Lena Lavinas é economista e professora titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2017, publicou o livro Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox (Palgrave Macmillan). Numa conversa longa com Fábio Grotz, ela analisa as direções e efeitos da política econômica do governo Bolsonaro.
Qual é a direção da agenda econômica do governo Bolsonaro?
É preciso entender que não há uma pauta sólida de políticas públicas antes da vitória de Bolsonaro. Sua vitória representa uma rejeição ao petismo, insatisfação e frustração com quatro anos de recessão – se considerarmos de 2015 a 2018, tivemos um crescimento negativo de 4,7% do PIB. É muita coisa. São mais de 13 milhões de desempregados, são 4.9 milhões de desalentados – indivíduos que desistem de procurar emprego. São 16 milhões de domicílios onde a renda do trabalho é zero. As pessoas não ganham nada, as pessoas vivem ou de aposentadoria ou de bolsa-família, ou ainda de outras fontes que não o rendimento do trabalho.
Então, o que vingou foi a descrença numa sociedade que vinha em trajetória de relativo crescimento desde meados da década de 2000, uma sociedade onde houve redução dos níveis de pobreza, graças ao crescimento econômico. Houve também uma relativa atenuação do nosso padrão de desigualdade. Digo relativa porque, nesse período, o 1% dos mais ricos em toda a distribuição de renda melhorou a sua participação no bolo, mantendo uma grande concentração de renda e riqueza, que está, hoje, em ativos financeiros, cuja real magnitude é de estimação difícil. Ou seja, não basta olhar e tomar o mercado de trabalho e seus rendimentos como régua de concentração da renda. Embora essa redução da desigualdade não tenha sido mais expressiva, o Brasil vinha numa trajetória de melhora, que degringolou por uma série de fatores: o impeachment da Dilma, a desaceleração do crescimento econômico, os próprios equívocos na política econômica do governo Dilma, e todos os escândalos de corrupção que se tornaram públicos com a operação Lava-Jato paralisando o país. Entrou a era Temer, com um projeto de profunda desestruturação do mercado de trabalho, agravando a crise econômica e política. Quando foi instituído um teto para o gasto social por 20 anos, congelando-o, isso colocou em xeque a política social e a redução das nossas desigualdades.
Acho, portanto, que houve uma reação da sociedade, movida por um enorme grau de insatisfação. Ela se manifestou como “chega”, “basta”. E as forças organizadas em torno a Bolsonaro souberam galvanizar essa insatisfação. Nesse sentido, não é um governo que chega com uma pauta econômica estruturada, senão um governo que a constrói paulatinamente, sobretudo a partir dos interesses específicos de quem está à frente do super Ministério da Economia – é quase uma pauta individual – e das alianças que o ministro vai construindo. O governo não precisou, antes das eleições, debater a sua agenda econômica, seus projetos, até porque não os tinha. O próprio Bolsonaro não participou de debates. Ele não disse a que vinha. Nem precisou. E isso é inédito.
E o que havia antes? A impressão de que o Estado, através de sua política social-desenvolvimentista, intervinha excessivamente na economia, ao controlar os bancos públicos, por exemplo, e em particular o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A atuação do BNDES seria indispensável à formulação e execução da política industrial. Mas favoreceu alguns setores em detrimentos de outros, gerando atritos. Outra dimensão relevante de intervenção do Estado, considerada intolerável pelas elites e pelo setor financeiro, residia na regra de atualização do salário mínimo, com o piso salarial aumentando acima da inflação e dos ganhos de produtividade. Foi isso que, de fato, promoveu algum grau de redistribuição no Brasil. Assim, tudo que era associado ao Estado e a gestões passadas foi visto como uma grande intervenção na economia e que deveria ser abolida.
Os setores conservadores – mas com agenda própria e já frustrados com o andar da carruagem – esperavam o momento do refluxo para retomar, digamos, as rédeas da economia, que vinha em grande dificuldade e agora adentrou o estágio de pré-colapso (as previsões de crescimento despencam a cada mês e é provável que 2019 tenha crescimento menor que 2018, quando se registrou aumento do PIB de 1,1%). Isso, numa economia que já estava em recessão, e em franca desindustrialização. Mas está difícil para eles entrarem no comando de um carro sem rumo e em movimento. Com isso, uma conjunção de fatores fez com que a pauta ideológica, a pauta da moralidade, a pauta do resgate dos valores conservadores da sociedade contra a esfera pública, contra a igualdade, apoiando-se no mantra de “colocar ordem na casa”, ganhasse força, pois todo o resto está completamente desarticulado e desnorteado. O governo Bolsonaro tem de mostrar serviço em alguma frente. E é na expressão “organizada” do desmonte na educação, no meio ambiente, na política externa que eles respondem ao que vieram.
