No Brasil, em meio à epidemia de covid-19, o Hospital Pérola Byington suspendeu o serviço de aborto legal, referência no país para atenção às mulheres vítimas de violência sexual. A Revista AzMina noticiou o fato no dia 26 de março quando, ao fazer uma ligação para pedir informações, foi informada do fechamento. Trata-se de uma medida absurda, quando se sabe que a maioria dos estupros é praticada por homem próximo ou da própria família e que o número de denúncias de violência doméstica vem experimentando aumento durante o isolamento social. Por outro lado, é preciso lembrar que, há alguns meses, grupos religiosos que se opõem ao direito ao aborto, fizeram uma vigília na porta do hospital, sobre a qual Alex Kalil escreveu para o SPW.
O fechamento do serviço foi alvo de amplo repúdio. A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto emitiu uma nota em que critica a medida ao mesmo tempo que apoia os esforços de contenção da covid-19. A OAB São Paulo, por meio de várias de suas Comissões, também emitiu nota técnica questionando a medida. A Regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União em São Paulo (DPU/SP) colocou-se à disposição para atender os casos de mulheres que não estivessem conseguindo atendimento, demandando à Secretaria Estadual de Saúde a oferta de alternativas e a reabertura do serviço. O Coletivo de Advogados pelos Direitos Humanos (CADHu) também mobilizou uma ação judicial contra a suspensão do serviço. A filial brasileira da rede global Doctors for Choice (Rede médica pelo direito de decidir, em português), em sua crítica, defendeu o direito ao aborto previsto em lei como um “cuidado essencial para a saúde das mulheres”, especialmente no contexto da COVID.
Respondendo às pressões, o hospital veio a publico informar que ajustes estavam sendo feitos para garantir a resposta à covid-19, e que o serviço seria retomado. No dia 30 de março, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo informaram que o serviço havia sido reaberto.
Impacto mais amplo da pandemia sobre a saúde e os direitos reprodutivos
Outros impactos negativos sobre a saúde e os direitos reprodutivos têm sido registrados no país. Circulam nas redes sociais feministas relatos sobre cancelamento de exames pré-natal. Em São Paulo, os leitos obstétricos das Unidades Básicas de Saúde (UBS) estariam sendo reservados para pacientes com covid-19 e há sinais de que a cesárea eletiva tem sido privilegiada em detrimento do parto normal, para agilizar a liberação de leitos. Em Curitiba, as maternidades de referência em parto humanizado Victor Ferreira do Amaral e Bairro Novo foram fechadas e as gestantes estão sendo direcionadas para hospitais gerais, o que as expõe a maior risco de infecção. Pressionada pela Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO), a Defensoria Pública do Paraná interrogou a Secretaria do Estado de Saúde sobre as razões do fechamento. Nos dias 31 de marco e 1º de abril, funcionárias da maternidade Bairro Novo protestaram em frente à unidade (foto).
Direito ao aborto ameaçado globalmente
Nos EUA, onde o ataque contra o direito ao aborto se intensificou na era Trump, os estados de Ohio, Texas, Mississipi, Iowa, Kentucky, Oklahoma e Alabama decretaram a suspensão dos serviços de aborto. As decisões foram questionadas judicialmente, mas a Corte de Apelação manteve a decisão do governador do Texas. Por outro lado, há ampla pressão da sociedade civil, de organizações médicas, do jornal New York Times — que publicou um editorial favorável — e de procuradores de vinte e um estados para que o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) aprove o método de telemedicina para aborto.
Na Irlanda do Norte, a instauração do protocolo que proíbe viagens ‘não essenciais’ à União Europeia impede o acesso ao aborto às suas cidadãs, que costumam viajar à Inglaterra para o procedimento. Na França, vários serviços de planejamento familiar fecharam por falta de equipamentos de proteção e não é possível realizar o aborto em casa com facilidade, pois os medicamentos só são disponibilizados nos serviços de saúde. Na Itália, um epicentro da COVID, o número de serviço de aborto se reduziu drasticamente por pressão de grupos conservadores e, nesse momento, é quase impossível ter acesso ao procedimento, pois os serviços estão inativos e exige-se receita médica para comprar os medicamentos. O mesmo acontece na Índia (leia a respeito na Campanha Internacional).
Ao observar que a saúde sexual e reprodutiva tem sido minimizada frente à epidemia, o movimento internacional pelo direito ao aborto apontou o acesso amplo ao aborto farmacológico e a regulamentação da telemedicina como formas de garantir o direito à saúde. A Campanha Internacional Pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro (ICWRSA) lançou uma chamada internacional à ação que clama por uma agenda racional que garanta o direito das mulheres frente ao atual estado de emergência. Na carta endereçada a todas as pessoas que engravidam, órgãos das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde, governos e profissionais da saúde, a Campanha recomenda que o direito ao aborto seja visto como uma prioridade de saúde pública e, como tal, garantido, especialmente por meio da oferta do aborto farmacológico através da telemedicina.
Mas há também boas notícias: o acesso ao aborto foi facilitado no Reino Unido, Irlanda, Argentina e Colômbia. O Reino Unido emitiu a nova norma – que havia sido revogada quando primeiro publicada no dia 24 – que estabelece a possibilidade de uma consulta remota para conseguir a combinação de medicamentos para o procedimento ser realizado completamente em casa. Na Irlanda, por pressão do movimento feminista, o ministro da saúde anunciou, no dia 27 de março, que vai revisar a norma que impede consultas online sobre interrupção da gravidez. Na Argentina, a Diretoria Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva declarou que o acesso ao aborto e a contraceptivos é prioritário mesmo durante a epidemia e tem feito esforços para que não haja obstáculos aos serviços. A Coordenadoria de Saúde Sexual e Reprodutiva da província de Buenos Aires publicou um manual destinado a diretores de hospitais e centros de saúde para garantir que as demandas pelo aborto legal e prevenção do HIV e ISTs sejam atendidas com rapidez (leia em Página 12). Na Colômbia, a ONG Oriéntame, centro especializado em serviços de aborto, inaugurou um serviço de atendimento remoto através de consultas por telefone e WhatsApp para que o procedimento com medicamentos seja realizado em casa, dentro dos parâmetros legais.