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Gênero e direito ao aborto na cena congressual

por Sonia Corrêa

O que vem acontecendo desde janeiro no Congresso Federal brasileiro acerca do direito ao aborto e gênero deve ser situado no tempo, pois os retrocessos reais ou potenciais nesses dois campos não são um efeito do governo JMB. Estão em curso há muito mais tempo e, neste sentido, não é excessivo afirmar que os debates congressuais de longo curso acerca do direito ao aborto e da “ideologia de gênero”, que não tiveram maior visibilidade pública, foram prenúncios ou fatos precursores do que se assistiria, em grande escala, na cena política entre 2018 e 2019.

No âmbito do direito ao aborto, essa tendência regressiva se instalou em 2005-2006, quando uma iniciativa de reforma legal proposta pelo executivo foi atropelada pela primeira crise de corrução do governo do Partido dos Trabalhadores. Naquele, criou-se a Frente Parlamentar Antiaborto, abrindo uma brecha para a proliferação de projetos regressivos, cuja apresentação se intensificou a partir de 2015, quando se fazem nítidos os contornos da restauração conservadora que iria nos trazer, vertiginosamente, ao cenário de 2019.

Já a gênese das proposições legislativas antigênero tomou corpo em 2013, quando a gênero foi duramente atacado por parlamentares e grupos evangélicos, católicos e o grupamento Escola sem Partido, cuja pauta argumenta pela “desideologização total do ensino público” com base no argumento de que a educação deve ser neutra. Esta ofensiva também se intensificaria a partir de 2015, quando a palavra gênero passou a ser objeto de repúdio, independentemente do contexto em que estivesse escrita. As iniciativas legislativas mais relevantes ou perigosas são tanto proposições que remontam a 2014-2015, quanto a reedições de propostas anteriores. Não há nada de novo em termos de conteúdo. O aspecto novo é que essas proposições contam hoje com o empenho do executivo e de sua base parlamentar e, como se verá, com o clima do debate parlamentar em torno ao gênero que assume contornos surreais.

Por outro lado, a pauta legislativa da política sobre gênero, sexualidade e aborto também precisa ser situada em relação às condições atuais do Congresso e sua dinâmica. Tal como apontado por analistas, o sistema político brasileiro, que sofreu efeitos devastadores no processo eleitoral de 2018, já mostrava sinais de exaustão desde 2013. Os partidos que haviam sustentado o sistema desde os anos 1980 – PMDB, PSDB e PT – tiveram suas bancadas reduzidas, enquanto o PSL, uma sigla marginal e inexpressiva, turbinado pela eleição presidencial, foi alçado ao lugar de segunda bancada da Câmara. Foi também alterada a composição e jogo de forças no Senado. Já no momento pós-eleitoral, Marcos Nobre sinalizava para a incapacidade de JMB e do novo governo em reorganizar o sistema político de maneira consistente como haviam feito o PT e o PSDB quando estavam no poder pois:

“Para conseguir governar não basta conseguir os votos necessários para aprovar pautas e projetos. É preciso que as forças políticas se deixem também dirigir de alguma maneira e em algum grau pelos polos aglutinadores do governo, de um lado, e da oposição, de outro. O sistema está destroçado justamente porque não tem mais esses polos aglutinadores”.

Essa previsão se confirmou desde janeiro de 2019, quando um executivo autoritário e errático passou a depender do Congresso para aprovar sua prioridade máxima: a reforma da previdência, vendida ao eleitorado como a bala de prata que, como aponta Lena Lavinas, tiraria da noite para o dia o país da pior recessão de sua história recente. O cenário é agravado pelo fato de o governo, como já se disse antes, ser autoritário e fazer oposição a si mesmo. Governa, basicamente, por medidas provisórias, decretos e uma base parlamentar, o PSL, que tal como anunciado, se mostrou caótica e nem sempre fiel.  Nessas condições, os resíduos do chamado Centrão — núcleo amorfo e maleável que garantiu governabilidade parlamentar nas gestões do PSDB e PT — estão agora no comando dos processo parlamentares.

As tensões entre executivo e Congresso têm sido constantes e crescentes mesmo quando as lideranças do Congresso sejam alinhadas ideologicamente com o governo. JMB perdeu votações importantes e vê a reforma da previdência, que esperava aprovar num passe de mágica, ser constantemente adiada. Como demonstração, foram convocadas as manifestações de apoio ao governo no dia 26 de maio, cujos resultados podem ser considerados contraditórios. Por um lado, mostraram que a base bolsonarista ainda é expressiva e vai às ruas e, por outro, o ataque aberto ao sistema político e aos líderes parlamentares não agradou aos que agora comandam o Congresso. Tanto assim que, em 10 de junho, enquanto este texto estava sendo finalizado, os presidentes da Câmara e do Senado estampavam os jornais apertando as mãos ao dizer em alto e bom tom que JMB “ vai ter que aguentá-los pelos próximos dois anos”.

O cenário tumultuado não tem, contudo, coibido a apresentação – ou reapresentação – e a tramitação de propostas legislativas antigênero e restritivas do direito ao aborto, mesmo quando as condições gerais do Congresso e a prioridade máxima da reforma da previdência possam retardar sua tramitação. Isso não é uma surpresa, pois os parlamentares vinculados ao bolsonarismo têm como prioridade e desafio demonstrar para suas bases eleitorais que cumprirão as promessas de campanha. Inclusive, no começo de junho, anunciavam publicamente que muito em breve a “agenda moral” entraria em pauta.

Nesse cenário tumultuado há, porém, uma novidade a registrar. Nessa nova legislatura, há muito mais apoio e energia no campo da oposição para tentar conter essa regressão.  Paradoxalmente, há hoje pela primeira vez na história uma bancada que se declara feminista na Câmara Federal. Resultado do investimento na presença na política feito pela nova geração feminista, sobretudo de mulheres negras, essa bancada funciona como contraponto a um grupo novo e substantivo de mulheres conservadoras, seja do campo secular ou do campo religioso, que também foram eleitas no rastro de JMB. Mas também partidos e parlamentares de esquerda ou de centro esquerda, especialmente do PT que, desde os anos 2000 haviam abandonado as pautas feministas, parecem estar finalmente se dando conta de que elas não são secundárias ou laterais.

Estão hoje na pauta do Congresso, em diferentes estágios de tramitação, 13 projetos de lei para eliminar ou mesmo criminalizar a difusão da “ideologia de gênero”, seis deles apresentados nessa nova legislatura. A maioria deles faz proposições em relação à educação e estão vinculados aos projetos de lei propostos desde 2014-2015, cujo conteúdo foi analisado pela agência Lupa, em fevereiro de 2019. Porém, à diferença do que se viu em legislaturas anteriores,  quando essas proposições ficaram sem contraponto, dois projetos de lei foram apresentados que se opõem abertamente às proposições do Escola sem Partido e visam garantir a livre expressão de pensamento e de opinião a todos os professores, estudantes e funcionários de escolas, inclusive no que diz respeito a gênero e sexualidade.

Um episódio recente, contudo, é sintomático do clima advserso que predomina no Congresso em relação ao tema. Gabriel Galil descreveu em detalhes num artigo para a revista online Sul 21 como, ao final de maio, a menção à palavra gênero, numa lei destinada a definir quais dados devem ser inscritos em formulário da Previdência quando nasce uma criança, paralisou os debates da Câmara por várias horas:

“Um dos mais aguerridos reclamantes foi o deputado Pastor Sargento Isidório, parlamentar mais votado da Bahia que acumula também, orgulhosamente, o título de ex-gay. Segurando uma Bíblia na mão, como faz, aliás, todos os dias em todos os momentos na Câmara, gritava que só existia sexo masculino e feminino, que gênero era qualquer coisa: mesa, cadeira etc… O deputado Glauber Braga, do PSOL, chegou a afirmar que falta pouco para que proíbam escrever “gênero” alimentício nas embalagens de comidas… Às 23h38, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se irritou e disse que se não houvesse acordo, derrubaria a sessão e as MPs pendentes cairiam. Ou seja, o futuro da estratégia de governo ficou pendente por uma pauta de costumes” .

