Por Sonia Corrêa
Desde 1940, a lei brasileira permite o aborto em casos de risco à vida e estupro e relações sexuais com menores de 14 anos são legalmente definidas como estupro. Contudo até 1989, quando se criou o primeiro serviço de aborto legal, em São Paulo, era praticamente impossível, realizar um aborto legal em caso de estupro. Em 1999, o Ministério da Saúde emitiu uma norma técnica para Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, que seria considerado pela OMS a principal referência mundial para as políticas de saúde sexual e reprodutiva. Embora revisada em 2005 e 2012, seu conteúdo não foi substancialmente modificado.
Mas, em 2020, esta norma esteve no centro de um furacão. No dia 8 de agosto, a imprensa brasileira noticiou o caso de uma menina de 10 anos, que ficou grávida após ter sido estuprada por seu tio. Ele morava com ela e sua avó no município de São Mateus, estado do Espírito Santo. Com dores abdominais, a menina foi levada a um hospital local. Nesta ocasião, ela contou à equipe médica que tinha sido abusada desde os 6 anos de idade e que nunca havia relatado o abuso antes porque era ameaçada de morte pelo tio. O médico que a examinou estabeleceu que a gravidez tinha mais de 20 semanas. Em lugar de encaminhá-la a um serviço de saúde referenciado para casos de aborto permitidos por lei ( existem dois no Espírito Santo), o médico a colocou sob custódia do Estado, um procedimento comum em casos de estupro de menores de 14 anos, ainda que considerado prejudicial. Assim que o caso se tornou público, a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves, conhecida por sua oposição radical ao aborto, inclusive em casos de estupro, declarou que ela “ajudaria a menina e sua família”. Posteriormente, dois funcionários do alto escalão do Ministério viajaram para São Mateus para falar com as autoridades locais, acompanhados de um deputado estadtual que em novembro do mesmo ano se elegeria prefeito da capital do estado, Vitória.
Como a menina estava sob custódia, seu caso seria decidido pela Vara da Criança e do Adolescente. O promotor público ouviu o testemunho da menina e de sua avó, que optoram pela interrupcão da gravidez. Contudo, como foi mostrado por imagens privadas, que circularam na internet, e matérias posteriores de imprensa, mesmo antes da autorização do aborto ter sido emitida pela Justiça a família da menina foi violentamente coagida por católicos conservadores locais, em particular por um candidato a vereador .
Na segunda-feira, 21 de setembro, o jornal Folha de São Paulo publicou um artigo com provas de que a Ministra Damares Alves fez todo o possível para evitar o procedimento de aborto. Os dois funcionários que estiveram em São Mateus tentaram convencer as autoridades locais de que a menina deveria levar a gravidez a termo, oferecendo até mesmo o parto em um hospital do Estado de São Paulo e benefícios para as instituições, como a compra de um veículo para o Conselho Tutelar local. De acordo com a investigação, quando essas tentativas fracassaram, as informações sigilosas sobre o caso foram vazadas para o movimento antiaborto (ver abaixo). Hoje a Ministra é objeto de uma investigação do MPF.
Após a autorização judicial do procedimento, o Secretaria de Estado de Saúde solicitou a transferência da menina para a capital Vitória, para que o procedimento pudesse ser realizado no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (HUCAM), que abriga um dos serviços de aborto legal do estado. No sábado, 15 de agosto, após examinar a menina, a equipe médica do HUCAM declarou que o procedimento não poderia ser realizado porque a gravidez tinha mais de 22 semanas. A nota técnica emitida pelo HUCAM remetia à norma técnica do Ministério da Saúde, que estabelece como limite a 22ª semana de gestação para o aborto em casos de estupro. Entretanto, como observado por vários especialistas do direito e da medicina, este limite está em contradição com o Código Penal de 1940 que não estabelce limites e, sobretuod, não leva em conta os avanços tecnológicos nos procedimentos de aborto que ocorream desde 1940.
Diante deste obstáculo, a Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (SESA) procurou uma alternativas em outros estados. O caso foi, finalmente, aceito pelo Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), localizado em Recife e administrado pela Universidade do Estado de Pernambuco (UEP), integrada ao Sistema de Saúde Pública (SUS). O CISAM é um dos mais antigos e bem qualificados serviços de aborto previsto em lei no Brasil. Em 2009, realizou-se aí um procedimento de aborto em caso muito semelhante, ou seja de outra menina vítima de estupro. Nesta ocasião, as vozes antiaborto também causaram muito alvoroço. O arcebispo do Recife, por exemplo, excomungou publicamente a equipe médica que fez o procedimento.
