por Thiago Amparo, Folha de São Paulo
Mulher, 43 anos, negra, evangélica, São Paulo: “Menina é menina e menino é menino. Tem diferença. Estão ensinando nas escolas que a menina pode se vestir de menino, que menina pode brincar de carrinho. Confunde as crianças. Não pode criar as meninas para ficarem com raiva dos meninos e vice-versa.”
Mulher, 23 anos, branca, evangélica, Porto Alegre: “Sim, eu acho que as crianças deveriam aprender religião na escola, aprender valores para não ter essa confusão de valores que temos hoje em dia.”
As duas falas compõem a pesquisa “Conservadorismo e as Questões Sociais”, publicada pela Fundação Tide Setubal em junho deste ano. Em ambas, nota-se um tema comum: certa nostalgia de um tempo menos incerto, fluido ou, na palavra das entrevistadas, “confuso”.
Tolerância a diferentes visões de mundo demanda, por um lado, separar o que é real e o que é paranoia; e, de outro, aprender a debater diferenças e não as censurar.
‘Ideologia de gênero’ não existe. Não existe em dois sentidos, ao menos. Um mais espalhado em círculos progressistas, outro menos. Por um lado, ‘ideologia de gênero’ não existe no sentido médico-científico. “Até a quinta semana de gestação, o embrião é assexuado”, lembrou com precisão o médico Drauzio Varella nesta Folha.
Tampouco ‘ideologia de gênero’ existe no sentido mais comumente empregado em círculos conservadores: como uma suposta ideologia praticada sistematicamente pela esquerda como forma de desmantelar os papéis de gênero que fundamentam as famílias.
Reconhecer o uso por conservadores de ‘ideologia de gênero’ como paranoia é reivindicar que ela se fundamenta em medo, medo da mudança, como aponta a cientista social Esther Solano em suas pesquisas.
Debate progressista sobre ‘ideologia de gênero’ em geral menospreza a força que tem em círculos conservadores essa ode à certeza moral representada por papéis estanques de gênero. Ridiculariza-se “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” sem entender a força que o ridículo fundado na estagnação moral tem para muitos.
Posto isso, o que fazer? Conservadores optaram pela censura. Novo Gama (Goiás), Cascavel e Paranaguá (Paraná), Blumenau e Tubarão (Santa Catarina), Palmas (Tocantins), e Ipatinga (Minas Gerais) adotaram leis antigênero, censurando materiais didáticos e o debate em escolas municipais sobre eles, como aponta pesquisa da antropóloga Isabela Oliveira Kalil na Revista Sur.
No último dia 14, Belo Horizonte somou-se a essa lista, com a aprovação em primeiro turno do PL 274/17 que obriga escolas municipais a fixar em cartazes nas salas de aula a mensagem de que “Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.”
Na liminar que suspendeu lei similar de outra cidade mineira, o ministro Gilmar Mendes ( STF) comparou a censura antigênero ao “caso da grande queima de livros realizada em diversas cidades da Alemanha em 10 de maio de 1933, em perseguição a autores que se opunham ou que não se alinhavam às diretrizes do regime nazista.”
Analogias na ficção também se avolumam: basta lembrar a proibição da leitura (às mulheres) na teocracia de Gilead em “O Conto de Aia” e “The Testaments”, e na distópico uso de bombeiros para incendiar_não para salvar_ livros em “Fahrenheit 451”.
Qual a contranarrativa progressista possível para o medo que fundamenta a ideologia de gênero como paranoia? Por um lado, reconhecer que é o debate sobre gênero nas escolas que permite melhor acomodação de diferentes visões.
Beira ao cinismo argumentar que censurar escolas é ser neutro ao debate sobre gênero. Censurar é impor uma visão, a do não debate. Ao abrir esse precedente, conservadores criam ferramentas para o mesmo seja feito com eles no futuro, o que tampouco se justificaria.
Ninguém está privando pais de promover educação moral e religiosa ao seus filhos, o que está se fazendo é permitir que seus filhos debatam sobre o tema, o que já fazem em círculos de amigos e na internet, muita vezes de forma bem menos saudável.
Por outro, é por causa do debate sobre gênero que hoje se garante direitos iguais a mulheres e homens, que mulheres podem trabalhar fora de casa, que se combate violência contra crianças, que se garante direitos LGBTs, que se promove o respeito pelas mulheres e o combate à cultura do estupro, que homens podem finalmente expressar sentimentos. Defender debate sobre gênero é, de um ponto de vista instrumentalista , bem mais vantajoso do que não o fazer.
Debater gênero não é uma ameaça à família, censura que é.
Tiago Amparo é advogado e professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.
Imagem: Manifestações a favor e contra conteúdo sobre gênero no Plano Municipal de Educação de São Paulo. (Folhapress)
Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo.