Por Simony dos Anjos*, em colaboração com a coluna Mulheres em Movimento da Folha de Pernambuco
Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher?
Essa frase faz parte do discurso proferido por Sojourner Truth como uma intervenção na Women ‘s Rights Convention em Ohio, EUA, em 1851. O discurso forte questionou a todas as pessoas presentes: Eu não sou uma mulher, por que sou Negra? Haja vista que enquanto mulheres brancas lutavam por poderem sair às ruas, trabalhar e ter autonomia, para ela, o trabalho e a rua faziam parte da vida de mulher escravizada nos Estados Unidos, no século XIX.
Essa inquietação de Sojourner Truth traz luz para as intersecções de opressões que a mulher negra sofre: ao passo que é mulher, e portanto oprimida pelo patriarcado, é negra e oprimida pelo racismo que estrutura a sociedade ocidental. Se a mulher branca é colocada em uma posição de debilidade, a mulher negra é colocada em uma posição de objetificação, seja para o trabalho ou seja pela objetificação sexual.
Truth, em frente a muitos homens, disse: “falam que mulher não pode ter direitos, porque Jesus era homem. E ele veio de onde, senão de uma mulher”? Essa ousadia causou enorme espanto e muita perseguição, também. Trago à memória esse discurso justamente por mostrar que mesmo entre mulheres as perspectivas podem ser diferentes – principalmente quando se trata de mulheres negras.
Eu fui candidata à Prefeitura de Osasco, pelo Psol. Única mulher e única pessoa negra do pleito à prefeitura. Em meu discurso, após a convenção que aprovou meu nome para a candidatura majoritária citei Truth, e acrescentei: “não sou eu uma mulher que possa ser a Prefeita de Osasco? Sim, eu sou”.
Fiz questão de citar essa mulher potente por um único motivo: ela – e tantas outras mulheres negras – começaram a pavimentar a estrada da liberdade para todas nós, lembrá-la é reafirmar o compromisso de que eu devo pavimentar a estrada para as próximas gerações de mulheres negras.
Nesse sentido, a cada passo que dei na campanha, lembrava de Dandara, Aqualtune, Carolina de Jesus, Bia Nascimento, Lélia González, Conceição Evaristo, Benedita da SIlva e tantas outras que pavimentaram a estrada para que eu pudesse ser a primeira mulher negra candidata à Prefeitura da Cidade de Osasco! A primeira de muitas.
Como vocês vêem, são muitas emoções e afetos que estão envolvidos nesse processo. Para dar um fio condutor e organizar meus sentimentos, falarei do desafio de ser a candidata de uma cidade rica, conservadora e extremamente desigual; da importância da coletividade; dos ataques sofridos e da importância do reconhecimento da ancestralidade.
Osasco é a sexta cidade mais rica do país, a segunda mais rica do Estado de São Paulo. O PIB da cidade está na casa dos 77 bilhões. Mesmo assim, temos 15 mil famílias chefiadas por mulheres que ganham até 89 Reais per capita, por mês. Isso mesmo, famílias com cinco pessoas que vivem com até R$ 450,00 por mês. Esse, para mim, foi o maior desafio: projetar a voz para dizer o quanto as mulheres negras são as mais atingidas pelas desigualdades sociais. Na perspectiva de uma mulher negra periférica, Osasco é uma cidade péssima para se viver, mesmo sendo tão rica!
Ao passo que denunciavamos isso, ficava evidente que para de fato se construir uma Osasco popular, governada para a maioria e boa para se viver, se faz necessário o confronto direto com os mais ricos. O confronto com a estruturas econômicas exploratórias e racistas que tornam as periferias da cidade um lugar de morte, de genocídio da população preta e periférica.
Esse pesado desafio, só foi possível transpor com a luta coletiva. A coletividade é uma marca importante da luta das mulheres negras. Ela se dá quando nos apoiamos, quando nos reunimos e dividimos nossas dificuldades e desejos. Quando sabemos o que sentimos. É sobre autoestima. É sobre construção.
Tive a honra de estar em uma campanha com sete mulheres negras que eram ou candidatas à vereança ou co-candidatas em mandatas coletivas. Olhar para a nossa chapa e ver essa força, esse enegrecimento da política feito pelas mãos das mulheres negras, foi muito importante. Marielle Franco foi um referencial valioso para nós, ao carregarmos nossos crespos, nossos corpos e nossas cores. Nossos gritos, nossos cantos e nossa alegria!