Nas primeiras horas do domingo (16), a menina, acompanhada de sua avó e de uma assistente social da SESA, voou para Recife com todas as despesas cobertas pelo SUS. Até aquele momento, o caso estava sob a proteção do sistema de justiça e mantido em sigilo. Entretanto, através de canais que estão agora sob investigação, informações substanciais sobre o caso foram divulgadas ao público. Mesmo antes do desembarque da menina em Recife, a conhecida ativista antiaborto Sara Winter divulgou o nome da vítima e o endereço do hospital para onde ela seria encaminhada numa live através do YouTube, chamando as forças anti-aborto para fazer todo o possível para impedir o procedimento. Como denunciou o The Intercept, além dessa primeira live, Winter passou alguns dias se promovendo através do caso sem que as redes sociais enfrentassem a questão de imediato.
Quando a menina chegou ao CISAM, um grupo de ativistas antiaborto ultracatólicos, acompanhados por parlamentares estaduais evangélicos, se reunia em frente ao hospital. Para evitar o assédio, a menina foi colocada no porta-malas da van que a transportava, que entrou na unidade de saúde por uma porta lateral. Enquanto isso, o diretor do hospital tentou envolver os grupos antiaborto em um diálogo, enquanto eles gritavam que ele era um assassino. O grupo permaneceu em vigília até tarde da noite na frente hospital. Do outro lado da rua, grupos feministas locais também faziam vigília em apoio à menina, à decisão do tribunal e ao pessoal médico. Segundo matéria do El País, apesar de medidas de segurança, a menina, sua avó e a assistente social foram assediadas por dois médicos (dentre os quais uma era mulher) dentro do hospital. Estes profissionais de saúde conseguiram entrar no quarto da menina e lhe descreveram o procedimento de aborto em termos acusatórios.
Apesar desta série de obstáculos, do vazamento criminoso de informações confidenciais e do espetáculo de terror promovido por grupos antiaborto em frente e dentro do hospital, a gravidez foi interrompida sem complicações e, em 19 de agosto, e a menina voltou para seu estado de origem. Enquanto ela estava no Recife, o Judiciário local concluiu que a família não estaria segura em São Mateus. Portanto, a menina e seus familiares foram incluídos em no programa de proteção a vítimas Provita.
Todo este imbroglio significa que, em pleno 2020, foi necessária uma operação política e logística muito complexa e cara para garantir a implementação de uma lei de aborto vigente há oitenta anos. Mais dramático ainda, as vidas da menina e de sua família continuam em perigo tendo sido radicalmente alteradas, simplesmente porque seus direitos fundamentais à dignidade pessoal e à integridade física foram respeitados.
Uma reviravolta política inesperada?
Este caso diz muito sobre os enormes obstáculos que mulheres e meninas brasileiras enfrentam no acesso ao aborto em casos de estupro. Embora este acesso tenha sido sempre complicado, as barreiras institucionais e políticas aumentaram desde o ano passado, pois a posição oficial do governo Bolsonaro é de repudiar e proibir draconianamente o aborto, independentemente da lei existente ou das circunstâncias. Entretanto, o caso também pode ser lido como uma história de sucesso e pode mesmo significar um novo ponto de inflexão na longa e sinuosa tluta pelo direito ao aborto no Brasil.
Como mencionado acima, apesar das barreiras e ameaças, os direitos e a saúde da menina foram respeitados e protegidos. Estes resultados positivos não teriam sido possíveis se as autoridades judiciais e de saúde pública locais no Espírito Santo e em Pernambuco não tivessem respondido imediata e impecavelmente, seguindo estritamente a lei e resistindo à pressão de todos os lados. Não menos importante, os vários passos judiciais e políticos através dos quais o caso foi processado foram acompanhados de perto por feministas e por uma ampla gama de defensores dos direitos ao aborto, especialmente profissionais de direito e de saúde. Com a evolução do caso, outras instituições públicas, e, mais particularmente, a sociedade em geral, também responderam positivamente.
Desde o dia 10 de agosto, feministas e outros atores pró-aborto se engajaram, com sucesso, na mobilização digital em torno ao caso. Imediatamente, o coletivo feminista Sangria Coletiva lançou uma petição no Change.org, pedindo que os direitos da menina fossem respeitados. Esta ação viralizou rápidamente, coletando 680.000 assinaturas em poucos dias. No domingo, 16 de agosto, o vazamento de dados confidenciais foi amplamente repudiado e, imediatamente, foi lançada uma campanha digital que derrubou as redes sociais de Sara Winter. Posteriormente, a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santos entrou com uma ação judicial e, como resultado, todas as plataformas digitais foram solicitadas a apagar as informações pessoais sobre a menina, sua família e os documentos judiciais e médicos relacionados com o caso. Essa ação também demanda uma compensação financeira pela quebra de sigilo, para ser investida no fundo local para a proteção dos direitos das crianças.
