por Sonia Corrêa
Acontece, entretanto, que a naturalização atual da morte cancela o pensamento crítico.
(Santiago Lopez Petit, “El coronavirus como declaración de guerra”, In: Sopa de Wuhan, 2020)
Na primeira semana de abril, a imprensa internacional informou que, para reduzir drasticamente a circulação de pessoas nas cidades, os governos do Panamá e do Peru haviam definido o critério sexo/gênero para estabelecer um rodízio de quem pode ou não sair de casa em cada dia semana. Com muita razão, e muito rapidamente, os efeitos deletérios dessa medida sobre as travestis e pessoas trans foram objeto de denúncia e análise e provocaram debates em conversações regionais de que participo.
Essas discussões me inspiraram a escrever essa breve nota para explicar de maneira mais ordenada, do que é possível fazer a partir das conversas sempre truncadas nos grupos de WhatsApp, porque considero essas medidas inaceitáveis e, portanto, devem ser analisadas criticamente por todas as pessoas e organizações envolvidas em lutas contra as ordens desiguais, hierárquicas e autoritárias de gênero e sexualidade.
Antes de compartilhar minhas ideias, quero lembrar que as escrevo não somente como feminista, mas também como brasileira. Ou seja, como alguém que está vivendo a crise da Covid-2019 tanto como pandemia quanto como pandemônio político, produzido por um dos quatro “presidentes” que negam a gravidade da crise, colocando a população de seus países em perigo (os outros três negacionistas são Daniel Ortega e os ditadores da Bielorrússia e do Turquemenistão). No Brasil, eu — assim como milhares de pessoas que não partilham dessa insanidade — temos defendido com unhas e dentes as medidas de isolamento social, num contexto, como outros, em que o governo não se preparou para crise. Faltam testes, leitos e respiradores e o prognóstico do que pode acontecer com a população mais pobre, que é a maioria, é tenebroso.
Reconheço a urgência das medidas sanitárias de isolamento social. Também penso que os estados devem atuar com muita amplitude e pulso, pois como diz a cientista social brasileira Angela Alonso, na epidemia de Covid-19 nenhum estado pode se dar mais ao luxo de ser neoliberal, pois é fundamental garantir o acesso à saúde, programas de proteção da renda e alimentação e também medidas de restrição que contenham a propagação do vírus. Contudo, isso não significa abdicar de reflexões críticas e necessárias sobre as muitas e profundas implicações da anormalidade e excepcionalidade que se instalou no planeta por efeito da pandemia.
A crise que vivemos é sanitária e econômica, mas é também política e biopolítica. Como se sabe, a Covid-19 dá aos vários regimes autoritários e autocráticos que existem no mundo justificativas para ampliar medidas arbitrárias e coercitivas, sendo disso um exemplo a “ordem para matar” quem desobedece a quarentena instalada por Duterte na Filipinas. Também traz à tona as tentações totalitárias que, como sempre nos lembram pensadoras e pensadores como Hannah Arendt e Michel Foucault, jazem subjacentes às formações democráticas. Essas tentações são certamente mais palpáveis e facilmente atiçáveis na América Latina, porque nossas democracias se veem combalidas hoje por processos mais ou menos intensos de erosão, sendo disso exemplo a conduta de Bukele em El Salvador.
Na sua outra face, a crise da COVID-19 reativa, atualiza e radicaliza aparatos do biopoder e da biopolítica, em termos do gerenciamento populacional de grande escala (como a contenção de aglomeração e circulação), mas também dos dispositivos disciplinares de vigilância do corpo social e dos corpos individuais. Nesse sentido, nunca é demais lembrar que sexo e gênero – como pivots que articulam os indivíduos à espécie – estão no cerne dos aparatos e dispositivos do biopoder e da biopolítica.
A decisão dos governos panamenho e peruano de restringir o direito de ir e vir das pessoas com base no critério de sexo/gênero deve ser, portanto, situada em relação a esse arco mais amplo de questões e riscos. Nesse sentido, não é nada trivial que um grande número de pessoas tenham sido detidas nesses dois países por desobedecer as regras da quarentena (aqui e aqui). É, portanto, fundamental perguntar, com muita seriedade, por que essas autoridades estatais escolheram esse critério de segregação da população para efeito de restrição da circulação e não outro?
Certamente haveria outras alternativas. Uma delas seria, por exemplo, recorrer aos últimos números de registros das carteiras de identidade, segregando pares e ímpares para cada dia da semana. Outra, mais facilmente compreendida pela maioria das pessoas, seria segregar pelos meses de nascimento: todas as pessoas nascidas entre janeiro e junho saem às segundas, quartas e sextas, enquanto as demais saem nos outros dias. Essas opções seriam muito mais adequadas porque são objetivas, não recorrem a categorias contaminadas por distorções vinculadas ao vasto repertório das construções sociais.
