Conferência Internacional de Desenvolvimento e População +25
Balanço feito pela International Campaign for Women’s Rights to Safe Abortion
Nairobi, Quênia, 12 a 14 de novembro de 2019
Na primeira versão deste relatório que o SPW circulou ontem, o Brasil não constava como um dos países que assinaram a declaração conjunta liderada pelos EUA e apoiada pela Bielorrússia, Egito, Haiti, Hungria, Líbia, Senegal, Santa Lúcia e Uganda em rejeição à princípios da CIPD + 25. No entanto, é muito importante destacar a participação do Brasil, principalmente para o público nacional e latino-americano, onde as diretrizes da política externa brasileira têm reflexos mais contundentes.
Adendo: a posição brasileira em Nairóbi
É preciso dizer que que a condenação do aborto foi um ponto forte da posição brasileira em Nairobi. O pronunciamento do embaixador brasileiro omitiu as referências a gênero e a direitos humanos e repudiou o aborto, reiterando a defesa o “direito à vida desde a concepção”, posição essa que não é consistente com o texto constitucional. O Brasil também assinou a declaração liderada pelos EUA e apoiada por Bielorússia, Egito, Haiti, Hungria, Polônia, Santa Lúcia, Senegal e Uganda que ataca o direito ao aborto assim como os conceitos de direitos sexuais e reprodutivos e programas de educação sexual integral. As organizações que compuseram a delegação brasileira da sociedade civil (e outras apoiadoras) fizeram uma declaração pública que critica, de maneira contundente, esses posicionamentos. O documento assinado por 170 organizações e instituições, entre outras considerações, observa que:
… na Cúpula de Nairóbi CIPD 25, o atual governo brasileiro, reafirmou uma vez mais, que defende a vida desde a concepção….Esta afirmação não reflete a definição estabelecida na Constituição Federal promulgada em 1988 e reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal em dois julgamentos subsequentes, a saber, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510 (2008) e a Arguição Direta de Preceito Fundamental 54 (2012)…É, sobretudo, lamentável que, adicionalmente, o documento não faça nenhuma referência a políticas de gênero ou mesmo de igualdade de gênero, cabendo aqui sublinhar a recente intimação feita pelo Supremo Tribunal Federal ao Ministério das Relações Exteriores, no sentido de tornar transparentes documentos e diretrizes de políticas relativas a gênero, direitos das mulheres e das pessoas LGBT adotadas pelo Poder Executivo.
Do que se tratou a conferência: uma breve história
A CIPD é realizada a cada cinco anos, tendo seu início em 1994. Em cada reunião de acompanhamento, o objetivo global foi medir o progresso (e a falta dele) na execução do Programa de Ação de 1994, que foi aprovado por aclamação pelos representantes de 179 países, assim como as ações de acompanhamento acrescentadas em conferências subsequentes. Um excelente resumo dos objetivos, metas e história da conferência pode ser encontrado aqui (em inglês) e uma edição especial de vinte anos do Programa de Ação pode ser encontrada aqui, juntamente com um relatório global sobre o estado da arte publicado em 2014.
Em 1994, o Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA), organizador da conferência, descreveu o Programa de Ação como: “Uma nova e ousada visão sobre as relações entre população, desenvolvimento e bem-estar individual… notável em seu reconhecimento de que a saúde [sexual e reprodutiva] e os direitos reprodutivos, bem como o empoderamento das mulheres e a igualdade de gênero, são pedras angulares dos programas populacionais e de desenvolvimento. O Consenso está enraizado nos princípios dos direitos humanos e no respeito à soberania nacional e a vários contextos religiosos e culturais.”
Embora o objetivo original fosse alcançar as metas em 20 anos, ainda há muito a ser alcançado. Como o UNFPA escreveu este ano: “Houve um aumento de 25% na taxa de prevalência de contracepção global em todo o mundo. Os nascimentos de adolescentes diminuíram drasticamente, e a taxa de mortalidade materna global caiu. Mas o progresso tem sido lento e desigual. Centenas de milhões de mulheres em todo o mundo ainda não estão usando contraceptivos modernos para prevenir gravidezes indesejadas, e as metas globais de redução da mortalidade materna não foram atingidas”.