Um dos grandes diferenciais que as mulheres negras trazem é a alegria. A política é masculina, branca e sisuda. As mulheres negras são coloridas e alegres! Essa alegria não é apenas risos, e cantos. Se dá no carregar da ancestralidade de nossas mães negras que guardaram nossa cultura e nossa identidade negra. Que andaram, não pararam. E que nos impulsionam a continuar andando! Essa ancestralidade, essa memória, esse orgulho da pele negra que o colonialismo-racismo tentou tirar de nós, é o que nos move. Pois ao ouvir histórias de nossas guerreiras e rainhas, sabemos do nosso valor e da importância de caminhar para o bem viver.
Os ataques foram muitos: descrédito por ser mulher, silenciamento. Racismo e ataques misóginos nas redes sociais. Em nossa campanha, pude vivenciar candidatos me perguntando se eu sabia “como funcionava a câmara”. Nas redes, desde de mulher com “cara de merendeira” à “essa tem cara de drogada” – manifestação explícita de racismo. Hackearam nosso grupo de whatsapp da campanha, com ataques misóginos, racistas e lgbtfóbicos. Ouvi muito: “mulher e política, não combinam”. Meus filhos foram reconhecidos na rua, isso foi terrível! Um sentimento de exposição, de insegurança.
A cada notícia de mulher que sofria violência política, como a nossa deputada Talíria, que sequer pode estar em seu território, meu coração apertava. Às vezes, me parecia que eu não deveria estar naquele lugar, que outra pessoa seria mais adequada. E nesse momento me dei conta que essa é uma das ferramentas do racismo e do machismo: nos fazer sentir que não podemos estar ali. Aquela síndrome da impostora, sabe? Eu senti, e muito. E por isso volto à importância da coletividade: é ela que vai fazer você lembrar quem é; que caminho caminharam antes de você e qual estrada que você deve continuar pavimentando para a próxima geração de meninas negras.
Esse foi o desafio dessa campanha, não só em Osasco, mas em todo o Brasil. Enegrecer e mulherar a política! O número de mulheres negras candidatas e que conseguiram se eleger, foi o maior visto, até então. As mandatas coletivas, foram um recurso muito usado pelas mulheres negras. Várias mulheres negras movimentaram a política do Oiapoque ao Chuí. Como disse no meu texto Marielle vive, Marielle viverá:
Fomos 4.5% das candidatas à Prefeitura do Brasil. Fomos o principal alvo de violência política nestas eleições (eu mesma sofri ataques virtuais, fake news e recebi muitos ataques racistas, sexistas, lgbtfóbicos e classistas). Vereadoras negras e trans estão entre as candidaturas mais votadas em 13 capitais brasileiras. E como diria Conceição Evaristo: “Combinaram de nos matar, e a gente combinou de não morrer!” E para tal tarefa assumida no dia 14 de março de 2018 – quando mataram Marielle -, ganhamos as ruas, ganhamos a política. Há uma primavera negra e feministas que sopra com nossas cores, corpos e alegria. (Fonte: Justificando)
Eu não poderia encerrar esse texto sem dizer da melhor parte da campanha: a aceitação nas ruas. Principalmente com as mulheres mais jovens, nas quais eu via um brilho de esperança nos olhos quando me viam candidata. Muitas se sentiam mais fortalecidas e agradeciam pela minha candidatura. Que delícia ser espelho para essa geração que mudará o mundo, muito mais do que a nossa mudou.
Por outro lado, o carinho das mais velhas foi essencial. “Ah minha filha, é isso. Vamos mudar a vida das nossas crianças”; “Ah, como é bom saber que as mulheres têm mais espaço, hoje”. Ouvi de uma senhora, que vendia cachorro quente no calçadão de Osasco: “Você é porreta, foi a melhor no debate.” Era quase como receber um bastão para poder passar para as próximas, e próximas e próximas que seguirão na tarefa de construir um mundo melhor, bom de se viver.
Assim, seguimos pavimentando a avenida dos direitos das mulheres negras no Brasil, e no mundo. A estrada se pavimenta, conforme se anda. Eu não tenho vontade de parar, vamos?
*Simony dos Anjos é Cientista Social (UNIFESP), mestre em educação (USP), doutoranda em antropologia (USP). É militante do PSOL, integrante das Evangélicas pela Igualdade de Gênero e da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.