A partir da vitória eleitoral é que começa a se constituir uma pauta econômica. Uma pauta que se faz no dia-a-dia, pipocando aqui e ali, somando interesses daqui e dali. Trata-se de uma agenda, portanto, feita no improviso, com ajustes diários. Isso dito, ela é claramente favorável ao agronegócio, ao setor financeiro com a defesa da capitalização na previdência e ao lobby dos fabricantes de armas. Este é o único setor industrial que parece interessar a esse governo (a companhia brasileira Taurus é uma das três principais fabricantes de armas leves do mundo). Mas a economia no seu conjunto foi deixada de lado. Alguém pensa no desemprego ou no crescimento, ambos correlacionados? Dizer que a reforma da previdência vai resolver tudo é como revelar descaradamente que, para além de cortar gastos, nada mais sabem fazer.
Podemos dizer que o objetivo maior da pauta econômica é o desmonte do estado e abertura total ao capital privado e a interesses financeiros?
Sim, sem dúvida, os mercados financeiros são, mais uma vez, a bola da vez. Esses setores buscam controlar e definir a pauta da política econômica alcançando também a esfera da política social. Veja a questão da educação superior pública, cujos ataques e ameaças desmedidos do governo levaram a um aumento significativo e imediato do valor das ações das grandes corporações do setor (Kroton, Estácio). Uma das metas do setor financeiro e das elites do país é expandir a fronteira financeira da economia, notadamente na esfera dos seguros (previdência privada, por exemplo) e das linhas de crédito.
Podemos nos perguntar o que é, de fato, fundamental para tais setores ultraliberais nesse momento. O mantra repetido ad nauseum, pelo presidente e seu “superministro” da economia, é de que em 2023- 2024 não há como fazer mais nenhum pagamento, sem a reforma da previdência. Aterrorizam dizendo que o país vai quebrar. Quem olha os milhões de desempregados e desalentados, o aumento significativo da população de rua, pensa mesmo que o apocalipse está próximo. Alguém fala de política industrial, de como elevar a produtividade, tão anêmica? Qual o eixo da política tributária com que acenam? Qual é a reforma tributária que eles querem fazer? Não sabemos, só temos informações contraditórias. Por ora, seguem desonerando o agronegócio, perdoando multas aos devastadores do meio ambiente e aos partidos que não implementaram a cláusula de aplicar parte do Fundo Eleitoral com a promoção da igualdade de gênero nas eleições.
O mesmo vale para a Previdência, cujo projeto de reforma só agora foi enviado para uma comissão especial na Câmara Federal para ser debatido no mérito, mas com muitos pontos em aberto, jogados para lei complementar. Nada está definido a não ser a meta clara de desconstruir toda a institucionalidade existente, seja na esfera da proteção social e da seguridade, seja no plano do financiamento ao desenvolvimento, seja ainda no desprezo pela política de maior impacto hoje internacional, a do meio ambiente, devastada em ritmo de moto serra por esse governo.
O fato de não haver propostas bem definidas e tudo parecer desordem, desmando, não constitui constrangimento para esse governo. Trata-se de desmontar o que existia, desmontar o que for possível. O que vemos hoje é uma política de desmonte, desmonte das instituições republicanas, desmonte das instituições que regulam o mercado de trabalho, desmonte do sistema de proteção social, o que é muito perigoso e aflitivo. O que virá depois desse desmonte? O governo não está muito preocupado com isso, porque na medida em que você desmonta, e tem-se terra arrasada, o mercado ocupa à sua maneira. A disputa vai se dar entre as forças de mercado, e as coisas vão se passar com processos de concentração crescentes, mediante fusões e aquisições. Julgo que teremos imensas dificuldades em enfrentar esse porvir. São mudanças estruturais que apontam para uma desregulação completa e sinalizam que a provisão pública será substituída em grande parte por acesso ao setor financeiro, via crédito, seguros, etc.
