por Sonia Corrêa
Poucos dias antes de completar a simbólica marca dos 100 dias de gestão, consagrada nas democracias ocidentais como primeiro momento de avaliação de uma administração que se inicia, Jair Messias Bolsonaro, ou JMB, disse que não nasceu para ser presidente, e sim militar. “É só problema”, afirmou, depois de questionar-se: “Eu me pergunto, olho pra Deus e pergunto: Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso?”. Esse ato de fala que se pretendia irônico deve ser tomado a sério, pois o conteúdo foi reiterado pelo presidente em entrevista concedida à Revista Veja no final de maio. Ele condensa o estilo retórico de JMB, tão caro a seus eleitores, de “dizer aquilo que pensa sem pestanejar” e a cacofonia dos primeiros meses da administração.
Desde janeiro, a cena governamental foi marcada por conflitos sequenciais entre os vários grupos que estão hoje no poder: o presidente e seus três filhos que, em geral, se guiam pela diatribes do astrólogo cum guru Olavo de Carvalho, confortavelmente instalado no estado americano da Virgínia[1], os oito ministros militares, o voluntarista ministro da economia Paulo Guedes, a também conflitiva base do governo no Congresso. Graves sinais de incompetência administrativa se combinam com uma avalanche de atos executivos que, com ou sem base legal, estão alterando parâmetros de política pública nos mais diversos domínios. Há também o uso sistemático do Twitter para governar e para acirrar a belicosidade da base eleitoral fiel ao governo – atos de fala arbitrários ou messiânicos e cenas grotescas ou ridículas, encenadas, dia sim, dia não, pelo presidente e seus ministros e ministras. Alguns observadores têm chamado atenção, inclusive, para os traços de bipolaridade do comportamento político presidencial. Durante o dia, talvez por estar mais próximo da influência dos militares e outros ministros mais racionais e calculistas, por vezes se comporta com alguma razoabilidade. Mas, à noite, quando retorna à pulsão do Twitter, tomado de fúria, transforma-se em Bolso-Nero.[2]
Um grupo importante de analistas críticos tem se dedicado a discernir o que está por trás da tempestade de areia e lixo que essa cacofonia produz.[3] A jornalista Eliane Brum, num belo artigo de balanço sobre os primeiros cem dias, caracteriza a gestão Bolsonaro como um governo que faz oposição a si mesmo, enfatizando que isso não é casual e, sobretudo, produz distração e paralisia. Num diapasão similar, Marcos Nobre, em análise publicada pela Revista Piauí, analisa como o caos não é acidental ou sintoma da ignorância e do despreparo que, realmente, existem. Segundo ele, muito ao contrário, o caos é um método de governo pois:
“… a única forma de Bolsonaro garantir-se no poder é mantendo ativamente em estado de colapso as instituições políticas do país, o mesmo estado de colapso que levou à sua eleição… a fidelidade do núcleo duro que esteve com ele desde o começo depende da manutenção do colapso institucional.”
A outra face do caos é, portanto, belicosidade. Desde janeiro, tem proliferado decretos presidências e outras medidas executivas que tanto alteram programas e políticas nas mais diversas áreas quanto cortam recursos. JMB explicitou essa modalidade de gestão, ao afirmar, recentemente, que com uma caneta na mão ele tem mais poder que o presidente da Câmara Federal. Foram inúmeros os decretos presidenciais desde janeiro, inclusive dois que ampliam o porte de armas no país e um mais recente que reduz as multas das infrações de trânsito. O arbítrio da caneta tem sido aplicado sem dó nem piedade, especialmente nas áreas em que o governo quer mostrar ao que veio do ponto de vista ideológico, ou naquelas onde existe maior potencial de resistência. Entre muitas outras, foram decretadas medidas que: controlam organizações da sociedade civil, desmontam mecanismos de participação social, eliminam regras de proteção ambiental, alteram o organograma do Ministério da Saúde ou impõe uma redução drástica de recursos das universidades públicas.
