Por Rita Segato
Os bebês do tubo de ensaio – da fertilização in vitro – são descartáveis. Não há um controle claro sobre o destino dessas “vidas”. Portanto, a lei legisla/fala sobre o corpo da mulher que carrega o embrião e não sobre o embrião. Isto prova, conclusivamente, que a criminalização do aborto é uma lei AD FEMINAM e não uma lei sobre a vida. É uma grande inconsistência legal: promove-se a hipercriminalização do aborto, enquanto há um vácuo legal quando os embriões estão em tubos de ensaio. Por que não nos deixam em paz? Por que não deixam a questão do aborto em um vácuo legal também?
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O lenço azul e o lenço verde não são análogos: o azul impõe a todos a sua crença que um embrião sem nenhum grau de autonomia física ou consciência é uma pessoa. Enquanto isso, o verde permite uma decisão democrática: permite a pluralidade de crenças e consciências. Trata-se de um sistemas de crenças, não ciência.
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Com relação à objeção de consciência dos médicos, pode-se suspeitar que seja o resultado de um ressentimento calcado no prestígio da profissão: “agora teremos que rebaixar-nos para fazer o trabalho que sempre esteve nas mãos das parteiras”. Depois que uma amiga da minha família disse que um famoso ginecologista de Córdoba havia realizado um aborto em sua própria filha – independente da náusea moral intensa que a história me causou – cheguei a suspeitar que o “escrúpulo de consciência” não existe, é outra coisa: talvez seja um escrúpulo de classe ou, quem sabe, de proteção da fonte de renda contra os abortos clandestinos cobrados a preço de ouro das mulheres ricas.
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A lei que criminaliza o aborto não tem eficácia material, pois não obteve eficácia simbólica, ou seja, persuasiva. A despeito da lei, a prática do aborto permanece intocada. Pessoas com recursos viajam para países onde podem realizar um aborto seguro e legal ou pagam para fazê-lo em uma clínica clandestina, o que é sempre caro. Aquelas que não têm recursos sofrem fisicamente – porque todas nós sofremos moralmente – e em não poucos casos adoecem e morrem. Isto mostra, claramente, que a lei não tem uma relação causal e determinante com o comportamento. Somente se persuadir e dissuadir, ou seja, se tiver uma eficácia simbólica, a lei terá eficácia material. A lei contra o aborto nunca atingiu essa condição sagrada da lei, a sua função pedagógica, a sua capacidade de convencer as pessoas de que aquilo que o seu texto diz faz sentido.
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Percebemos que a lei fala, antes de tudo, de quem tem o poder de escrevê-la. Em outras palavras, ela apresenta e representa, exibe o retrato daqueles que escrevem as leis em um país. Para esses, é de fundamental importância colocar-se numa plataforma de poder para determinar o que acontece a nós, mulheres. A lei é apenas mais um espetáculo do poder/domínio/propriedade sobre o corpo da mulher.
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As cúrias, as gerências eclesiais, por exemplo, querem deixar claro que a caneta Montblanc que escreve as leis ainda está em suas mãos. Seguindo esta lógica, as meninas que estão na rua protestando e fazendo barulho “não têm autoridade para escrever uma lei“.
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Esta é uma questão de violência, poder, dominação e propriedade sobre as mulheres. A lei antiaborto usurpa a soberania sobre os nossos próprios corpos e destinos e esse é o significado e a importância dessa maldita perseguição. A queima das bruxas e sua barbárie inquisitorial é a lei antiaborto do presente.
Imitamos os países europeus em tudo. Somos colonizados e eurocêntricos, mas não no que deveríamos imitá-los. O que merece ser imitado, é aquilo que precisamente fica fora do que copiamos. Devemos nos perguntar seriamente o por quê? De onde vem o nosso atraso?
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Forçar uma mulher a ter um corpo estranho indesejado dentro dela é uma experiência idêntica à do estupro. Mas é o pior de todos os estupros, um estupro perpetrado pelo Estado. “A menina de onze anos de Tucumán que foi forçada a ter um filho depois de ter sido abusada pelo namorado de sua avó disse: “Tirem isto que o velho colocou dentro de mim”. “Tirem isso de dentro de mim”, diz a mulher estuprada.
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Esse artigo foi originalmente publicado em espanhol em Página 12. Agradecemos a Rita Segato e Página 12 pela autorização para traduzir e publicar em português.