Como isso se traduz no plano político?
O governo federal governa de costas para o parlamento e para a sociedade. Só mira as redes sociais. Nessa conjuntura de grave crise econômica, ventila-se a ideia de que o Bolsonaro é um mito, apregoa-se um discurso falso em torno da ideia de que estão combatendo privilégios, que estão combatendo a corrupção, repetem o argumento de que todos fraudam invariavelmente. Dizem que há gente que frauda no Bolsa-família, na aposentadoria rural e denunciam: “como é possível ter pessoas que têm aposentadoria rural e vivem nas cidades? Eles fraudaram!” Como se as pessoas não pudessem escolher onde elas querem viver uma vez aposentadas, sobretudo considerando-se a oferta deficiente de serviços de que necessitam idosos no meio rural.
É ameaçador um governo que não trata a economia buscando enfrentar e garantir a dignidade, o emprego, a renda, enfim, que não sinaliza nem ao menos como pretende tentar recuperar uma trajetória de crescimento. É um governo que não tem foco, é um governo cuja prioridade é o desmonte. É para isso que ele veio, por isso não há proposta. Bolsonaro se orgulha de se mostrar como um indivíduo boçal, medíocre, parvo. Todos toleram essa figura despreparada, desqualificada para o cargo que ocupa além de ser quem inflama o debate político e as ruas. Por que essa tolerância? Porque esse papel opera o desmonte. A questão central é que essa característica destrutiva do Bolsonaro é muito útil para certos grupos da elite, que, muito preocupadas com a reforma da Previdência, enxergavam no candidato e enxergam no Presidente, ou pelo menos afirmam enxergar, alguém que poderia levar à frente esse projeto de destruição dos alicerces da sociedade que se criou na era da redemocratização para passar a outra coisa. Não por acaso fala-se tanto em desconstitucionalizar direitos.
A centralidade da reforma da Previdência é notável na pauta nacional. A reforma é tratada como uma panaceia. Ela vai mesmo solucionar todos os problemas do Brasil?
Sim, de fato é como se a Previdência fosse a bala de prata. Ao invés de pensar em como melhorar o sistema de proteção social, torná-lo sustentável financeiramente e mais justo, o argumento é que vivemos uma crise fiscal sem solução, com uma dívida que se avoluma sem controle, o que não é verdade. Mas a reforma não vai resolver nem de longe os problemas do Brasil que começam por uma desigualdade elevada e persistente, uma heterogeneidade estrutural latente e resiliente, tornada mais aguda pelo processo de desindustrialização precoce em meio ao domínio da grande finança, e por níveis de exclusão que deveriam ser vistos como intoleráveis.
Na cabeça dos arautos da reforma, comprometidos em alavancar com ela os mercados financeiros, a meta é restringir a cobertura que o Estado proporciona em termos de transferência de renda para aposentados, para os mais pobres, favorecendo um deslocamento dessa demanda de cobertura para o setor financeiro. Com isso, reduz o gasto e permite manter um sistema tributário altamente regressivo, quiçá mais. É isso que eles querem: o fortalecimento do setor financeiro, que cresceu muito no Brasil nos últimos anos, mas que não foi acompanhado por expansão semelhante da área de seguros e dos fundos de capitalização e de pensão, que se desenvolveram aquém do esperado. Porque nós já temos a capitalização aberta no Brasil hoje, só que ela é voluntária e complementar ao sistema público. O setor de capitalização cresce desde os anos 2000 (hoje são mais de 800 bilhões de reais de patrimônio líquido, contra 20 bilhões em 2002), mas a ideia é que se houver o desmonte por completo da aposentadoria pública e da seguridade social como um todo, então esse gap deverá ser coberto por novos produtos financeiros, um mercado sempre em expansão.