A meu ver, esses governos escolheram sexo/gênero como critério de segregação simplesmente porque é “assim que as coisas são”. Como sublinham, desde muito, as teóricas feministas, o dimorfismo sexual é um marcador milenar e constantemente reiterado de diferenciação social, dito de outro modo, é a “diferença natural” por excelência. Num raciocínio instrumental, típico da lógica estatal, usar sexo/gênero como critério facilita o trabalho de vigilância. Em tese, basta olhar para saber “quem é homem e quem é mulher” (o que dispensa, por exemplo, a consulta de documentos de identidade). Acontece, porém, que passadas árduas décadas de lutas pela justiça de gênero, justiça social e democracia sexual no mundo e na América Latina, as coisas já não são assim. Isso porque essa lutas gradualmente legitimaram o reconhecimento de que:
Temos um sexo designado, tratado de várias formas que projetam expectativas de como viver um gênero ou outro, e somos formadas/os em instituições que reproduzem as normas de gênero em nossas vidas. Logo, somos sempre “construídas/os” no sentido de que não escolhemos. E, mesmo assim, buscamos construir uma vida num mundo social em que as convenções estão mudando e em que lutamos para encontrar a nós mesmos nessa teia de convenções já existentes, mas também mutáveis. Isso sugere que sexo e gênero são “construídos” de um modo tal que nem são totalmente determinados nem totalmente escolhidos, mas, ao contrário, capturados numa permanente tensão entre determinismo e liberdade. (Judith Butler, 2019)[1]
Ao impor a regra de segregação com base em sexo/gênero, os governos do Panamá e do Peru reificam, inevitavelmente, o suposto determinismo biológico do dimorfismo sexual. De imediato, a medida coloca as pessoas não binárias num “não lugar” e em contextos de risco e vulnerabilidade, inclusive pois o poder de violência e coerção dos estados foi ampliado. Não sem razão, as primeiras contestações das medidas vieram do ativismo trans, pois tais ações facilitam e incitam o estigma e a violência contra travestis, mulheres e homens trans. As implicações deletérias da medida podem ser ilustradas pela experiência de Barbara Delgado no Panamá, relatada por Cristian Gonzáles Cabrera, que foi detida e humilhada pela polícia porque sua identidade social de gênero não correspondia ao registrado na carteira de identidade.
Essas denúncias devem ser ouvidas, valorizadas e respondidas pelas autoridades estatais e replicadas solidariamente por todes que pensamos e atuamos em gênero, sexualidade e direitos humanos. No caso do Peru, é preciso dizer, o presidente, ao anunciar as medidas de segregação, afirmou que esforços serão feitos para coibir a transfobia e homofobia. Esse compromisso, embora bem vindo, é insuficiente. Como bem sabem as pessoas não binárias que lidam, no seu dia a dia, com os agentes da ordem, esses princípios não são facilmente transportáveis das altas esferas da política para as ruas e comunidades marginalizadas, especialmente nas condições de exceção da pandemia.
Mas há mais a dizer. Além da facilitação e incitamento à estigmatização e violação dos direitos das pessoas não binárias, essas medidas de segregação contribuem para cristalizar a dita ordem natural de sexo/gênero, reativando as camadas culturais profundas em que se assentam a divisão sexual do trabalho e as desigualdades entre homens e mulheres. Para deixar mais claro esse argumento, imaginemos que sociedades profundamente marcadas pelo racismo estrutural – como o Brasil, a Colômbia, a África do Sul ou mesmo o Panamá – adotassem medidas de segregação por raça: as pessoas brancas saem num dia da semana, as negras nos dias subsequentes. Essa política seria um escândalo, não é mesmo? Entretanto, e lamentavelmente, em 2020, separar discricionariamente entre mulheres e homens no espaço público continua soando como natural e normal.
Isso não me parece nada normal. Especialmente no contexto da pandemia, quando o desequilíbrio da divisão sexual do trabalho na economia do cuidado se torna flagrante, a violência de gênero atinge níveis ainda mais elevados por efeitos quarentena e assistimos serviços de saúde reprodutiva e aborto sendo fechados. Se é assim, nós, feministas, devemos estar tão indignadas com as medidas quanto estão travestis, mulheres e homens trans.
Também penso que a reação virulenta do grupo antigênero peruano ConMisHijosNoteMetas ao compromisso do presidente com uma pauta de não discriminação das pessoas trans e homossexuais não deveria nos confundir, pois suspeito que repudiam a fala presidencial mas apreciam a lógica da segregação. Sua reação tampouco justifica, ao meu ver, a defesa cega das medidas de segregação. Como disse a uma companheira peruana, essas são situações árduas em que nosso pensar e agir se move no fio da navalha. É preciso reconhecer o mérito da fala presidencial, contestar a argumentação das forças antigênero e criticar severamente as medidas de segregação por sexo/gênero.
Sei bem que, em tempos de Covid-19, não é tarefa banal articular e vocalizar essa crítica. Entre outras razões, porque a semântica do biopoder e da biopolítica, ora dominante, também ativa o higienismo inscrito nos nossos modos de ver e de pensar. Também fomos capturades pelo argumento “definitivo” de que as medidas de contenção e isolamento devem ter primazia absoluta. Esse “higienismo subjetivo” é o que explica, talvez, porque algumas semanas atrás o vídeo em que o presidente de El Salvador Bukele falava das medidas draconianas que havia tomado “na guerra contra a covid-19” foi amplamente compartilhado e elogiado nos circuitos digitais progressistas latino-americanos. Sobretudo, como estamos vendo, em tempos de epidemia, o medo da morte se converte em instrumento de pedagogia social e, como sugere Lopez Petit na epígrafe aqui incluída, esse medo cancela o pensamento crítico. Escrevi essa nota porque estou convencida que é vital manter o pensamento crítico vivo na travessia dessa crise, inclusive para poder imaginar o mundo e a vida pós pandemia.
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[1] Ver Precisamos parar o ataque a ideologia de gênero.
Imagem: El Comércio Peru, Twitter y Wayka.