Essa última medida teve grande visibilidade e foi amplamente criticada (veja compilação nacional e internacional). Vale lembrar, contudo, que não apenas as universidades estão sob ataque. Quando esse balanço estava sendo finalizado em junho, as três maiores instituições públicas de produção de dados para informar as políticas públicas nacionais estavam sob ataque. O IBGE foi objeto de intervenção e teve recursos para o Censo 2020 reduzidos. A FIOCRUZ foi impedida, pelo ministro da Cidadania, de publicar uma pesquisa nacional sobre uso de drogas, cujos resultados contradizem as pautas de criminalização e internação compulsória promovidas do governo. E, o ministro do Meio Ambiente ameaçou substituir o INPE, que acaba de soltar dados sobre o desmatamento crescente na Amazônia, por uma empresa privada. Essa cruzada anti-intelectual replica o que se assiste em outros contextos internacionais hoje governados por populistas de direita e que inevitavelmente evocam o fascismo.[4]
Não surpreende, portanto, que várias dessas medidas executivas não tenham base legal sólida. Tem sido e serão interrogadas judicialmente. A jurista Eloisa Machado analisou como um decreto recente que transfere o direito de nomeação de sub-reitores dos reitores das universidades públicas para o presidente da República viola abertamente a definição constitucional de autonomia universitária, concluindo que:
“Um governo baseado em decretos e medidas provisórias mostra incapacidade de estabelecer o diálogo e compor sua base com o Congresso Nacional e de se expor ao escrutínio dos parlamentares e da sociedade. O atalho encontrado pelo governo para fugir dos custos impostos pelas negociações políticas é abusar de poder… Estamos diante de um governo inconstitucional”.
O filósofo Vladimir Safatle, em artigo publicado na Folha de São Paulo, observa que essa guerra permanente é funcional para sustentar a fidelidade da base eleitoral de JMB e implementar, passo a passo, a revolução conservadora que ele encarna: uma luta persistente e aguerrida contra a casta política, o judiciário, a imprensa e a elite intelectual. Essa dupla função ficou flagrante nas manifestações do dia 26 de maio convocadas (inclusive pelo Twitter pessoal de JMB) para apoiar as prioridades do governo – a reforma da previdência e o pacote anticrime – quando vicejaram ataques ao STF e ao Congresso e suas lideranças. A ironia trágica do que está em curso é que, como bem analisa Safatle, essa “revolução” vai entregando o país àqueles que sempre foram seus donos: “os banqueiros com seus lucros inacreditáveis para uma economia paralisada, os empresários que ganham carta branca para espoliar trabalhadores, os rentistas que tem seus rendimentos intocados”.
Eliane Brum foi muito perspicaz quando recorreu, no seu artigo de abril, à imagem do “governo dos perversos” para nomear essas condições extremas de anormalidade, alvoroço e oclusão dos primeiros cem dias de governo. Brum explora em duas claves os traços marcadamente perversos de uma cena política que, na superfície, parece ser apenas desgoverno. De um lado, ela examina como a cacofonia e a belicosidade política dos primeiros meses de governo obscurece e normaliza a autorização tácita para a matança dos mais vulneráveis. Essa é uma carnificina na qual se contabilizam o descalabro do sistema público de saúde e, sobretudo, os efeitos letais persistentes da violência estrutural, no qual se inclui um número crescente de vítimas letais da violência ou da omissão do estado (veja aqui). Nos primeiros meses do ano, apenas no Rio de Janeiro, mais de vinte pessoas foram executadas pela polícia, inclusive um cantor baleado com 80 tiros por uma patrulha do exército. Mas também assistimos rebeliões e chacinas brutais nas prisões. No final de maio, 55 pessoas foram executadas numa disputa entre fações num presídio de Manaus. Mas esse fato trágico não foi objeto de maior atenção do presidente ou de seu ministro da justiça.