A lógica central é que o crédito financeiro está aí para atender às necessidades básicas, antes atribuição do Estado. É uma lógica rentista: colocar o capital portador de juros no centro do processo de acumulação de riquezas desse país. É um processo de expropriação das classes populares, da população. É isso que o governo tem em mente. Eles, inclusive, aos poucos estão mostrando o teor de suas propostas da Previdência, porque nada estava fechado e definido. A coisa vai se costurando, vão pescando propostas de economistas que se pronunciam aqui e ali sobre o tema. É uma colcha de retalhos. Daí, eles vão montando uma coisa que parece ter uma certa consistência. Mas que, na verdade, é inconsistente, porque nós não temos dados que comprovem por que deve-se passar a um modelo de capitalização; por que há que contribuir durante 40 anos; por que um pequeno produtor rural que não tem capacidade de contribuir dada a natureza da sua atividade não poderia receber o piso previdenciário? Que dados foram utilizados para justificar a proposta do governo de quebra de isonomia?
O que virá no futuro caso a reforma da previdência, tal como proposta, seja aprovada?
É preciso ter clareza de que o grande problema hoje não se resume ao risco de os mais pobres perderem o direito a receber o piso previdenciário de um salário mínimo. Há, para além da Previdência, uma série de novas regras que retiram direitos de todos, afetando quem depende da seguridade social e do trabalho. O salário mínimo tende a diminuir em termos reais, o gasto social público foi congelado por 20 anos, estabelecido por emenda constitucional em 2016. Se isso de fato se concretizar, a provisão pública de bens e serviços vai piorar e, portanto, as pessoas vão precisar de mais liquidez. Para isso, terão de recorrer ao setor financeiro, tomando empréstimos. É um fenômeno que vem sendo estudado não apenas no Brasil, mas em outros países. Surge sob várias denominações como credit for welfare, assets-based welfare ou a colateralização da política social.
É claro que os mais pobres serão muito prejudicados. Mas quem vai ser mais prejudicado, proporcionalmente? As classes médias. As classes médias estão empobrecendo neste país. Estão no olho do furacão e não se dão conta. As classes médias serão as mais afetadas pela reforma da Previdência. Os arautos da reforma dizem combater os privilegiados. Pois bem: os privilegiados vão se dar muito bem. Estão todos, como eu já frisei, no setor financeiro. Todos ganhando dinheiro no mercado de capitais, vivendo às custas do rentismo. Mas a população que trabalha e que não tem emprego, vai ter que escolher entre fazer um plano de capitalização ou pagar escola para o filho. Porque não haverá melhora no ensino público, que cada vez mais se deteriora. E os salários não vão cobrir novas despesas como plano de saúde, porque o SUS vai fechar tamanho seu sucateamento, ou escola e universidade privadas, alternativas frente ao abandono da educação pública de qualidade.
As pessoas não conseguem mais pagar escolas privadas hoje. 75% dos estudantes universitários estão em faculdades particulares, na sua maioria de péssima qualidade. Além de tudo, estão endividados. As pessoas saem de uma universidade caríssima, ruim, não arrumam emprego e, quando arrumam, a remuneração é abaixo daquilo que necessitam para pagar o empréstimo e viver. Fala-se muito no impacto da reforma sobre os pobres, agricultores e pequenos produtores rurais. De fato, eles também serão atingidos. Terão uma velhice certamente desamparada. Contudo, eu acredito que a aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada serão objeto de negociação, para mostrar recuos de “boa fé”, e acabarão poupados. Mas o desmonte do sistema público não será negociado.
Já as classes médias estão e ficarão massacradas. Se a reforma da Previdência passa com o regime de capitalização compulsório, os mais prejudicados serão elas. Daqui a 20 anos, quem hoje tem 45 anos não terá aposentadoria nenhuma. Porque não será capaz de pagar, ao mesmo tempo, plano de saúde e remédios, crédito escolar para o filho cursar a universidade e seu plano individual de aposentadoria. Não vamos esquecer que o salário médio mensal hoje no Brasil é de R$ 2.300,00 aproximadamente (US$ 520,00).
Em relação às desigualdades de gênero, que impactos a reforma vai gerar?
A teoria econômica mostra que os regimes públicos de repartição simples, como o que temos hoje, redistribui dos jovens para os idosos. Porque o trabalhador ativo contribui e, assim, paga a aposentadoria dos mais velhos. A outra dimensão dessa redistribuição, no âmbito do sistema público, é dos homens para as mulheres. As mulheres tendem a não contribuir com a mesma regularidade que os homens porque elas entram e saem do mercado de trabalho com mais frequência, em razão das responsabilidades na esfera doméstica, como maternidade, cuidar dos filhos e idosos, dos familiares doentes. Por isso, sua inserção no mercado de trabalho ainda é muito precária.