A nível da imprensa, a cobertura do caso pelos principais meios de comunicação foi muito favorável. De acordo com uma pesquisa em conjunto entre Cfemea e SPW, 339 artigos e editoriais relacionados ao caso foram publicados entre 10 e 23 de agosto. Aproximadamente 50% dos textos eram “favoráveis” ao direito de aborto da menina (162) e a maioria destes foi publicada pela grande mídia. Outros 143 escritos foram clasificados como neutros ou informativos/descritivos. Apenas 18 se opuseram aos direitos da garota e criticaram o resultado final do caso. Já nas redes sociais, principais influenciadores digitais se manifestaram publicamente a favor do direito da menina de interromper sua gravidez, oferecendo apoio financeiro para sua futura educação e cuidados psicológicos. Até 17 de agosto, uma frente ampla pelo direito da menina de interromper sua gravidez havia surgido, em apoio às autoridades judiciais locais e ao diretor e funcionários da CISAM. Essa grente também repudiou com firmeza os taques de grupos antiaborto, assim como opiniões oficiais, como a declaração da Ministra Damares de que o aborto realozado deveria ser lamentado. Análise do assunto nas redes sociais na segunda-feira, dia 17, informam que o campo antiaborto estava perdendo no Twitter por dez comentários contra um.
A escala dessa visibilidade e resposta positiva pode ser comparada à ampla mobilização digital e social que ocorreu há dois anos, quando a Suprema Corte brasileira organizou uma audiência pública para julgar a ADPF 442, ação judicial que propunha a descriminalização do aborto. Entretanto, deve-se observar que o ambiente político com relação ao tema se deteriorou muito desde então. Por outro lado, embora isso exija um exame mais aprofundado, o coro de vozes que agora se pronunciou a favor do respeito à lei, repudiando os espetáculos de terror criados pelas forças anti-aborto, é muito mais diversificado em termos sociais, regionais e até mesmo religiosos.
Ainda assim, a saga continua
Como as forças antiaborto são implacáveis, o retorno da menina ao seu estado natal não seria o fim da história. Como mencionado acima, as autoridades legislativas e judiciais locais e o pessoal médico do CISAM, que não cometeram nenhum ato criminoso, se tornaram o alvo de ataques. sendo denunciados ao comitê de supervisão judicial nacional e ao órgão regulador médico de Pernambuco. E, em seguida, o Ministério da Saúde emitiu a Portaria nº 2.882 sobre a Justificação e Autorização de Procedimentos para a Término da Gravidez Permitida por Lei no dia 29 de agosto. O instrumento cancelou a Portaria de 2005 que regulamenta o Protocolo do Ministério da Saúde que orienta os serviços de aborto legal, exigindo que os médicos notifiquem, obrigatoriamente, a autoridade policial nos casos de estupro atendidos por serviços de aborto legal, abolindo assim a presunção de veracidade do testemunho da mulher e também requer que seja oferecido a visualização de exames de ultrassom a mulheres e meninas para ver os embriões.
Essa portaria não é apenas um dispositivo regulador, é uma arma apontada pelo Executivo Federal contra o direito das mulheres e meninas de interromper a gravidez resultante de estupro. Suas regras sujeitam vítimas e profissionais de saúde a restrições inaceitáveis, criando obstáculos adicionais aos serviços de aborto, que já são precários e limitados. Como a Dra. Helena Paro (que coordena um serviço de aborto legal em Minas Gerais) disse ao O Globo, as novas regras podem transformar as clínicas em delegacias de polícia. Além disso, três outros especialistas obstetras/ginecologistas criticaram severamente a Portaria em artigo publicado na Folha de São Paulo no dia 6 de setembro, argumentando que a regra, que obriga as mulheres, embora com seu consentimento, a visualizarem o embrião, é pura crueldade.