Na outra clave, Brum chama atenção para o impacto desnorteador que um governo que se comporta como oposição a si mesmo tem sobre as forças que poderiam e deveriam lhe fazer oposição. Sobretudo, descreve, com muita sagacidade, o fascínio perverso que a cena política está exercendo sobre a sociedade:
Tanto a oposição, quanto a imprensa, quanto a sociedade civil organizada e até mesmo grande parte da população, estão vivendo no ritmo dos espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias… Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia. Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta. Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros, no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez? Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.
Essa descrição dolorosa evoca os efeitos voyeuristas de Salò: 120 dias de Sodoma, último filme de Pier Paolo Pasolini, em que os traços cínicos, exibicionistas e sádicos do fascismo como manifestação do poder são eviscerados em imagens brutais e repulsivas das quais, contudo, não conseguimos tirar os olhos. Essa associação é ainda mais pertinente quando o “sexo”, a masculinidade tóxica, os tropos da dominação sexual e o ataque a gênero estão no primeiro plano da cena nacional. Como tenho apontando em ensaios analíticos anteriores, gênero e sexualidade desde muito se situam no vórtice do furacão da restauração conservadora, que arrastaria, de maneira vertiginosa, a política brasileira para a direita nas eleições de 2018. Mas a chegada ao poder das forças que propulsionaram essa tormenta faz com que seja literalmente impossível não falar de sexo quando se escreve ou se fala de política no Brasil.
Uma profusão de atos de fala, gestos, tropos e figuras sobre gênero, sexualidade e aborto tem proliferado na semiosfera política brasileira desde janeiro e são múltiplas as fontes que propagam a intensa aposta em discurso. Ocupa um lugar privilegiado nesse panteão Damares Alves, que chefia o recém-criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e conhecida mundialmente por dizer em seu discurso de posse que meninos devem usar azul e as meninas rosa e por repudiar de maneira radical o direito ao aborto nas várias reuniões internacionais das quais participou. Mas aí também pontifica Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores que, em escritos pregressos, afirmou que as feministas têm como objetivo criminalizar o desejo sexual masculino. E, o novo ministro da Educação, tão logo nomeado, contribuiu para esse caudal quando disse que iria cortar os recursos de três universidade públicas que promoviam “balbúrdia”, imprimindo ao termo uma forte conotação sexual. [5]
Contudo, esse é um domínio da política semântica em que JMB e seu astrólogo cum guru, Olavo de Carvalho, são imbatíveis. A cornucópia de palavrões que o astrólogo usa em seus escritos e aparições no YouTube é hoje um dado fático da realidade política brasileira. No artigo A única coisa rigorosa nos escritos de Olavo de Carvalho são os palavrões publicado no caderno Ilustríssima, o filósofo Rui Fausto contesta as teses insólitas do personagem. Mario Magalhães, num artigo irônico do The Intercept, faz uma exegese bastante completa da obsessão de Carvalho pelo cu, especialmente o cu dos outros, concluindo, a uma certa altura que:
A obsessão pelo furico alheio não é comportamento merecedor de considerações morais, e sim um mistério da alma de Carvalho. Ela se expressa contra os suspeitos de sempre: “Quando um esquerdista brasileiro chama você de fascista, ele não quer dizer que você defendeu alguma ideia fascista. Ele só quer dizer o seguinte: ‘Ai, meu cu’.
JMB que, desde muito, engendra gênero e sexo no seu discurso político, tem agora um gigantesco palco iluminado para propagar seus tropos e gestos “sexuais” com novos contornos, maior intensidade e mais impacto. [6] Várias vezes, desde que foi eleito, inclusive em sua viagem aos EUA , JMB tem feito declarações de “amor hétero” em relação aos homens que o cercam, em especial o ministro da economia Paulo Guedes (o que faz do projeto ultra liberal em andamento uma empreitada de machos alfa que “se amam”). No carnaval, JMB postou e abominou no Twitter uma cena de “golden shower”. Esse gesto extremo– em que se misturam homofobia, repulsa ao sexo e promoção do pânico moral (que incita ódio) – chegou rapidamente às páginas internacionais. Em seguida, enveredou pelo que Naief Haddad qualifica como uma franca obsessão pelo pênis. Em abril, o presidente fez um comentário sobre amputação de pênis por falta de higiene, avançando a proposta de campanhas púbicas para ensinar meninos e jovens a lavarem sempre seus órgãos genitais, como fazem os militares. Na sequência, despejou atos de falas sobre tamanhos de pênis, evocando, como sempre faz no Brasil, o órgão sexual dos japoneses. Fez uma piada sobre o assunto ao ser abordado por um turista japonês em Manaus. Um pouco depois usou a metáfora do “japonês pequeninho” para comentar os possíveis resultados da reforma da previdência.