Mesmo assim, desde 1994, houve uma mudança radical na forma de pensar sobre estas questões. Formaram-se novos entendimentos sobre questões de gênero e sexualidade e sobre as consequências da diversidade nas dinâmicas populacionais, ou seja, questões acerca de sociedades envelhecendo em contraposição com aquelas dominados por populações jovens, levando a novas expectativas e exigências. A emergência climática sensibiliza a necessidade de repensar o significado de desenvolvimento e da utilização dos recursos naturais, uma vez que enfrentamos uma ameaça crescente à vida na Terra devido ao nosso modo de vida insustentável que deve ser abordado com urgência.
Parece que a CIPD de 2019 em Nairóbi será a última, e muitos irão suspirar de alívio ao vê-la partir. No entanto, todos os objetivos continuam a ainda ser atingidos no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Cobertura Universal de Saúde, de que fazem parte. A importância global dos direitos humanos está ameaçada em muitos países e especialmente os direitos das mulheres. Isso se refletiu no fato de muitos líderes omitirem qualquer referência a direitos, mesmo quando expressaram aparente apoio aos objetivos de saúde sexual e reprodutiva. Esta omissão não é um bom presságio – embora os direitos também tenham sido firmemente defendidos por muitos na reunião. É importante ressaltar que a demanda por autonomia tem sido encampada pelos jovens em todo o mundo, assim como continua sendo pelos defensores dos direitos das mulheres, e não importa o que os líderes da reunião disseram ou não disseram, essas demandas não podem ser negligenciadas.
Por outro lado, a reunião promoveu um forte apoio às oportunidades para jovens; à oferta de educação sexual; e à necessidade de que mulheres e jovens sejam promotores de mudança. Ela se comprometeu, mais uma vez, a reduzir a taxa de mortalidade materna na gravidez e no parto e a aumentar o acesso à contracepção para reduzir a taxa de gravidez indesejada, como tem feito desde 1994; assim como acabar com a violência de gênero, embora ainda não tenham sido encontrados meios eficazes para isso.
O mais decepcionante, no entanto, foi que, apesar de uma fraca e ineficaz demonstração de oposição proveniente de uma minúscula minoria de países aos amplos objetivos da CIPD, e mesmo após 25 anos de pressão dos movimentos de mulheres, a maioria dos líderes globais presentes e o próprio UNFPA falharam em endossar o acesso universal ao aborto seguro, muito menos em clamar pela descriminalização do aborto durante a plenário da reunião. Eles não reconheceram, muito menos insistiram, que para alcançar a meta da CIPD de zero mortes maternas desnecessárias, é preciso acabar com a morbidade e a mortalidade contínuas e substanciais de mulheres e meninas que sofrem, devido a abortos ilegais e perigosos, de forma mais flagrante no mesmo continente onde esta Cúpula foi realizada. No entanto, sabem muito bem que essa é a verdade.
Nos dias que antecederam a Cúpula, o Grupo de Trabalho do ACNUDH sobre Discriminação contra Mulheres e Meninas, juntamente com 27 Relatores Especiais, Especialistas Independentes e Grupos de Trabalho que fazem parte dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU, desafiaram a conferência da seguinte forma:
É hora dos líderes mundiais honrarem promessas de 25 anos e renovarem seus compromissos sobre os direitos das mulheres, dizem especialistas em direitos humanos, 11 de novembro de 2019
“Nós clamamos à comunidade internacional para que reafirme inequivocamente seus compromissos de cumprir a agenda inacabada da CIPD e aumentar sua vontade política de investir na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e meninas. Apelamos aos decisores para que coloquem sempre os direitos humanos das mulheres e meninas no centro das considerações políticas e para que envolvam significativamente as próprias mulheres e meninas em todas as decisões que as afetam.”
