Após as manifestações que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho de 2013, a antropóloga Isabela Oliveira Kalil passou a observar um grupo minoritário de pessoas que pedia a volta da ditadura militar no Brasil. Os protestos começaram contra o aumento das tarifas no transporte público e, em poucos dias, extrapolaram o tema e levaram milhares de pessoas às ruas, com diferentes perfis ideológicos e com pautas diversas, entre elas uma insatisfação geral com a política no Brasil. Três anos depois, nos movimentos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, Kalil viu esse grupo de extrema direita crescer e suas pautas começarem a ganhar contorno.
Pautas antidemocráticas são uma característica de grupos extremistas, tanto à direita quanto à esquerda. Além do clamor pelo retorno de um regime ditatorial, Kalil identificou como marcas desse grupo radical à extrema direita uma retórica que viola os direitos humanos de minorias e de opositores políticos, com o planejamento da morte de adversários e diferentes formas de ameaças.
A partir de 2016, a pesquisadora passou a coordenar um estudo do Núcleo de Etnografia Urbana da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo sobre as manifestações nas ruas e em redes sociais de grupos conservadores. Foram realizadas mais de 1.000 entrevistas até o primeiro turno das eleições presidenciais em 2018, que permitiram elencar 16 perfis distintos que apoiaram a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência.
A antropóloga ressalta que o perfil extremista corresponde à minoria dos eleitores bolsonaristas. O relatório preliminar do estudo mostra que esse grupo passou a utilizar as manifestações como uma espécie de “laboratório de experimentação”, testando uma nova forma de comunicação e de fazer política, com articulação entre as ruas e as redes sociais. Ela explica que no estudo o extremismo não é usado como conceito, uma vez que isso pressupõe que há uma divisão entre pessoas moderadas e outras extremistas.
A discussão sobre extremismo feita pela pesquisadora no estudo tem como base os autores Loic Wacquant, Franz Fanon, Hannah Arendt e Veena Das. Kalil explica que a bibliografia mostra como pessoas comuns, em um contexto marcado pela violência, também estão aptas a reproduzi-la, independentemente do perfil de comportamento. “Quando a violência é performada, existe um efeito de contaminação que vai se alargando e aquilo que era considerado inaceitável, aos poucos, vai se tornando aceitável e se banaliza”, disse ao Nexo.
Esses grupos são categorizados da seguinte forma:
- violência explícita que incite a morte de adversários políticos apologia à tortura discursos racistas, homofóbicos ou misóginos
- uso de imagens que fazem referências à mutilação ou agressão de corpos humanos
- desprezo pelas instituições democráticas
- apelo para um estado policial
- ameaças de uso da força para atingir finalidades políticas
Na pesquisa, o perfil de apoiadores mais radicais de Bolsonaro aparece predominantemente entre jovens do sexo masculino com menos de 20 anos, que integram os chans, fóruns anônimos usados para disseminar discurso de ódio, e também entre homens com idade entre 40 e 60 anos. Ambos têm em comum o que Kalil define como “masculinidade perdida”, que é a perda de um lugar social.
Esses grupos cobram do presidente uma postura mais autoritária e um aceno maior ao radicalismo. Desde a campanha, a pesquisa mostra que a comunicação de Bolsonaro foi marcada pela segmentação de informações, estratégia utilizada para atingir diferentes perfis do eleitorado. Como presidente, ao retomar a retórica autoritária com falas em defesa da ditadura militar, ele volta a acenar para essa parcela do eleitorado e a delimitar o apoio de adversários políticos.
Um levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo mostra que pessoas e instituições que foram atacadas publicamente pelo presidente se tornaram alvo de boatos de grande circulação na internet. O padrão foi identificado, por exemplo, após frases de Bolsonaro contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em março de 2019, e contra a jornalista Miriam Leitão e o editor e cofundador do site The Intercept Brasil, Glenn Greenwald, em julho.
A pesquisa de Kalil continua acompanhando os grupos de discussão e as atividades desses movimentos após as eleições. Em entrevista ao Nexo, a antropóloga explica as características que marcam esse segmento.
Há pressão entre os eleitores mais extremos de Jair Bolsonaro por mais radicalização? Que efeito isso pode ter a médio e longo prazo?
