Por Alex Kalil
No dia 2 de novembro de 2019, o grupo de ativistas “40 dias pela vida” realizou a penúltima de suas ações em frente ao Hospital Pérola Byington [1]. Como de praxe, desde o dia 25 de setembro, a tenda utilizada pelo movimento foi montada todos os dias e permanecia em vigília por um período de 12 horas, geralmente das 6:00 até 18:00 e às vezes se estendendo. A composição do grupo na vigília variava de acordo com o dia e com a disponibilidade dos envolvidos, embora na maior parte das situações o grupo era composto majoritariamente por homens, que puxavam as orações e faziam a segurança do evento, evitando possíveis conflitos. As mulheres estavam em menor número, realizavam as orações e cuidavam das crianças que não participavam das orações, mas vestiam as camisetas da vigília. Para se ter uma ideia, no dia em questão (2 de novembro), o grupo tinha cerca de trinta homens, em sua maioria brancos, ao passo que as mulheres estavam em torno de quinze, havendo mais mulheres negras do que homens negros em toda a composição do grupo.
Alguns dias antes, um grupo composto por ativistas feministas e pelo direito ao aborto – predominantemente formado por mulheres — também havia se estabelecido em frente ao hospital. O objetivo deste grupo era proteger as mulheres que passavam por tratamento no hospital e que eram hostilizadas pelo grupo dos “40 dias”. Estavam presentes profissionais da OAB que voluntariamente passaram a frequentar as estadias em frente ao Pérola Byington com o objeto de identificar, denunciar e proteger as pessoas aí reunidas e mulheres que buscam o hospital de possíveis violações de direitos humanos. Tanto as feministas como a equipe da OAB se instalaram em frente ao Pérola Byington, após o caso, ocorrido no dia 21 do outubro, em que uma mulher de 31 anos foi agredida por manifestantes do grupo “40 dias pela vida”. O caso foi analisado pela Agência Pública e outro órgão de imprensa[2]. A mulher agredida estava indo periodicamente ao centro de referência de atendimento à violência sexual do hospital após ter sido estuprada enquanto estava inconsciente. Por conta desse conflito, uma viatura com dois policiais foi posicionada entre os dois grupos para evitar potenciais hostilidades.
A ação principal do grupo dos “40 dias” durante o período da vigília foi orar incessantemente em frente ao hospital. Na parte de traz da barraca utilizada por eles ficava a equipe de organização do ato e também alguns ativistas evangélicos. Aí não se orava, mas havia placas e camisetas com a frase: “100 mães desistem de abortar após receberem oração”. Um interlocutor do grupo me informou que, neste dia, a vigília era diferenciada, por se tratar do dia de devoção às mil ave marias. A pauta deste dia era rezar mil ave marias. Mesmo que sem uma contagem precisa, essa seria uma ação simbólica.
A narrativa dos grupos dos “40 dias” para convocação de pessoas para este dia de oração fez recurso ao episódio da agressão. A versão do grupo nas redes sociais é radicalmente diferente do ocorrido. Segundo ela, a vigília “sofreu um ataque de uma feminista” e as pessoas aí reunidas foram hostilizadas. Essa distorção dos fatos, além de ser uma arma de combate servindo para desfigurar os “oponentes políticos” – descontextualizando situações ou invertendo as escalas e significados dos acontecimentos — também foi usada para convocar novos públicos para a vigília. Esse giro das notícias, acompanhados de imagens apelativas, como as que vinculam ativistas feministas a performances e ações violentas tem como finalidade projetar uma imagem de ”perigo” e “perseguição” que funciona como apelo para que públicos mais amplos de juntem à manifestação. Foi assim que o movimento dos “40 dias” atuou durante sua estadia em frente ao hospital, convocando principalmente públicos católicos e evangélicos radicais, conservadores e opositores do aborto, visando sempre dar publicidade à sua ação.
O grupo dos “40 dias” faz campanha aberta contra o direito ao aborto durante todo o ano em redes sociais privadas, mas intensificando a divulgação sempre que há ações públicas, como foi o caso da vigília no Pérola Byington. A convocação é aberta à participação de pessoas, grupos, movimentos sociais e instituições através de uma inscrição feita via Google Forms [3] que é divulgada em suas redes de Facebook, WhatsApp e Instagram. Nesta ocasião, o formulário pedia que o interessado assinalasse quantos dias estaria disposto a ficar na instalação em frente ao hospital, garantindo, assim, que o movimento tenha controle sobre quais pessoas vão receber durante os 40 dias da vigília. Outra função do formulário é de assegurar a segurança do grupo, prevenindo a infiltração de jornalistas, ativistas ou indivíduos que estejam transitando próximo à tenda.
A líder da inciativa é Celene Salomão Carvalho, política filiada ao PSL, ex-partido do presidente Jair Bolsonaro [4]. Celene é conhecida por viajar o país com o boneco do ex-presidente Lula, nomeado de “pixuleco”, em que Lula é representado como um presidiário vestido com uma camisa listrada e com o número 13-171 no peito. Desde 2015, antes da prisão de Lula, Celene já levava o boneco para expor em público e houve ocasiões em que o boneco foi esfaqueado, como em Caxias do Sul (RS)[5]. Seu ativismo se intensificou durante as manifestações pró-impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula e, sobretudo, quando Celene apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro. Hoje ela é a voz mais conhecida do movimento antiaborto em São Paulo. Em 2018, Celene se candidatou ao cargo de deputada estadual em São Paulo, não conseguindo se eleger.
Celene tem relações muito próximas com Douglas Garcia e Edson Salomão, que coordenam o Movimento Conservador (antigo ‘Direita São Paulo’), grupo que começou a ganhar visibilidade a partir de 2017, quando liderou o protesto contra a filósofa Judith Butler em frente ao SESC Vila Mariana, no qual a efígie da filósofa foi queimada como “propagadora da ´ideologia de gênero’”[6]. Celene Salomão também ajudou na organização e divulgação deste protesto em frente ao SESC e, segundo algumas fontes, teria sido uma das mulheres que hostilizou Judith Butler e Wendy Brown no aeroporto de Congonhas alguns adias depois. [7]
Com base no ativismo contra a chamada “ideologia de gênero”, Garcia elegeu-se como deputado estadual por São Paulo com cerca de 70 mil votos. E recentemente, Edson Salomão foi indicado por Eduardo Bolsonaro para a candidatura à prefeitura de São Paulo em 2020, tendo também apoio de pessoas próximas ao presidente Jair Bolsonaro. Edson Salomão também já anunciou que o Movimento Conservador planeja lançar cerca de vinte candidaturas para o cargo de vereador.
O recurso às alianças é, desde muito, um traço desses grupos conservadores. Outro grupo aliado aos “40 dias pela vida” é o Instituto Plinio Corrêa Sampaio (PCO), o grupo extremista católico herdeiro da velha e conhecida Tradição, Família e Propriedade. Em 2015, o IPCO também foi assíduo nesse tipo de manifestação. Em meados de 2015, organizou uma primeira demonstração contra Judith Butler, na ocasião da sua primeira visita a São Paulo, e também estava presente na manifestação de 2017. No dia 31 de outubro de 2019, o grupo compareceu à vigília dos “40 dias” para expressar sua solidariedade aos demais ativistas.
A “vigília pelos 40 dias” pode parecer uma novidade, mas, de fato, está enredada na história mais longa do giro à direita promovida nas bases sociais, ao qual o protesto contra Butler em 2017 foi decisivo como um primeiro momento de cristalização de uma base bolsonarista na cidade de São Paulo. Essa trajetória também nos diz sobre a forte vinculação entre políticas antiaborto e políticas antigênero.
Por outro lado, a vigília também aponta para adiante, fortalecendo e projetando a candidatura a vereança de Celene Bispo como a figura da mulher comprometida com as pautas do extremismo conservador.
Dito de outro modo, a vigília deve ser lida como um palco para a construção de lideranças femininas fortemente comprometidas com a base mais radical do bolsonarismo. Ainda que a presença de homens nos movimentos de base do bolsonarismo seja quase sempre mais ampla, está em curso um esforço deliberado de captar a atenção e o voto das mulheres. Uma marca dessa estratégia é a visibilidade das “feministas arrependidas”, como Sara Winter, mas também a emergência de uma nova figura: a “feministas de direita”. A figura da “feminista de direita” se constrói a partir do “rebaixamento da feminista de esquerda” . Isso fica claro, por exemplo, numa uma entrevista ao jornal Valor Econômico de Joice Hasselman e Janaina Paschoal. Lá pelas tantas da entrevista, Paschoal diz: “Eu sou feminista”. A reação de Joice foi perguntar: “mentira, se você é feminista, cadê o sovaco peludo?”. E ainda completou: “Se você for mesmo feminista, vai arrancar a roupa agora e vai tirar os peitos para fora em público. Só assim você vai mostrar que é feminista de raiz.”[8]
Se o objetivo é ampliar a base feminina do bolsonarismo, eventos como a vigília são muito úteis. Elas requerem poucos recursos, mas captam atenção de públicos específicos, formando novas identidades políticas. Assim, capitalizam e “capitanizam” ativistas que em 2020 poderão apoiar candidaturas representativas do conservadorismo e da direita. Esses protestos funcionam como campos de teste onde os grupos de direita põe à prova os seus repertórios e discursos, assim como fazem cálculos quanto à possibilidade de usar ou não discursos cada vez mais radicais e violentos, tendo como horizonte o processo eleitoral de 2020 e a manutenção do bolsonarismo no poder.
[1] O Hospital Pérola Byington é hoje, referência em saúde da mulher pelo SUS, atua no atendimento de cirurgias de alta complexidade como tumores, tratamento de câncer entre outros. O hospital realiza atendimento de mulheres vítimas de violência sexual, onde há a possibilidade de realização de abortos nos casos previstos na lei brasileira: estupros, gestação de fetos anencéfalos ou gravidez com risco de morte.
[2] Disponível em: https://apublica.org/2019/10/grupo-pro-vida-constrange-vitimas-de-estupro-em-frente-a-hospital/. Acessado em 04 de novembro de 2018.
Ver também https://exame.abril.com.br/brasil/grupo-pro-vida-constrange-vitimas-de-estupro-em-frente-a-hospital/ acessado em 05 de novembro de 2019
[3] Google forms é um aplicativo administrativo de pesquisas, incluído no pacote de aplicativos do Google Drive. É comumente utilizado para realização de inscrições.
[4] https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/candidatos/sp/deputado-federal/celene-salomao-1706/
[5] Para mais informações, acesse: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/na-estrada-com-pixuleco/ acessado em 05 de novembro de 2019
[6] Ver https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/G%C3%AAnero-pol%C3%ADtica-e-religi%C3%A3o-nos-protestos-contra-Judith-Butler
[7] Estes acontecimentos estão melhor relatados por mim em um antigo anterior publicado por mim na revista pensata (KALIL,2019) https://periodicos.unifesp.br/index.php/pensata/issue/view/697/43
[8] Entrevista disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2019/02/01/janaina-paschoal-e-joice-hasselmann-as-novas-caras-da-direita-campea-de-votos.ghtml acessado em 20/11/2019