Os opositores ao aborto há muito levantam barreiras e restrições regulamentares similares para restringir ainda mais o acesso – muito limitado – concedido pelo Código Penal de 1940. Quase 50 anos mais tarde, surgiram fortes controvérsias sobre a obrigatoriedade de denúncia policial quando foi estabelecido o primeiro serviço de aborto legal em São Paulo (1989). Dez anos depois, assim que foi aprovado a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, esta foi brutalmente atacada por não incluir a notificação obrigatória às autoridades policiais. Pressões equivalentes aconteceram quando a Norma Técnica foi revista em 2005, como bem descreve Maria José Araújo em entrevista para o jornal Folha de Pernambuco. Em 2013, quando a Lei 12.845 (que regulamenta os serviços de aborto legal) foi aprovada, o deputado Eduardo Cunha, hoje preso por corrupção, introduziu uma proposição para emendá-la de modo a garantir a notificação obrigatória dos crimes e proibir os profissionais de saúde de informar publicamente as vítimas sobre a existência de serviços de aborto legal. Em março de 2020, a líder do grupo antiaborto no Congresso apresentou um projeto de lei com o objetivo de revogar o Protocolo Técnico de 1999 e a Portaria de 2005 que o regulamenta, que é exatamente o que a Portaria 2.882 conseguiu com um simples golpe de caneta.
Desta vez, no entanto, a reação foi forte e imediata. A imprensa e as redes sociais gritaram ruidosamente contra esta medida. Em menos de três dias, dois manifestos foram enviados ao Congresso e ao Poder Executivo repudiando a Portaria. Uma foi assinada por mais de dois mil profissionais de saúde e a outra por aproximadamente seiscentas organizações da sociedade civil representando setores muito diversos da sociedade brasileira. Na quarta-feira, 2 de setembro, uma petição judicial foi apresentada ao STF Corte, questionando a constitucionalidade da Portaria Nº 2.882 assinada por todos os partidos políticos à esquerda do espectro político (PCdoB, PDT, PSB, PSOL e PT). A liminar aí incluída que pede revogação imediata da Portaria, continua aguradando a decisão do STF.
Membros dessas siglas também apresentaram cinco Projetos de Decreto Legislativo com o objetivo de suspender a Portaria. Além disso, os parlamentares do PSOL apresentaram uma comunicação formal aos Relatores Especiais da ONU sobre as violações implícitas no regulamento. Enquanto isso acontecia, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados também saiu para criticar publicamente a Portaria e a declarou inconstitucional.
Esta forte reação das vozes progressistas e liberais do sistema político contra o movimento autoritário do Executivo restringindo o acesso ao aborto é mais que bem-vinda. Nos últimos 15 anos, as e os parlamentares brasileiras/os, incluindo os que se situam à esquerda do espectro político, se tornaram cada vez mais relutantes em apoiar o direito ao aborto. Esta tendência explica, em parte os ganhos constantes conquistados, desde então, pelo campo antiaborto.
Mesmo agora, é preciso dizer, a reação imediata do Congresso ao caso da menina do Espírito Santo foi decepcionante, contrastando com a reação da sociedade. Segundo a Gênero e Número, mais da metade das 22 proposições legislativas apresentadas em resposta ao caso foram iniciadas por representantes de extrema-direita ou centro-direita. A grande maioria deles dedica-se a ampliar a punição criminal dos estupradores, incluindo três disposições que propõem a castração química (uma agenda política sistematicamente apoiada pela base política de Bolsonaro). Nenhuma disposição foi proposta para abordar a prevenção da violência sexual ou a proteção e expansão dos direitos e serviços de aborto existentes.
Contudo, uma semana mias tarde, viu-se uma mudança abrupta, em resposta à Portaria Nº 2.88. Esse pode ser um sinal de revitalização política de poscionamentos pró direito ao aborto, ou pelo menos da defesa firme do que já está consagrado na lei. Tal defesa está longe de ser irrelevante. Como analisei dez anos atrás, o objetivo das forças abortivas brasileiras (agora solidamente estabelecidas no Executivo Federal) é abolir completamente o direito ao aborto. Em outras palavras, fazer do Brasil um país como El Salvador e Nicarágua.
Finalmente, o momento político em que este amplo repúdio à agenda proibicionista de Bolsonaro sobre o aborto ocorreu não era trivial, pois a reação coincidiu com o resultado de uma pesquisa de opinião mostrando que, apesar da morte de 120.000 brasileiros por efeito da COVID-19, a aprovação de Bolsonaro atingiu seu segundo maior nível desde sua inauguração em janeiro de 2019. Esta coincidência é intrigante. Só o tempo dirá exatamente o que pode significar.
Imagens: An informal step, Antoni Tapiès; Anderson Nascimento, Agência Pixel Press, Estadão Conteúdo; Body/water/combat, Eugenia Matricardi.