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Entrevista Bárbara Sepúlveda: estallido chileno

A atuação de uma rede de advogadas feministas chilenas

 

Conte-nos mais sobre a ABOFEM?

Bárbara: A ABOFEM tem uma espécie de pluralismo político de esquerda. Há um ambiente de convivência que não se reproduz, por exemplo, no campo partidário. E há também as independentes. Entre nós foi gerada uma cumplicidade e também uma sororidade feminista que nos permite dialogar sem enfrentamentos. O espaço que criamos era muito necessário, porque no Chile o Colégio de Advogados é altamente conservador, controlado por homens. Até a última eleição, a maioria dos conselheiros eram homens, idosos, milionários e que defendem estes interesses, sem representação feminina para as novas gerações.

Quando criamos ABOFEM, em 2018, éramos 3 mulheres, hoje somos mais de 400. Até então não havíamos nos dado conta da necessidade de um espaço onde poderíamos dialogar, disputar a ideia hegemônica androcêntrica do direito e pensar o direito em termos feministas. No Chile, isso era algo feito de forma isolada, com algumas acadêmicas e litigantes, todas dispersas. Esse espaço nos integrou. Temos discussões políticas, votamos, temos ABOFEM em todas as regiões, discutindo diversos temas, como família, infância, direito penal, direitos humanos.

Implementamos sistemas de votação e participação on line para abarcar advogadas que não podem comparecer às reuniões por causa do trabalho ou das tarefas domésticas. É um desafio, para o nosso feminismo também, enfrentar a dupla jornada das mulheres, porque no Chile não há corresponsabilidade entre homens e mulheres com as tarefas domésticas.

Como as mulheres se integram à ABOFEM?

Bárbara: Normalmente nos contactam por redes sociais. Pedimos que subscrevam uma carta de compromisso e assistam a uma reunião aonde nos apresentamos e aí reafirmam o interesse em participar.

Somos uma associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica.  Agora vamos ter uma sede, um pequeno apartamento. Será importante porque fazemos assessoria jurídica a mulheres e pessoas LGBTI. Não assessoramos a homens cis, mas, por causa do estallido, pegamos algumas causas dos que foram violentados sexualmente. Assessoramos gratuitamente e para isso normalmente outras organizações nos emprestavam espaços. Nos últimos tempos, aumentou muito a procura. O Estallido e Lastesis geraram um efeito catártico nas mulheres. Muitas se deram conta de toda a violência que haviam sofrido, ou sempre souberam e não fizeram nada. Às vezes nos procuram apenas para falar do que aconteceu e ter apoio, mesmo que já tenha prescrito. Precisávamos de um espaço mais reservado para estes atendimentos.

Como tem sido o desafio de assessorá-las?

Bárbara: Lidamos com histórias cada vez mais dolorosas e complexas. Quando um policial viola sexualmente, há muitos delitos envolvidos: abuso de poder, delito sexual, tortura. Conhecíamos casos isolados de manifestações, principalmente no sul, com as indígenas mapuche. Mas em Santiago a quantidade é enorme. Então, o efeito psicológico é tanto para as mulheres violadas quanto para as advogadas. Por isso tivemos de nos conectar a uma rede de psicólogas feministas, e passamos a intervir com uma dupla psico-jurídica. Fazem tratamento para as mulheres violentadas e também para as advogadas.

Associamo-nos também a outros advogados de direitos humanos, com a Universidade de Chile, para encaminhar causas, assessorar, ir às delegacias atrás de quem está detido. Temos recurso de proteção contra os carabineiros, porque não nos queriam dar informações. Começaram a operar com uma inteligência do tipo da ditadura, apagando registros e silenciando.

Como tem sido a relação da ABOFEM com a sociedade civil, o Congresso, os órgãos de justiça?

Bárbara: A imprensa confia muito em nós, somos constantemente consultadas. O Congresso também, nos convidam quando se trata de projetos sobre mulheres, gênero, violência, sexualidade. Inclusive, fomos chamadas para a acusação constitucional contra o presidente Piñera.

