Por Sonia Corrêa e Lena Lavinas*
Na semana passada, uma menina de 10 anos de São Mateus, Espírito Santo, grávida de estupro, mobilizou a comoção e a solidariedade da sociedade brasileira. Seus direitos reprodutivos foram respeitados, apesar do show de horrores montado por grupos opositores do direito ao aborto, para impedir o procedimento. Fazer com que uma lei velha, de 80 anos, se cumprisse, demandou que a menina fosse levada a Pernambuco. Ela e sua família continuam sob risco de assédio e precisaram ser incluídas num programa de proteção a vítimas.
Apesar do resultado positivo, a cena foi tenebrosa. Não bastasse isso, no dia 27/08 o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.282 sobre Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei pelo SUS. Ela revoga a Portaria nº 1508 de 2005, de regulação desses serviços, tornando obrigatória a notificação à autoridade policial do casos de estupro atendidos. Está abolida a presunção de veracidade da palavra da mulher em que se baseavam as regras anteriores. O instrumento também preconiza oferecer, às mulheres que optam pela interrupção da gestação, técnicas de visualização do embrião e adiciona exigências consideradas excessivas ou desnecessárias, por especialistas. Na justificação de motivos são citadas leis referentes à violência sexual. Omite-se, contudo, a Lei 12.845/2013 que regula os serviços de aborto legal no país. Em matéria televisiva que foi ao ar no dia 28/08/2020, o Ministério da Saúde explicou que as alterações propostas estão baseadas num vetusto decreto de 1940.
A Portaria nº 2.282 não é mero dispositivo regulatório. É, de fato, arma política apontada pelo Executivo Federal, cujas posições são mais que conhecidas, radicalmente contrárias ao aborto e contra o direito das mulheres e meninas de interromper gestações resultantes de estupro. Suas regras as sujeitam, e aos profissionais de saúde, a constrangimentos inaceitáveis e dificultam o funcionamento desses serviços, já precários e em número muito reduzido. Como bem sugeriu a Dra. Helena Paro em entrevista ao GLOBO, a portaria converte, potencialmente, os espaços do cuidado em saúde em delegacias de polícia.
Essas barreiras e constrangimentos têm sido brandidos por opositores e opositoras do direito ao aborto há muito tempo. No país, a autonomia reprodutiva é restringida não apenas pelo Código Penal, mas também por dispositivos burocráticos, cujo debate escapa ao escrutínio público. Controvérsias em torno da necessidade do boletim de ocorrência já aconteceram, em 1989, quando foi criado o primeiro serviço de aborto legal, em São Paulo. Dez anos mais tarde, a primeira Norma Técnica do Ministério da Saúde para Atenção a Vítimas de Violência Sexual, tão logo aprovada, foi atacada por não incluir uma regra de notificação compulsória à autoridade policial. Em 2013, em resposta a Lei 12.845, acima mencionada, o ex-deputado Eduardo Cunha apresentou o PL 5.069/2013 exigindo o boletim de ocorrência e impondo mais restrições aos serviços de aborto legal.
Dois anos mais tarde, quando eleito presidente da Câmara, Cunha promoveu a tramitação acelerada do projeto. Sua aprovação foi contida pela Primavera Feminista de novembro de 2015. Uma vez mais, o repúdio da sociedade a restrições e constrangimentos ao aborto no caso de estupro foi flagrante, na semana que passou e nas últimas horas, após a publicação desta portaria, amplamente contestada. É, portanto, legítima e urgente sua revogação.
*Sonia Corrêa, pesquisadora e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política e Lena Lavinas, professora titular do Instituto de Economia da UFRJ
Este artigo foi originalmente publicado em O GLOBO em 29 de agosto de 2020. Acesse o post original aqui.