Essa sequência vertiginosa de atos de fala e gestos sexuais culminou na primeira semana de junho com dois episódios de misoginia extrema. Uma semana depois do massacre na prisão de Manaus- que não foi objeto de nenhum comentário sólido ou atitude por parte do presidente ou seu ministro da Justiça – JMB dedicou todo um parágrafo de Twitter para lamentar o suicídio do MC Reaça, autor de um jingle de sua campanha eleitoral cuja letra agressiva ofende todos opositores e chama as feministas de cadelas. MC Reaça se matou depois de espancar furiosamente sua amante grávida. Uma semana mais tarde, quando o jogado futebol Neymar foi acusado por uma namorada de relação sexual não consentida, o presidente foi visita-lo no hospital, em que está tratando de uma lesão, para prestar solidariedade e levantar suspeitas sobre as intenções da denunciante.
Até aqui, JMB, de fato, ainda não assinou nenhum decreto proibitivo em relação a gênero e sexualidade. Mas uma cena televisada, ladeado por dois generais, incitou os pais as rasgarem as páginas de uma cartilha sobre prevenção de HIV (publicada pelo Ministério da Saúde) em que estão as imagens anatômicas de homens a mulheres. Ou seja, não falta a JMB a vontade de disciplinar a vida sexual dos brasileiros de maneira arbitrária. Como se verá seguir essa visão e intenção permeiam, ainda que de maneira mais sutil, a medidas que estão adotadas em várias áreas do governo.
As análises que oferecemos a seguir sobre dinâmicas em curso nos campos da política econômica, direitos humanos, saúde e o que se passa no Congresso Nacional em relação à gênero e ao direito devem ser situadas em relação ao cenário intenso, cacofônico, grotesco e perverso do político no qual, como se viu, as dimensões de gênero e sexualidade são incontornáveis. São exercícios inevitavelmente incompletos e parciais, pois não é uma tarefa trivial identificar as possíveis direções de um ciclone que se move de maneira errática e destrói tudo o que atinge em seu caminho.
Imagem: Dispositivos domésticos 4, por Kátia Sepúlveda
Notas
[1] Olavo de Carvalho é um atrólogo auto-proclamado filósofo que pelas últimas duas décadas utilizou viés extremamente conservador para falar sobre todos os assuntos (especialmente emprestado de pensadores católicos conservadores europeus). Ele se auto-exilou nos EUA em 2005 declarando que estava fugindo da ditadura imposta pelo governo Lula. Muito influente nas redes sociais, os últimos anos ele tem exercido função de conselheiro político da família Bolsonaro.
[2] Apelido cunhado pelo podcast Foro de Teresina.
[3] Essa análise está disponível na edição #52 do podcast Foro de Teresina, da Revista Piauí.
[4] Leia em inglês o artigo do site Slate “Anti-intellectualism poses a great danger to democracy”.
[5] Esse ato de fala inspira o título deste ensaio.
[6] As imprensas nacional e internacional tem extensivamente contabilizado o teor misógino e homofóbico do presidente desde o início da sua carreira política. Artigo da revista eletrônica Gênero & Número documentou que, desde 2011, JMB mencionou em seus atos de fala 63 vezes o termo “ideologia de gênero”, incluindo discursos na Câmara como deputado e no seu discurso de posse. No dia 2 de junho, publicou artigo de Naief Haddad publicado pela Ilustríssima, compila e analisa atos de fala e gestos sexuais do presidente.