Temos levantado o problema publicamente. Por exemplo: achamos curioso como a Defensoria da Infância do Chile começou a divulgar informativos sobre crianças vulnerabilizadas em seus direitos pelo Estado: apareciam crianças detidas, golpeadas, feridas, torturadas. Aonde estavam as violentadas sexualmente que sabíamos que existia? Comunicamos à Defensoria da Infância. Não apareceu no informativo. Por que? Nós queremos expor o tema da violência sexual estatal no Chile, da violência sexual policial. Houve a notícia de dois homens heterossexuais violados, mas centenas de mulheres, não. Tivemos que ir várias vezes ao Congresso comunicar. Há uma responsabilidade estatal, e do governo em particular, que permite que isso aconteça. É uma violência específica. A Ministra da Mulher ficou em silêncio. Por quê uma organização civil tem que assumir o trabalho do Estado, quando há um Ministério da Mulher, com todas as atribuições legais para fazer a representação judicial, para defender as mulheres em tribunais? Evidentemente, é uma decisão política da ministra, que não tem respaldo nem legitimidade. Tem sido um ministério muito irresponsável em respeito aos programas implementados anteriormente.

No governo Bachelet?

Bárbara: Bachelet criou o Plano Nacional contra a Violência. Sob Piñera, no entanto, foram reduzindo os recursos para a prevenção e intervenção locais. É necessário atuar nas populações onde a violência está cristalizada, levando em conta questões de classe e raça. Intervir com gente preparada, capacitar. Bachelet fez isso. Mas, sob a atual ministra da Mulher, foram todos despedidos. Agora lamentam que os feminicídios seguem aumentando. A resposta é óbvia: se não há prevenção, não há educação e nem reabilitação da violência.

Há como identificar o agressor nos casos de violência sexual?

Bárbara: Sim, em muitos casos. Nós podemos peticionar contra quem resulta responsável, porque, nas queixas e denúncias levadas às delegacias, havia os carabineiros do turno, isto é, o responsável na instituição naquele momento. Mas não deixa de ser complexo porque os carabineiros, durante o Estallido, deixaram de usar suas identificações. Isso é completamente ilegal. Além dos delitos penais, também há delitos administrativos.

Há casos de aborto provocados por violência policial contra manifestantes?

Bárbara: Isto aconteceu em mobilizações de anos anteriores. O nível de violência é brutal. Além dos golpes e agressões, temos o gás lacrimogênio, que pode provocar aborto. Para as crianças é muito tóxico também. E os carabineiros lançam indiscriminadamente.

Além das mulheres, como a repressão atingiu outras minorias?

Bárbara: Temos um caso de uma jovem lésbica tratada como homem que foi obrigada a dormir no calabouço com homens. Uma ameaça direta à sua integridade física, sexual, psicológica. Há muita discriminação, homofobia, lesbofobia, transfobia. Um menino trans de 16 anos foi obrigado a tirar a roupa enquanto o chamavam pelo nome de registro. Ele ainda não havia feito sua mudança de sexo e de nome, e o chamavam todo o tempo pelo seu nome de mulher. São inúmeros os relatos de agressões, humilhações e insultos à população LGBT.

Há uma diferença entre a forma de atuar das carabineiras mulheres e dos homens?

Bárbara: Os carabineiros podem violar-te, e isso é diferente. As carabineiras também abusaram sexualmente, tocando nos genitais, nos seios. Mas os homens têm uma brutalidade muito maior, o que também não significa que não haja carabineiras terríveis.

A tortura psicológica é muito comum. Há tantos casos no país inteiro, repetem as mesmas técnicas. Há, evidentemente, aqueles que não o fazem. Mas há um aprendizado. Isso é muito mais preocupante. Que classe de educação recebem os policiais e os militares no Chile? As mesmas coisas da ditadura. Não aprendemos nada em 40 anos. Estas instituições seguem sendo as mesmas, com a mesma formação. O Estado do Chile se comprometeu a reeducar as forças policiais e militares em matéria de direitos humanos, mas na prática não aconteceu.

A militarização em si precisaria ser enfrentada, então…

Bárbara: Mais do que a desmilitarização, é preciso antes de tudo eliminar toda a referência à doutrina de segurança nacional contida na Constituição. É a forma militar que se aplicou em toda a região latinoamericana na operação Condor. O pensamento de que o povo é um potencial inimigo, um inimigo interno: o comunista, a feminista, os indígenas, a pobreza aparecem como alvos. Isso instalou-se juridicamente no Estado e tem que ser eliminado pela raiz.

Há mulheres presas?

Bárbara: Sim.

As mulheres, acostumadas a serem vulnerabilizadas, pensavam que o que era feito nas delegacias era parte do procedimento. Não, não te podem fazer desnudar, inspecionar vaginas etc. Temos que explicar o mais básico da integridade, da dignidade humana. O Estado chileno é tão repressivo, tão castigado do ponto de vista social, que as pessoas naturalizam essas condutas.