“Os especialistas destacaram as principais realizações, incluindo uma queda notável de cerca de 38% na taxa de mortalidade materna mundial entre 2000 e 2017. “Ainda assim, mais de 800 mulheres estão morrendo diariamente de causas evitáveis relacionadas à gravidez e ao parto, muitas das quais são meninas”, disseram os especialistas.
“A ação também foi urgentemente necessária em relação a outros direitos reprodutivos, disseram eles, apesar da disponibilidade geral mais ampla da contracepção moderna e do progresso na revogação de leis que criminalizam o aborto.
“A criminalização da interrupção da gravidez é uma das manifestações mais prejudiciais de instrumentalização do corpo e da saúde das mulheres, sujeitando-as a riscos para suas vidas ou saúde e privando-as de autonomia na tomada de decisões”, disseram os especialistas. “Vinte e cinco milhões de abortos inseguros ocorrem a cada ano e cerca de 214 milhões de mulheres são privadas do acesso à contracepção moderna essencial, muitas vezes levando a gravidezes indesejadas…”.
Essa declaração (e o acima é apenas um trecho) veio dos mais proeminentes especialistas em direitos humanos do mundo. Agora que a Cúpula terminou, aguardamos os próximos passos de nossos governos.
A conferência
Mais de 9.500 pessoas participaram da conferência de 170 países – incluindo representantes de órgãos governamentais e não-governamentais nacionais, regionais e internacionais – desde os mais altos níveis de liderança até as bases. A agenda da conferência pode ser encontrada aqui. Ela incluiu quase 150 sessões plenárias e simultâneas ao longo dos três dias. Houve inúmeros discursos, painéis, eventos paralelos, cafés da manhã, almoços, jantares e recepções, organizados por governos, doadores e grupos participantes. O trabalho em rede não parou.
E tal como acontece com todas essas conferências, foram prometidas enormes quantias de dinheiro que podem ou não ser recebidas ou gastas de forma sensata, e todos os doadores à vista foram procurados por mais. Foi, no seu pior, apenas uma grande atuação – orquestrada por aqueles que têm dinheiro e poder – e, no seu melhor, um local de encontro produtivo e excitante para aumentar a compreensão e o consenso, fazer acordos e debater as diferenças.
Aborto seguro na Conferência
À primeira vista, as palavras “o direito ao aborto seguro” foram talvez as menos mencionadas nos espaços públicos da conferência. Mas com uma média de uma em cada quatro gestações no mundo inteiro terminando em um aborto induzido, o direito ao aborto seguro como uma questão de saúde da mulher era onipresente e todos sabiam disso. Gita Sen – que trabalhou por 35 anos nacional e internacionalmente em políticas populacionais, saúde reprodutiva e sexual, igualdade de gênero e direitos humanos das mulheres, bem como em questões de pobreza, desenvolvimento humano e mercados de trabalho, e que ajudou a moldar a mudança de paradigma global sobre população e desenvolvimento – falou da necessidade do aborto seguro em uma das sessões plenárias, sendo aplaudida e celebrada. Quando Naisola Likimani de She Decides falou, ela também recebeu a mesma resposta. Além disso, na sessão plenária de encerramento, a Embaixadora Ib Petersen, Enviada Especial da Dinamarca para a CIPD25, destacou a importância do “acesso ao aborto seguro para todas as mulheres” quando apelou a todos na reunião para que “caminhem na conversa” entre agora e 2030.
A campanha do Comitê da CIPD
Todos os governos e ONGs participantes da Conferência foram convidados a se comprometerem com um dos três objetivos da Conferência até 2030: zero mortes maternas evitáveis, zero necessidade de planejamento familiar e zero violência de gênero e práticas nocivas contra as mulheres. No total, foram apresentados mais de 1.200 compromissos.
