Por Paula Rita Bacellar Gonzaga*
Entender o lugar da Psicologia diante dos desafios que cercam a criminalização do aborto no Brasil e suas consequências na vida das mulheres brasileiras nos demanda, inicialmente, entender de que Psicologia nós estamos falando. A despeito de um histórico de normatização dos sujeitos, a Psicologia tem produzido proposições emancipatórias, num compromisso com os Direitos Humanos e a dissolução das desigualdades sociais. Ainda que não de modo linear, temos avançado numa compreensão desse saber disciplinar como ferramenta de transformação das estruturas que hierarquizam vidas, histórias, escolhas e obviamente, corpos que foram e são reduzidos a uma função ou característica.
Desse modo, a Psicologia tem um desafio diante da naturalização da maternidade como destino irrefutável às mulheres e, por conseguinte, a criminalização do aborto como mecanismo de penalização jurídica e moral daquelas que interrompem gestações. Ao longo das próximas linhas me dedicarei a apresentar três âmbitos de atuação onde a intervenção da profissional de Psicologia pode ser de extrema valia para dirimir as violências psicológicas a que mulheres que abortam estão sujeitas. Ciente de que esse não é um retrato definitivo ou uníssono da categoria, mas sim, uma escolha política de destacar três campos extremamente caros a nossa jovem ciência e profissão e que estão imbricados de modo indissociável: a práxis, a formação e a atuação política.
No primeiro aspecto cabe sinalizar que nossa atuação é fundamental no acolhimento de mulheres que buscam os serviços de aborto legal nos casos previstos em lei. Em 1940 o Código Penal define que gravidezes decorrentes de estupro ou que impliquem em risco à vida da mulher são passíveis de serem interrompidas legalmente, ainda que o aborto em si seja um crime. Em 2012 o Supremo Tribunal Federal considerou que em casos de anencefalia fetal, a mulher também poderia recorrer à interrupção legal da gestação. Em todos esses casos a profissional de Psicologia é indicada como componente da equipe multidisciplinar mínima que deve acompanhar a usuária do serviço, promovendo escuta qualificada, acolhimento das demandas e facilitando o diálogo da equipe com a mulher.
Essa participação está indicada na Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, ambas publicadas pelo Ministério da Saúde. Essa última também determina a conduta interventiva de profissionais nos casos de atendimento de mulheres com complicações decorrentes de interrupções gestacionais conduzidas de modo inseguro. Seja em casos previstos por lei ou naqueles em que se pressupõe o protagonismo da mulher na finalização da gravidez, a Psicologia deve orientar-se pelos princípios fundamentais do Código de Ética que baliza nossa profissão, atuando sem julgar ou constranger o sujeito a quem se dirige.
Ao contrário das premissas que compõem a portaria de nº 2.561 de 23 de setembro de 2020 não compete à psicóloga a denúncia ou verificação de veracidade dos depoimentos das mulheres em situação de abortamento em nenhuma circunstância. Pelo contrário, deve atuar na eliminação de qualquer forma de opressão, crueldade, humilhação, promovendo a saúde e a qualidade de vida dos sujeitos.
A gravidez forçada tem sido identificada como tortura por órgãos internacionais e o governo brasileiro ao criar empecilhos burocráticos para o acesso ao aborto legal instrumentaliza profissionais de saúde como investigadores e aplicadores das regras religiosas e morais dos grupos atualmente em exercício do poder público.
Não devemos, enquanto categoria profissional olvidar o primeiro princípio fundamental que estipula nosso compromisso ético com a promoção da liberdade, da dignidade, da integridade e da igualdade, coadunando com os valores que formam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Diante de um quadro de abortamento é competência da psicóloga acolher a demanda da mulher, escutar sem julgamento sua narrativa, sempre cumprindo o sigilo profissional que é fundamental em nossa categoria e sob nenhuma circunstância deve utilizar o que lhe foi revelado para prejudicar, acusar ou constranger a usuária, nem tampouco compartilhar de condutas institucionais que violem direitos.
Em consonância com essa perspectiva, em 07 de julho de 2020 o Conselho Federal de Psicologia publicou a Resolução nº 8 onde define normas de atuação da categoria diante de casos de violência de gênero. Nesse documento assinala-se, dentre outros pontos igualmente importantes, a necessidade de se contribuir com a autonomia das mulheres e não se corroborar culturas organizacionais discriminatórias, assediadoras e violentas, como são relatadas em muitas pesquisas a conduta de profissionais diante de casos de abortamento. Infelizmente a precariedade da formação no que tange aos contornos subjetivos do abortamento, alinhado a uma predominância de discursos extremistas e conservadores nos setores oficiais do governo agravam situações de humilhação, constrangimento, coerção e negação de direitos.
Nesse sentido, aponto o segundo âmbito onde a Psicologia deve fortalecer sua atuação acerca da interrupção voluntária da gravidez: a formação profissional. A criminalização do aborto reverbera em prol de um ocultamento da questão, dificultando a realização de pesquisas e produzindo questionamento de docentes que se dispõem a trabalhar com a temática em salas de aula.
A precariedade da nossa escuta está diretamente ligada à ausência de um aprofundamento substancial, ético, empírico e qualificado sobre o abortamento enquanto fenômeno com contornos sócio-históricos, mas também sobre a criminalização dessa prática e suas reverberações nas subjetividades das mulheres que abortam. É necessário que estudantes de psicologia tenham acesso a outras vozes acerca da interrupção voluntária da gravidez, inclusive as vozes das mulheres que abortam, por meio de pesquisas científicas, não apenas os discursos que carregam de suas experiências pessoais, religiosas e familiares.
