Após seis meses de pandemia, uma característica marcante das condições que ela produziu é que o tempo não se expandiu como muitas/os de nós havíamos previsto inicialmente, mas, ao contrário, encolheu. Embora estejamos fixos num mesmo lugar, a completa virtualização do trabalho e da sociabilidade desencadeou uma espiral de interações sobrepostas, que parecem engolir o tempo mais rapidamente do que sob condições normais de anormalidade. Esta retração e intensificação são agravadas em certos ambientes como, no nosso caso, que estamos imersos nos capítulos sequenciais da catástrofe brasileira e de suas emergências perenes.
Este breve preâmbulo serve para explicar por que não conseguimos manter a regularidade de nossos anúncios sobre a política sexual – que em 2020 se tornou a edição especial Política sexual em tempos de pandemia. Planejávamos circular um novo número no final de setembro, mas isto não será possível, inclusive porque nosso tempo e energia foram, em grande parte, consumidos pelo episódio da menina do Espírito Santo que, apesar das gigantescas restrições políticas, assumiu os contornos de um ponto de inflexão em um caminho muito longo para a justiça reprodutiva no país.
Para preencher este espaço em branco, decidimos circular este pequeno anúncio composto de quatro artigos. Dois deles examinam a onda de pânico moral desencadeada por alegações de pedofilia que se tornaram virulentas em toda a América Latina desde maio de 2020, o que é diferente, mas não totalmente desconectado, da concomitante erupção da conspiração sobre pedofilia propagada pelo QAnon nos Estados Unidos. O primeiro artigo, Monstros debaixo da Cama é escrito por Andrea Dominguez, uma jornalista colombiana que vive em Miami e escreve para o portal Sentiido. Ela analisa essas tendências latino-americanas e americanas com um foco mais forte na Colômbia. No segundo, Pedofilia – mais do mesmo?, Sonia Corrêa e Rajnia de Vito examinam como esta onda da pedofilia se manifestou no Brasil através de lentes que conectam o episódio a tendências mais amplas em jogo em todas as Américas. O terceiro artigo, O caso da menina do Espírito Santo: será este um ponto de inflexão no longo caminho para o direito ao aborto no Brasil?, de Sonia Corrêa, recapitula a trajetória do proeminente caso de aborto no Brasil. O texto analisa a sequência de obstáculos e o circo de horrores provocados pelas forças anti-aborto, dentro e fora do governo, para impedir a interrupção de uma gravidez resultante de estupro. O quarto artigo, Os gays que votam em Trump: o que isso significa para a política sexual?, examina os resultados do survey realizado pelo aplicativo de relacionamentos gay Hornet que revelou que 45% de seus usuários americanos entrevistados votariam em Trump, uma média maior do que a intenção de voto da população em geral. Apesar dos limites da pesquisa, o artigo analisa esse fenômeno como um sintoma de um processo de direitização mais ampla, além dos resultados da pesquisa em outras regiões e suas implicações para as dinâmicas transnacionais da política sexual.
Apesar de não parecerem, à primeira vista, estes temas estão relacionados. Primeiro porque as forças conservadoras envolvidas são as mesmas ou estão fortemente ligadas, especialmente no caso da pedofilia e do caso de Guriri (ES), mas também dos gays de direita que votam em Trump. No caso particular do Brasil, elas decididamente coincidem, tendo como vértice comum a ministra Damares Alves. Não menos importante, como articulado por Andrea Dominguez em seu artigo, ao examinar as ondas de pânico moral contra a pedofilia para atacar as comunidades LGBTTI, é crucial apontar a disjunção entre este discurso e a extensa realidade do abuso sexual, cujos perfil dos autores são homens, membros da família, e predominantemente heterossexuais.
Embora os artigos não abordem diretamente a pandemia, os episódios examinados estão situados no ambiente da COVID-19 e ilustram claramente como as forças antigênero e anti-aborto não estão inertes nas Américas. No Brasil, alguns analistas levantaram a hipótese de que a espiral de pânico moral cujo centro é a pedofilia teria sido desencadeada como uma cortina de fumaça para distrair o público da carnificina dos 120 mil mortos pela COVID-19. Nos EUA, como é amplamente conhecido, o QAnon articula discursos anti-pedofilia e anti-vacina em suas narrativas de conspiração política. O caso brasileiro do aborto também não está desconectado da pandemia, pois, embora não existam dados consistentes, os números de violência sexual contra crianças e adolescentes parecem ter aumentado por efeito da quarentena e a suspensão das aulas pode ter comprometido a detecção precoce e a prevenção de abusos.
Tenham uma boa leitura!
Os gays que votam em Trump: o que isso significa para a política sexual?