Isto prenuncia os debates ferozes e surreais que vão se desenrolauma vez que, passada a reforma da previdência e destravada a pauta do Congresso, as propostas legislativas em relação a gênero comecem a ser debatidas. O mesmo se aplica aos projetos que estão na Câmara que visam restringir o direito ao aborto. Há dois projetos em estágio avançado de tramitação cujos conteúdos foram objeto de protestos de rua e esforços de contenção legislativa (veja uma compilação): o PL 5.069/2013 – que insere no Código Penal a criminalização de anúncio sobre métodos abortivos e que poderá desarquivado a qualquer momento, – o Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) – que atribui direitos de cidadania a embriões e que está aguardando relator na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulhee e a PEC 181, que inscreve o direito à vida desde a concepção numa emenda constitucional destinada a aprimorar a licença maternidade para mães de bebês prematuros e que também poderá eventualmente voltar a pauta.

No âmbito do direito ao aborto, porém, a base parlamentar do bolsonarismo já disse claramente a que veio tão logo se iniciou a nova legislatura. Num claro alinhamento com o direito à vida desde a concepção, sistematicamente evocado por Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), desarquivou-se no Senado a Proposta de Emenda Constitucional 29, que propõe a inclusão do direito à vida desde a concepção no preâmbulo da Constituição Federal.

Apresentada também em 2015 pelo Senador Pastor Magno Malta, a PEC 29/2015 está em discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (veja compilação). Foi trazida de volta à pauta no início dos trabalhos legislativos de 2019 pelo senador Eduardo Girão (PODE/CE). A nova relatora, senadora Selma Arruda (PSL/ MT), elaborou muito rapidamente um parecer favorável ao texto, onde acrescentou um parágrafo para manter a não punição ao aborto nos casos já definidos pelo Código Penal de 1940 (para proteger a vida da gestante e na gravidez por estupro), com cláusula impondo o consentimento formal da mulher grávida, ou da pessoa por ela legalmente responsável, no caso de ser menor ou incapaz juridicamente. No primeiro debate do texto na Comissão de Constituição e Justiça, em meados de maio, foram adicionadas duas emendas para inclusão no texto da possibilidade de aborto no caso de anencefalia (também vigente no marco legal brasileiro) o que, segundo parecer, provocou debates internos no grupo antiaborto que quer o retrocesso total. A tramitação está, desde então, paralisada.

Seja como for, essa é a proposta legislativa mais avançada e que mais coloca em risco os direitos das mulheres. A emenda contém uma armadilha, pois mantém os dois permissivos do Artigo 128, II, do Código Penal de 1940 (que permitem aborto nos casos de estupro e risco de morte da mulher), pois seus propositores bem sabem que a sociedade não quer ver esses permissivos eliminados. Entretanto cabe perguntar: se é para manter o que está na lei, qual é, de fato, a motivação da proposta de emenda?  Sua verdadeira motivação pode ser localizada no texto que justifica a aprovação da emenda em que se caracteriza o corpo das mulheres como um “hospedeiro”. Ou seja, o objetivo da PEC é, de fato, abrir uma cunha no ordenamento jurídico para, num futuro próximo, contestar a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal de que o direito à vida não é absoluto e que a proteção jurídica da vida ocorre a partir do nascimento. A experiência de países que adotaram premissas constitucionais semelhantes, como é o caso das Filipinas (1985) e de El Salvador (1997), informa que essa definição silencia o debate sobre o direito ao aborto e abre portas para a criminalização absoluta e brutal da interrupção da gravidez.

Essa é possivelmente a trincheira onde vai se dar a primeira e muito aguerrida batalha legislativa da política sexual brasileira na era JMB.


Notas

Imagem: Natchez, 1985, por Jean-Michel Basquiat



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