O compromisso da Campanha foi de fazer campanha para que, até 2030, não houvesse mais mortes maternas evitáveis:
- descriminalização do aborto,
- acesso universal ao aborto seguro em todos os países,
- disponibilidade de aborto seguro a pedido das mulheres/meninas
reconhecendo que o aborto seguro é necessário para alcançar a igualdade de gênero e o direito das mulheres e meninas à vida e à saúde.
O painel da Campanha
Houve cerca de 140 sessões simultâneas, mas apenas duas, cujos títulos deixaram claro que seu tema era o direito ao aborto seguro. A Campanha organizou uma delas, com representantes de entre os nossos membros como oradores. A outra foi organizada pela Marie Stopes International, intitulada “Ending Insafe Abortion by 2030” (Acabando com o aborto seguro até 2030). Ambos os painéis correram muito bem. Cerca de 300 pessoas participaram do painel da Campanha; a sala estava lotada.
Membros do painel
Da esquerda para direita:
- Shilpa Shroff (Presidente), Diretora de Advocacia, Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro, Índia
- Susana Chavez (Co-Presidente), Diretora, Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro, Peru
- Ana Cristina González Vélez, A Mesa pela Vida e pela Saúde das Mulheres, Colômbia
- Sivananthi Thanenthiran, Diretora Executiva, Centro de Pesquisa e Recursos da Ásia-Pacífico para Mulheres, Malásia
- Hedia Belhadj, Groupe Tawhida Ben Cheikh, Tunísia
- Wafa MI Adam, Rede de Jovens Ativistas pela Defesa do Aborto (YANAA/ICWRSA), Sudão
- Ernest Nyamato, Diretor Nacional, Ipas Africa Alliance, Quênia
- Clay Cook, Coordenadora de Projeto, Centro de Treinamento em Saúde Reprodutiva, Moldávia (não presente)
As suas apresentações centraram-se em duas questões principais:
- Como o espaço para o abortamento seguro mudou em sua região desde a Conferência da CIPD no Cairo em 1994? Quais são as principais preocupações que você vê?
- Que medidas precisam ser tomadas para expandir o acesso ao abortamento seguro agora?
Você pode ler os slides deles aqui. Alguns dos principais pontos que eles levantaram foram:
- na África, o custo do aborto inseguro é extremamente alto – milhões de dólares anuais – seria muito melhor oferecer serviços de aborto seguro em vez de tratar a morbidade grave e ter tantas mulheres morrendo desnecessariamente por complicações de abortos inseguros;
- no Oriente Médio e Norte da África, a alta incidência de abortos inseguros deve ser entendida dentro de um contexto sociocultural afetado pela tensão política contínua, guerra e deslocamento de populações;
- na Europa Oriental e na Ásia Central, apesar do bom acesso aos serviços de aborto, a dilatação e curetagem ainda é o método de aborto mais comumente usado, embora não tenha sido recomendado pela Organização Mundial da Saúde por mais de duas décadas;
- na América Latina, o fato de que a maioria dos abortos continua sendo crime causa danos profundos e generalizados tanto para os provedores quanto para as mulheres;
- as barreiras intransponíveis enfrentadas por mulheres jovens e meninas que procuram abortos, incluindo a crença equivocada dos profissionais de saúde de que são incapazes de fazer escolhas informadas, tornam-nas as mais propensas a buscar abortos inseguros e a experimentar os piores resultados; e
- Na Ásia, e de fato em todo o mundo, o acesso ao abortamento seguro é restringido por barreiras e mais barreiras – processos criminais, fundamentos legais restritivos, limites mínimos de tempo, permissão exigida de outros (maridos, pais, médicos, tribunais) e o poder de recusa dos provedores.
O painel também lembrou a todos que o aborto continua sendo um grave problema global de saúde pública, que já havia sido reconhecido na primeira CIPD em 1994. Apesar dos avanços trazidos pelas pílulas de aborto, ainda há quase 25 milhões de abortos inseguros por ano de um total de 69 milhões, quase todos no hemisfério sul. Em muitos países do mundo, só muito dinheiro pode comprar um aborto seguro, e mesmo assim é muitas vezes uma aposta.
