por Isabela Kalil
Nossas pesquisas apontam que uma das características do “bolsonarismo” não é ser “antidireitos”, e sim apresentar uma noção seletiva de direitos.
Recentemente, participei de um evento chamado As Origens do Bolsonarismo, título do livro que será lançado no próximo ano com pesquisas etnográficas realizadas com eleitores que votaram no presidente Jair Bolsonaro. Os entrevistados apontaram diferentes datas para o início desse processo. Alguns fizeram referência ao ano de 2013, em razão das manifestações de junho. Outros citaram o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula ou a Operação Lava Jato. Embora a pesquisa que coordeno se baseie na observação e na análise de protestos e manifestações de rua, nosso marco temporal data de 2010. Mais precisamente, das reações em torno da terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado entre 2009 e 2010.
Ainda que as reações contrárias ao PNDH-3 não tenham ganhado as ruas, os desdobramentos das manifestações que se seguem ao longo da década de 2010 fazem referência a seus temas. Entre esses temas, como aponta o sociólogo Sérgio Adorno no artigo “História e desventura: o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos”, as versões anteriores do PNDH (em 1996 e 2002) já propunham mudanças como a transferência da competência da Justiça Militar para a Justiça Comum para julgar policiais militares, a tipificação do crime de tortura e a criminalização do porte ilegal de armas. Ou ainda direitos de livre orientação sexual e identidade de gênero e o combate à violência doméstica. Ainda de acordo com Adorno, pela primeira vez o Estado brasileiro reconhece a existência do racismo e aponta iniciativas para políticas compensatórias. Em continuidade às versões anteriores, o PNDH-3 amplia seu escopo e propõe a criação da Comissão Nacional da Verdade, a descriminalização do aborto, o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, maior regulação da mídia e impõe limites para a presença religiosa no Estado.
Mesmo nas manifestações de 2013, ao ouvir diferentes atores sociais naquele contexto, já era possível identificar reações aos desdobramentos do PNDH-3 que, ao longo dos anos, se materializaram em pautas hoje já bem conhecidas, como posições contrárias à laicidade do Estado; ampliação da posse e do porte de armas; posições antigênero; contra a diversidade de orientação sexual; contra a discussão de temas ligados à sexualidade nas escolas; contra a ampliação do acesso ao ensino superior por parte de jovens negros, pobres, indígenas ou mesmo egressos de escola pública; defesa de intervenção militar; entre outras pautas. O ano de 2010 também marcou o início da ruptura da base religiosa com os governos do Partido dos Trabalhadores. E é nessa época e nesse contexto que Jair Bolsonaro ganha visibilidade, em especial depois de se referir a materiais de um programa do governo federal como “kit gay”. A acusação foi um dos motes de sua campanha eleitoral de 2018.
No entanto, ainda que os grupos conservadores e bolsonaristas tenham posições contrárias ao PNDH-3, eles não se apresentam como “antidireitos”, segundo a pesquisa. Mesmo defendendo posturas de violações aos direitos humanos, sua retórica se vale de uma suposta posição de defesa de direitos dentro de uma moldura democrática. O núcleo do bolsonarismo acusa as proposições do PNDH-3 de serem “autoritárias” e reivindica para si a posição de defesa da democracia. Em inúmeras entrevistas feitas com grupos que defendem a intervenção militar em São Paulo — e que apoiam a agenda cultural do bolsonarismo —, o argumento principal era o de que a falta de “alternância de poder” com a sucessão de governos petistas seria antidemocrática e a justificativa para a entrada de um regime militar seria restituir a suposta democracia perdida.
“Nossas pesquisas apontam que uma das características do ‘bolsonarismo’ — e tão importante quanto entender seu início é buscar definir esse fenômeno — não é ser ‘antidireitos’, e sim apresentar uma noção seletiva de direitos”
Bolsonaristas não são contra direitos no absoluto, mas defendem uma noção parcial de direitos e de Justiça, sendo contrários a sua universalização. Tal seletividade está relacionada a uma noção muito específica de “pessoa” — nos termos do antropólogo Marcel Mauss —, tendo como referência a noção de “cidadão de bem”. Essa noção está fundamentada na ideia de que seria preciso “merecer” os direitos ou o acesso à Justiça. Em outras palavras, apenas uma pessoa “correta” seria merecedora de direitos. Isso não é algo inédito na sociedade brasileira e se expressa inclusive na expressão “direitos humanos (apenas) para humanos direitos”, muito usada entre os eleitores conservadores. O que há de novo é que, pela primeira vez na história recente do Brasil, a máxima se tornou paradigma de governo.
Isabela Kalil é pesquisadora, antropóloga e cientista política e é professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Fonte: Revista Época