

1 – Mulheres migrantes em tempos de coronavírus– Folha de Pernambuco

2 – Mulheres migrantes em Lisboa: um caleidoscópio de experiências em tempos de pandemia– Folha de Pernambuco

3 – Mulheres migrantes em tempos de coronavírus– Folha de Pernambuco

HIV/ADS

Juan Carlos Raxach: Os impactos da COVID-19 no SUS e a relação com o HIV/AIDS – ABIA

Omissão de dados da pandemia do novo coronavirus reedita o triste slogan da AIDS: “Silêncio=Morte” – ABIA

COVID-19: algumas reflexões, por Jane Galvão – ABIA

Outros

Breves anotações sobre trauma, por Carla Rodrigues – Medium

Paul B. Preciado: A conspiração dos perdedores – Medium Sara York

 

Podcast

As mulheres contra o vírus – Novo Normal

O corpo da mulher num mundo patriarcal – Cara Pessoa / FSP

Quarentenas: gênero, sexualidade e feminismos em tempos de pandemia – Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos nas Ciências Sociais (Redegen)

Antropologia e Pandemia – episódio 1 – IFCH Unicamp

STF, gênero e censura – PCESP

O mundo deve quebrar as patentes das vacinas? – Café da Manhã / FSP

 

Multimídia

Webinar “ Aborto Previsto em Lei: desafios e agenda no Brasil” – Nem Presa Nem Morta

É com gênero que se ataca o gênero: Direitos sexuais, diversidade sexual e de gênero – Congresso Virtual UFBA 2021

Ofensivas antigênero – Mesa para 6

Diálogos online | Mulheres, violências e vulnerabilidades em tempos de Covid-19 – CEPIA Cidadania

Negacionismos na pandemia, com Isabela Kalil – Fórum de Ciência e Cultura / UFRJ

“Bases sociais do bolsonarismo” com Isabela Kalil e Samuel Soares – 2º Simpósio Direitas Brasileiras / Unicamp

Série com Débora Diniz: Lembrança feminista em 12 verbos – Anis Instituto de Bioética

Webinar “Barreiras e desafios para o acesso ao aborto previsto em lei no Brasil” – FSP/USP

Análise e avaliação da conjuntura política: HIV/AIDS e COVID-19 em pauta – ABIA

Direitos Humanos em disputa: trajetória, controvérsias e atualidades em torno dos PNDH – Gêneros & Desigualdades #14 – Pagu/Numas

Contra os direitos: ódio e negacionismo – Jornadas CLAM/IMS

Ciclo de Conversatorios sobre Laicidad, Libertad Religiosa y DDHH en LAC – RSMLAC

Onde aterrar? – conversa com Bruno Latour sobre colapso climático e pandemia – CBAE

 

Recursos

HIV/AIDS

Respostas à AIDS no Brasil: Aprimorando o Debate III – ABIA

Desigualdade

Nós, os vulneráveis – Revista Radis Ed. 212 – Fiocruz

Observatorio Social del Coronavirus – CLACSO

Direitos sexuais e reprodutivos

Serviço de atenção ao aborto previsto em lei: desafios e agenda no Brasil – Nem Presa Nem Morta, SPW, Cfemea e Doctors for Choice Brasil

Guia ‘Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania’ – Coletivo Feminista Hellen Keller

Dossiê Reações da sociedade brasileira contra a Portaria nº 2.282 – Nem Presa Nem Morta

Boletim Futuro do Cuidado: Justiça Reprodutiva em Tempos de Pandemia – Nem Presa Nem Morta

Como fazer um aborto seguro com medicamentos até 12 semanas – Aborto Fora do Armário

Guia de Defesa Popular da Justiça Reprodutiva – Coletivo Margarida Alves

Tecendo fios das críticas feministas do direito no Brasil – Consórcio Lei Maria da Penha

Direitos LGBTTI 

Panorama del Reconocimineto Legal de la Identidad de Género en las Américas – OEA, Synergia-IHR & AECID

Políticas antigênero e neoconservadorismo religioso

Tudo o que você sempre quis saber sobre a “ideologia de gênero” – GEMRIP

Repositório Religión y Política en Latinoamérica – ReP-Lat

 



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