O aborto, assim como todas as outras demandas que nos chegam, devem ser analisadas e manejadas com um aporte teórico-metodológico de especialistas e não com premissas generalistas sobre maternidade, pecado, vida ou morte. A profissional de Psicologia não deve portar-se como missionária de um modo único de existir, mas sim como facilitadora dos processos de emancipação dos sujeitos e nesse caso, das mulheres, sejam elas amparadas pela legislação vigente ou não.
Ainda que esse seja um tema raro na Psicologia, já não se pode dizer que não tenhamos referências significativas, vide as produções de Gonzaga, Gonçalves e Mayorga (2019); Zanello e Porto (2017); Lima (2015), que podem contribuir substancialmente para um embasamento sólido acerca do nosso papel diante de casos de abortamento.
Também nesse sentido é fundamental indicar que é dever da psicóloga reconhecer as suas limitações teórico-metodológicas e éticas diante de alguns casos e, portanto, distanciar-se quando identificar que não é capacitada para oferecer um serviço de qualidade, alinhado com os aportes das ciências psicológicas e com o nosso próprio código de ética profissional. A formação em Psicologia, ainda que generalista, nos demanda o desenvolvimento de um senso crítico sobre a organização social e suas estruturas hierárquicas.
No caso da Psicologia que parte de América Latina e visa dirimir as desigualdades que organizam nossa região, é essencial compreender a raça como critério de definição da humanidade, também como critério de valorização ou não das vidas. Mulheres negras são as que mais chegam ao Sistema Único de Saúde (SUS) com complicações pós-abortamento. Também são maioria entre as que morrem em decorrência de mortalidade materna e das que são vítimas de violência doméstica.
Desse modo, pensar a manutenção da condição de criminalização do abortamento em América Latina demanda pensar a insensibilidade socialmente internalizada, que permite a mutilação, humilhação e a morte de mulheres negras. Nossa formação deve, portanto, debruçar-se também primordialmente por uma perspectiva de reconhecimento e enfrentamento do racismo estrutural que agudiza as problemáticas sociais, entre elas os itinerários abortivos realizados na clandestinidade e que buscam os serviços de saúde como último recurso.
Nesse sentido, apresento o terceiro âmbito de atuação da Psicologia frente à questão do abortamento: a disputa política de narrativa. A criminalização do aborto não impede sua prática, apenas agrava os riscos da clandestinidade para aquelas mulheres que já vivenciam as agruras de uma sociedade organizada a partir do marco civilizatório colonial, racialmente hierarquizada, economicamente desigual e territorialmente diversa. São as mulheres negras, indígenas, pobres, trabalhadoras rurais, com pouca ou nenhuma educação formal que vivenciarão a face mais violenta das sanções penais e morais da manutenção da criminalização do aborto, ou melhor dizendo, da criminalização da autonomia das mulheres.
Como também indica o Conselho Federal de Psicologia por meio da Resolução n°18/2002 nossa produção intelectual, científica, profissional e política, deve estar ciente das manifestações de racismo e operar em prol da eliminação das mesmas, reconhecendo seu caráter capilarizado, multifacetado e de profundos efeitos no tecido social e na produção da noção de eu dos sujeitos.
Longe de caber na perspectiva reducionista de ciência do indivíduo ou da subjetividade que entende ambos esses conceitos de modo apolítico e ahistórico, a Psicologia é a ciência dos modos de subjetivação, dos discursos com que se produzem regimes de verdade e de como essas verdades produzem afetações nos indivíduos.
Dialogicamente compete a nossa categoria mapear como essas violências, dada a criminalização do aborto, reverberam nos modos que essas mulheres constroem sua significação existencial, em sua construção de autoimagem, autoconfiança e como esses discursos são componentes naturalizados de violência psicológica e se repetem desde discursos de representantes políticos até profissionais de saúde em exercício de função.
Compreendendo que indivíduo e sociedade não são polaridades e sim componentes que em diálogo forjam os modos de subjetivação dos sujeitos. Compete à psicologia, então, debruçar-se sobre os impactos diretos e indiretos que a penalização moral e jurídica da interrupção gestacional promove na vida das mulheres. Nossa escuta não se limita ao setting clínico, nem tampouco às salas de aula, bem como não devemos limitar nossa voz.
É preciso tornar audíveis as vozes de psicólogas e psicólogos com propriedade teórico-metodológica, pois está indicado em pesquisas empíricas que a criminalização do abortamento é uma violência de gênero e sedimenta discursos, práticas, intervenções e violações que são tanto fisicamente quanto psicologicamente violadoras.
Para isso, a Psicologia brasileira tem muitos desafios. O primeiro deles é quebrar o silêncio e o estranhamento que ainda perpassa o debate do aborto na nossa categoria e admitir que esta é uma pauta que nos cabe, que nos é cara e que é central para desmembrar outros modelos de violação dos corpos femininos, como a cultura do estupro, o feminicídio e todas às outras formas de controle e apropriação das mulheres através de sua potencialidade sexual, reprodutiva e psíquica.
*Paula Rita Bacellar Gonzaga é feminista negra, doutora em Psicologia Social, integrante do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão – Conexões de Saberes e coordenadora do Programa Integrado de Pesquisa, Extensão e Criação – Janaina Aparecida. É uma das organizadoras do Encontro Nacional de Pesquisa e Ativismo sobre Aborto.
Texto originalmente publicado em Mulheres em Movimento, Folha de Pernambuco. Acesse o post original aqui.