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Câmara dos Deputados da Argentina vota hoje legalização do aborto

Foto: Raul Ferrari /AFP

Texto anterior passou por três votos na Casa em 2018 e foi vetado pelo Senado, que ainda avaliará a nova proposta, apresentada em novembro; governo Fernández e movimentos sociais trabalham pela aprovação em Congresso polarizado

por Janaína Figueiredo

RIO — Em 2018, após o projeto de legalização do aborto ter sido barrado no Senado argentino por 38 votos contra e 31 a favor, o então presidente da casa, o peronista Miguel Ángel Pichetto, anunciou que “o não venceu, mas o futuro não lhe pertence”. Semanas antes, o mesmo projeto fora aprovado pela Câmara numa votação histórica (129 votos a favor e 125 contra). Nesta quinta-feira, os deputados argentinos decidirão o futuro do projeto sobre aborto legal enviado em novembro passado pelo presidente Alberto Fernández, cumprindo promessa de campanha. Desta vez, a expectativa é ainda maior, tanto na Câmara como no Senado.

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Em plena pandemia e com a Argentina exibindo números ainda alarmantes de contágios e mortes — até o início da semana eram mais pouco mais de 40 mil óbitos e aproximadamente 1,4 milhão de casos positivos —, a vigília dos lenços verdes (símbolo dos movimentos a favor do aborto legal) voltará a ser realizada na Praça do Congresso, à espera de um resultado contundente.

O aborto é considerado delito pelo Código Penal argentino. As mulheres podem interromper legalmente suas gestações apenas em caso de estupro ou risco de vida.

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Em 2012, a Corte Suprema de Justiça determinou que a saúde mental das vítimas não deve ser considerada na hora de tomar uma decisão, derrubando a posição de grupos conservadores que defendiam a descriminalização do aborto apenas para mulheres com problemas mentais. Nos últimos dois anos, a força de movimentos sociais, como o feminista, preparou o terreno para uma nova votação no Parlamento.

— A discussão é simples: se uma mulher quer interromper sua gravidez, vamos dar a ela segurança ou insegurança? — questionou ao GLOBO Mario Sebastiani, eminência do Hospital Italiano de Buenos Aires e autor do livro “Aborto legal e seguro”. — A clandestinidade apaga toda possibilidade de ação para melhorar a qualidade de vida das mulheres.

O projeto que será votado nesta quinta-feira pela Câmara argentina descriminaliza o aborto até as 14 semanas de gestação; fala em objeção de consciência individual, garantindo-se que o procedimento será realizado, seja na mesma instituição ou em outra alternativa similar, assumindo, se for necessário, o custo de um eventual traslado. E veda a objeção de consciência em caso de risco de vida ou necessidade de atenção imediata. O texto estabelece, ainda, um prazo obrigatório de dez dias para que as mulheres realizem o procedimento, a partir do momento em que for confirmada a gravidez.

O projeto ainda será votado no Senado, o que poderia acontecer até o fim do ano ou nos primeiros meses de 2021.

Igreja se movimenta

Num clima de crescente tensão, a Conferência Episcopal Argentina (CEA) expressou sua preocupação pela provável aprovação do projeto. Em vídeo divulgado em redes sociais, o presidente da CEA, monsenhor Oscar Ojea, pediu aos congressistas que “antes de votar façam uma reflexão sobre o que significa a vida”, e falou sobre o que qualificou de “cultura do descarte”, utilizando uma expressão frequente nos discursos do Papa Francisco. A menção indireta ao Papa, que é argentino, foi uma alfinetada no presidente Fernández, que gosta de exibir ao mundo sua relação privilegiada com Francisco.

— Isso não é um jogo de futebol, os legisladores e o Estado devem deixar de lado religiões, moralidades e valores e devem pensar que as mulheres não decidem um aborto com o Código Penal em suas mãos, mas em função de suas próprias realidades sociais e econômicas — assegurou Sebastiani.

Não existem estatísticas confiáveis, mas médicos como Sebastaini asseguram que todos os anos são realizados entre 300 mil e 600 mil abortos na Argentina. As mortes durante ao aborto estão concentradas nos setores mais humildes e esse é um dos principais argumentos dos defensores do projeto que, se for aprovado, passará a integrar uma lista ainda pequena de legislações específicas sobre o tema na região.

O primeiro país latino-americano com uma lei regulamentando o aborto foi Cuba, em 1965, influenciada pela antiga União Soviética. O Uruguai, que teve aborto legal entre 1934 e 1938, aprovou uma nova lei em 2012, descriminalizando a interrupção voluntária da gravidez até as 12 semanas e, em caso de estupro, até a décima-quarta.

Em 2006, a Justiça colombiana autorizou o aborto em quatro circunstâncias: estupro, má formação fetal, risco de vida e de saúde. Existe atualmente no país enorme pressão de movimentos sociais para que o aborto seja retirado do Código Penal.

O Chile reformou sua legislação em 2017, dando um passo gigantesco para um país onde ainda vigora a Constituição da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), e passou a permitir o aborto em três casos: risco de vida da mulher, inviabilidade fetal e estupro.

Cenário oposto no Brasil

Já no Brasil, lembrou Sonia Correa, pesquisadora e co-coodenadora do Observatório de Sexualidade e Política, desde o ano 2000 “crescem as ameaças de retrocesso que pretendem transformar o país numa Nicarágua, onde o aborto está totalmente proibido”.

— Desde 1940, o Código Penal brasileiro permite o aborto em caso de estupro e risco de vida da mãe. A Constituição de 1988 não fala em direito à vida desde a concepção, (o que foi) uma derrota importante para a Igreja Católica — explicou Sandra, que diz temer que o governo de Jair Bolsonaro ofereça  “as condições para um retrocesso ainda maior”.

Sonia Correa acrescenta que, a seu ver, a legalização do aborto na Argentina “seria uma vitória para toda a região”.

Nervos à flor da pele

Em Buenos Aires, ativistas pelos direitos das mulheres como Ana Correa estão com os nervos à flor da pele. Para ela, a legalização do aborto em um país católico representaria “uma tremenda sinalização para o mundo todo”.

— Hoje temos apoio em quase todos os partidos — contou a ativista.

Dentro de alianças como a opositora Juntos pelos Mudança — do ex-presidente Mauricio Macri — convivem congressistas com posições divergentes. A deputada Brenda Austin votará a favor do projeto porque considera que o aborto é “uma questão de saúde pública”.

— A criminalização é o pior cenário. Está confirmado que nos países onde o aborto é legalizado os casos diminuem e passam a ser mais centrais as políticas de prevenção — afirmou Brenda.

No entanto, sua colega Carmen Polledo considera que “o aborto sempre é um fracasso”:

— O embrião não é um órgão da mãe, ele tem vida própria e está sendo gestado. É um ataque muito complicado de um poderoso sobre um fraco.

Embora tenham circulado versões sobre uma suposta oposição da vice-presidente da Argentina e presidente do Senado, Cristina Kirchner, a tratar o projeto neste momento — o governo está em baixa nas pesquisas e atravessa uma gravíssima crise financeira e econômica — ativistas como Ana asseguram que o cenário político é amplamente favorável.

A Argentina, garantem, tem grandes chances de terminar o ano com o aborto legalizado, o que, para o movimento feminista local, seria o desfecho de ouro de uma luta específica de década e meia pela aprovação no Congresso.

Texto originalmente publicado em Celina, O Globo, em 10 de dezembro de 2020. Acesse o post original aqui.



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