ISABELA OLIVEIRA KALIL Há pressão, mas não somente de uma forma explícita. Isso está presente quando eleitores mais engajados começam a se desinteressar pela figura do presidente e passam a elogiar ou dar mais atenção ao ministro Sergio Moro, por exemplo. Não me parece aleatório que recentemente Bolsonaro tenha exposto Moro a situações embaraçosas. Para lembrar as principais, em uma ele faz uma brincadeira insinuando em suas palavras um “troca-troca”, jogando com uma possível relação íntima entre Moro e outro ministro. Em outra, insinua que Moro teria escrito “Lula livre” em uma camiseta. As duas situações ajudam a repor a centralidade de Bolsonaro no próprio campo da direita. A primeira tem como alvo a masculinidade de Moro e a segunda sua fidelidade política e partidária. De certa forma, ao apelar para a radicalidade do tempo da campanha, Bolsonaro delimita a margem de crescimento do apoio a outras potenciais figuras do seu espectro político, aliados e ex-aliados. Ele domina a cena política como o homem mais forte (e a questão da masculinidade é central), mesmo quando esta força se mostra desmedida ou inadequada. Com a noção que a gente tem trabalhado de violência, o mais grave é banalizar performances e discursos que não poderiam ser banalizados. Existem coisas que vão acontecendo que seriam inaceitáveis há um tempo. Quando mais pessoas começam a performar isso de forma recorrente, o nosso limiar de violência e o que a gente considera socialmente aceitável se alteram. Isso é o mais grave.
Como segmentos mais radicais se diferenciam de demais eleitores que podem estar insatisfeitos?
ISABELA OLIVEIRA KALIL Essa questão é muito relevante porque essa base mais radical se diferencia muito dos demais eleitores. O que está em jogo ao agradar sua base mais radical vai para muito além do voto ou a aprovação do eleitorado. Sua base mais radical literalmente trabalha para Bolsonaro, cria conteúdo, vídeos, memes, fake news, propagam os conteúdos, moderam fóruns, organizam eventos, administram grupos de zap, programam bots, ameaçam os opositores indicados pelo Bolsonaro, atacam publicamente alvos como ex-aliados. A questão não é necessariamente a quantidade desses eleitores, mas sua relevância nestas disputas. Sem esses eleitores, Bolsonaro não teria construído as bases da sua campanha. Ele precisa desse segmento para continuar no poder e mirar o futuro.
Como é a visão desses segmentos mais radicais sobre as instituições?
ISABELA OLIVEIRA KALIL As visões são variadas, mas eu resumiria em uma máxima “menos partidos, mais Brasil”. Ou ainda na expressão “Meu Partido sou eu”, em substituição ao “Meu Partido é o Brasil”. Se a hipermasculinidade é um elemento importante mobilizado por Bolsonaro, o hiperindividualismo está muito presente nos seus apoiadores. Mas, apesar de variadas, é preocupante o movimento recente que pede a destituição de todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, ou mesmo o fim da Suprema Corte e ataques individualizados que insinuam a violência contra eles.
De que forma esses grupos lidam com correntes de pensamento opostas?
ISABELA OLIVEIRA KALIL Os grupos mais radicais operam uma verdadeira máquina de propaganda e intimidação a favor de Bolsonaro. Esses grupos não representam uma violência de Estado exatamente como já tivemos historicamente, são pessoas da sociedade civil ameaçando pessoas e instituições. Com isso, não é preciso que se tenha uma lei específica com sanções para opiniões contrárias. Basta ver o número crescente de ataques e agressões contra jornalistas e figuras públicas que está formado o terreno fértil para um tipo de censura informal, que em parte é e não é do governo.
Até que ponto esses segmentos são atores relevantes no cenário político? Qual o limite na sua atuação?
ISABELA OLIVEIRA KALIL São importantes não apenas pelo número, mas pela forma de atuação. O que temos estudado mais recentemente é como tem se dado a interação do que chamamos na antropologia de humanos e não humanos. Ou seja, temos olhado para a interação entre pessoas e bots [perfis automatizados que tentam influenciar o debate em redes sociais], por exemplo. Este é um terreno que ainda teremos que investigar mais para compreender os limites destas interações e os riscos disso para a democracia.
Como as falas de autoridades podem influenciar reações do público?
ISABELA OLIVEIRA KALIL Há um efeito importante na performance de Bolsonaro que oferece uma espécie de licença para que a violência se banalize e se reproduza. Se ele que é o chefe de Estado e uma liderança pode se permitir certas coisas, o cidadão comum também pode. E esse efeito tende a se perpetuar em cadeia, como uma espécie de eco que ressoa na sociedade, por mais absurdo ou ensurdecedor que sejam esses sons.
FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 28.05.2018
Texto originalmente publicado em Nexo Jornal. Acesse o post original aqui.