Durante a Q&A, muitas perguntas foram feitas sobre estratégias para a defesa do abortamento seguro em nível internacional, regional e nacional: questões de vontade política por parte dos políticos, como obter apoio dos líderes religiosos para o direito das mulheres à vida e à saúde, a importância de compartilhar as experiências das mulheres e de trazer as mulheres a bordo para apoiar o trabalho de defesa do abortamento seguro. Muitas pessoas foram inspiradas pela existência de um movimento de direitos ao aborto que está crescendo em todas as regiões do mundo, e queriam saber como ele pode ser fortalecido.
Por fim, houve muito interesse na YANAA (Rede de Jovens Ativistas pela Defesa do Aborto), a nova rede da Campanha para jovens ativistas, dedicada inteiramente às questões do aborto seguro.
A oposição que a CIPD representa
Assim como reportamos várias vezes esse ano, existe uma oposição organizada nas questões e na agenda em todas as Conferências das Nações Unidas relacionadas à saúde e desenvolvimento em 2019. As principais conferências que foram atacadas antes de Nairobi foram as sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Cobertura Universal de Saúde. Em cada caso, a oposição se concentrou especialmente na rejeição da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos (e, claro, do aborto), rejeitando a igualdade de gênero e todas as outras questões relacionadas a gênero, sexualidade e direitos. Essa oposição tem sido consistentemente expressa pelo mesmo pequeno grupo de governos conservadores e de direita e ONGs, bem como por líderes religiosos conservadores, e tem sido ineficaz na alteração dos resultados dessas conferências.
Em Nairóbi, uma declaração de oposição às metas da CIPD+25, liderada pelo governo dos EUA, foi lida e assinada pelos seguintes países: Brasil, Bielorrússia, Egito, Haiti, Hungria, Líbia, Senegal, Santa Lúcia e Uganda.
O relatório da openDemocracy sobre a oposição em Nairobi relata que a oposição era pouco numerosa e isolada numa contra-cúpula que ela própria tinha organizado, na esperança de contestar a representatividade da CIPD+25. Uma fotografia de um de seus workshops mostra apenas um orador e oito participantes dispersos, em comparação com as dezenas de milhares que participaram da CIPD+25. Uma demonstração que tinham convocado para o terceiro dia fora do centro de conferências aparentemente atraiu apenas uma dúzia de pessoas, embora tivessem previsto que milhares iriam aparecer. No entanto, a France24 trazia uma foto de um grupo substancial com cartazes caros rejeitando o aborto, e a mesma foto também foi usada em outros noticiários.
Além disso, Hedia Belhadj do Grupo Tawhida Ben Cheikh, Tunísia, um dos nossos palestrantes da Campanha, teve uma impressão diferente: “Os panfletos anti-aborto foram distribuídos às pessoas que esperavam nas filas e durante todo o evento. A pressão dos EUA sobre as delegações dos países e sobre a atmosfera em torno do evento foi certamente sentida. As delegações dos Estados Árabes foram abordadas uma a uma para fazer parte de uma declaração contra a escolha, propondo que os compromissos não devem ir além da agenda da CIPD. O Líbano e a Tunísia recusaram a oferta. A declaração final para esta iniciativa foi liderada por uma pessoa do Egito. Além do mais, em comparação com a CIPD de 1994, devo dizer que não vi nenhum progresso nas posições da maioria dos governos em relação ao aborto (com poucas exceções: Etiópia, África do Sul), enquanto outros temas de direitos humanos, ocultos ou não reconhecidos em 1994, como o respeito à diversidade (incluindo a orientação sexual), tornaram-se mais visíveis em Nairóbi”.
O embaixador dos EUA no Quênia, Kyle McCarter, foi citado pela France.info no Kenyan Daily Nation como dizendo, em nome dos EUA, que: “a realidade é que os grupos pró-aborto vão usar a conferência como uma forma de fazer avançar a sua agenda”. Como, então, ele explica que o aborto foi o assunto menos mencionado na reunião? E por que ele acha que o apoio ao aborto seguro como parte de uma agenda de saúde da mulher é um segredo profundo e sombrio?
Algumas reportagens da mídia, como esta, afirmaram que a conferência era “controvertida”. Em contraste, outros criticaram a oposição liderada pelo governo dos EUA (ver aqui em inglês)
Quanta oposição realmente existiu é difícil de provocar. A oposição foi realmente silenciada neste importante espaço público internacional? Porque, apesar de o direito ao aborto seguro mal ter chegado às plenárias da conferência, a oposição também não chegou a espaço de debate. É certamente verdade que existem profundas discordâncias sobre muitas das questões abordadas em Nairobi, muitas das quais centradas em saber se as mulheres/jovens e muitos outros que são desprezados devem ter o direito de determinar suas próprias vidas ou não. O silêncio (falta de conflito visível?) que resultou pode ser o que o UNFPA desejava fervorosamente ( e quem não desejaria considerando a atual conjuntura política) ? Se foi uma coisa boa ou não, isso ainda deve ser avaliado no futuro, e essa questão deve informar nossas conversações sobre o valor e significados da conferência.
Por que as metas da CIPD são cruciais para mulheres e meninas e, devem incluir o direito ao aborto seguro?
Ana Cristina González Vélez, da Mesa pela Vida e Saúde das Mulheres, Colômbia, também um membro do painel da Campanha, escreveu: “Eu não acho que o aborto tenha recebido atenção suficiente na agenda oficial. Mas o tom do nosso painel de discussão foi alto e as salas durante ambos os painéis sobre aborto estavam cheias de pessoas. Além disso, durante a leitura dos compromissos dos governos e organizações da sociedade civil, a Articulação Feminista Marcosur se comprometeu a lutar pela descriminalização total do aborto. Portanto, o tema do aborto estava lá, e fazia parte da agenda para todos nós que lutamos pelo aborto seguro como parte da agenda da CIPD. Também fez parte dos compromissos de Puebla durante a Reunião Preparatória Regional da América Latina e Caribe e a Declaração de Nairóbi.
Membros e amigos da Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro foram a Nairóbi defender o acesso universal ao aborto seguro, não deixando ninguém para trás. Nunca aceitamos o compromisso do Cairo de 1994 sobre o aborto porque, nos últimos 25 anos, tem sido utilizado para manter milhões de abortos ilegais e inseguros. O aborto é uma parte necessária das nossas vidas; não pedimos desculpas a ninguém.
Ao encerrar este relatório, chamamos a atenção para a realidade vivida por muitas mulheres e meninas quenianas que não estiveram presentes na Cúpula, capturando exatamente por que as metas da conferência e as nossas são essenciais para as vidas de meninas e mulheres:
Com base nas tendências estatísticas actuais, 3.000 jovens quenianas entre os 10 e os 19 anos de idade tiveram relações sexuais desprotegidas enquanto a CIPD estava ocorrendo Cento e cinco delas abandonaram a escola e três morreram de complicações relacionadas com a gravidez. Um total de 3.600 mulheres e meninas fizeram abortos e 45% delas eram meninas entre 10 e 19 anos de idade. Nove pessoas foram estupradas e 45 foram contaminadas. Menos de dez desses casos levarão a condenações. Essa conferência foi importante para o Quênia e o discurso de abertura do presidente Kenyatta disse o mesmo”, por Irungu Houghton, Standard Media, 16-11-19.
Comunicado de imprensa de Marge Berer, Diretora de Publicações e Reuniões, Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro, c/contribuições de Christina Boateng, Shilpa Shroff, Ana Cristina González Vélez, Hedia Belhadj. As informações sobre a posição brasileira foram elaboradas pelo SPW.