Outras organizações feministas também cumpriram o papel informativo e o de recolher relatos de violência.  Houve um momento que era tanta detenção que havia pessoas desaparecidas por dias. Não apareciam em nenhum registro, nem estavam nas delegacia. Quando havia toque de recolher, saíamos com um salvo conduto para ir às delegacias, como advogadas de direitos humanos, e tínhamos que ser autorizadas por razões profissionais. E assim podíamos sair a monitorar pelas noites, porque com o toque de recolher eles faziam o que queriam nas delegacias.

Como foi esta estória dos saques?

Bárbara: Há um discurso muito forte contra os saques. Muitos foram orquestrados. Houve um momento que a mobilização social era tão grande que o discurso do governo era de que tudo era vandalismo. As notícias reforçavam isso. Eu entrevistei pessoas detidas por saques e me contavam a mesma história, de situações que foram armadas. Quem dá a ordem aos carabineiros? Por que isso fazem com populações com elevados níveis de pobreza? Quando perguntava o que levaram do supermercado, a resposta não era televisão, mas fraldas, leite, coisas muito caras e necessárias. Abusam da situação de pobreza e de desabastecimento. Em muitas partes foram saques orquestrados, incentivados por falsas notícias, em outras não. Isso porque necessitavam ter pessoas detidas por roubo, para reforçar o discurso do governo de que era delinquência e não demanda ou protesto social.

O outro problema é que essas pessoas que roubaram foram à primeira audiência de controle de detenção e o ministério público pediu para todos prisão preventiva e medidas cautelares. Não tinha por quê. Enquanto por outro lado há violadores que não têm prisão preventiva. Um punitivismo muito duro contra a população para dar um sinal de que tudo vai ser muito castigado. Mas isso não dissuadiu a cidadania. Então, começaram a aplicar a Lei se Segurança Interna do Estado, uma lei para perseguir o inimigo político interno.

Estão operando como numa ditadura, a única diferença é que não houve um golpe de Estado. Mas o presidente é um déspota que está utilizando todas as ferramentas possíveis e, entre essas, técnicas ditatoriais.

Como vê a participação feminista neste processo das manifestações?

Bárbara: As organizações feministas são parte do Estallido desde o primeiro momento. Quando o protesto estava se diluindo um pouco, a intervenção de Lastesis revitalizou o movimento. Nesta segunda parte da mobilização as feministas temos tido um papel mais protagonista. Temos atuado, inclusive, com o pañuelo verde (campanha pelo aborto legal).

Como vê as instituições no futuro próximo?

Bárbara: O cenário mais provável da disputa política é se teremos ou não uma nova constituição. O governo Piñera parece ter acabado, apesar de ainda faltarem 2 anos. A força e a condução política hoje está no Congresso. O país se parlamentarizou de fato. O presidente não pesa. Hoje em dia são os líderes dos partidos de direita – os partidos do governo – que definem a pauta política para seus militantes.

Qual a perspectiva da uma nova Constituição?

Bárbara: Se ganhamos o processo da Constituinte, isso pode gerar um desdobramento político muito interessante, porque a dívida histórica dos governos que administraram o neoliberalismo no Chile é tão grande que me parece muito difícil que os direitos sociais não estejam garantidos pela nova constituição. Essa é uma das necessidades: o teto neoliberal da constituição tem que ser destruído. Ter uma nova constituição é a única forma de dar saída institucional democrática a este conflito.

Como a ABOFEM está se posicionando no processo da Constituinte?

Bárbara: Somos feministas a favor de criar uma nova constituição, não somente porque conhecemos muito bem a atual – somos advogadas – mas também porque vislumbramos como uma saída ao conflito que pode beneficiar a cidadania. Pequenas mudanças à Constituição não servirão.

Temos uma constituição blindada, não é comum no mundo, feita na ditadura, imposta a sangue e fogo, criada pelos ideólogos da ultra-direita conservadora. É preciso criar uma instância institucional de diálogo entre os políticos, as organizações sociais e a cidadania, que seja igualitária.

Nós queremos uma nova constituição no Chile, queremos incorporar os direitos das mulheres que não existem na constituição atual. Ela é androcêntrica, ditatorial, rígida, hierárquica, hiper-presidencialista, neoliberal. Neste sentido, acredito que é um erro não participar do processo.



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