Uma reforma da Previdência, que desmonta a seguridade social e tende a equalizar as idades para aposentadoria de homens e mulheres, obriga homens e mulheres a trabalhar sempre mais. Se já é difícil às mulheres contribuírem por 15 anos, imagine conseguir contribuir por 40 anos, ininterruptamente! Se você chegar aos 62 anos de idade sem somar 40 anos de contribuição vai continuar trabalhando, ou seja, não há idade mínima para solicitar a aposentadoria. É balela. Essa reforma tende a jogar as trabalhadoras mulheres no piso previdenciário, e isso no caso caso de ser mantido o mínimo de 15 anos de contribuição, o que é pouco provável. Mas, para além da Previdência, o limite imposto pelo teto dos gastos públicos talvez seja o mais nocivo, porque restringe ainda mais drasticamente as possiblidades de reduzir as desigualdades de gênero no cotidiano.
Por quê?
Porque o gasto público é aquilo que pode substituir com qualidade o tempo de trabalho das mulheres. Não há escola em tempo integral, não há creche suficiente e com jornada integral. Veja que há uma série de gaps na provisão sociais – a educação é só um exemplo – que tendem a piorar num cenário de limitação orçamentária dos investimentos. Quem leva os enfermos aos postos de saúde e hospitais? Se o atendimento seguir tão precário, quem vai perder tempo na tentativa de obter cuidados para seus familiares enfermos? As mulheres. Agora, vem essa insensatez do governo Bolsonaro de ameaçar as universidades com cortes sob diversos pretextos, desde o ideológico, de combate ao marxismo, até a ridícula alegação de que o dinheiro pode ser redirecionado para a construção de creches. Isso é falácia, porque quem tem que construir creches não é o governo federal, são os municípios. Mas o ponto não é esse: o ponto é que também não vai haver dinheiro para creches. Aliás, nem quando o país crescia, havia.
Também gostaria de chamar atenção para um aspecto que não é exatamente econômico, mas que diz muito sobre a desgraça desse governo no quesito relações de gênero. A lei anticrime do ministro Sergio Moro coloca de novo na ordem do dia o argumento jurídico de que a intensa emoção – que é um elemento frequente no feminicidio— justifica o excludente de ilicitude. Tivemos a posse de armas facilitada logo no início do governo, e agora o porte também, inclusive para armas de alta letalidade. Já convivemos com altas taxas de feminicídios, num cenário de comércio ilegal de armas, o que esperar dessa combinação de ampliação do mercado legalizado e de retorno à temerária ideia de autorização para matar? É uma situação dramática.
Não podemos esquecer que o próprio presidente da República já se expressou favorável, em outras ocasiões, ao estupro e à tortura, além de não se constranger em depreciar pública e reiteradamente a imagem da mulher. É uma coisa bárbara, um nível de desrespeito e de violência brutal. Vivemos um momento sombrio em que as mulheres estão no centro de uma ofensiva neoliberal conservadora. As mulheres, e tudo aquilo que elas representam como reação, como conquista da individualidade e autonomia, como capacidade de luta fora dos marcos dessa esfera político-partidária completamente corrompida, envelhecida.
Qual é seu prognóstico para o futuro próximo?
O que é tão ou mais grave é que a sociedade está completamente anestesiada, as pessoas não entendem a gravidade do que está em jogo, não entendem que não vai mais haver Previdência pública, que você não tem condições de saber qual será seu benefício daqui a 30 anos se você estiver num fundo de capitalização. Basta lembrar o que aconteceu depois da grande crise financeira de 2008 em muitos países, onde os benefícios previdenciários chegaram a perder 25% de seu valor real, e muita gente deixou de se aposentar já tendo alcançado a idade mínima e seguiu contribuindo para refazer seu pecúlio.
Por outro lado, penso que vai chegar um momento em que parte daqueles que apoiam esse governo, depois de obter algumas de suas pautas, como a reforma da Previdência (do jeito que sair) e a desconstitucionalização dos direitos, se verão em meio ao colapso, que é iminente. Então, vão buscar montar um governo capaz de dar direção ao que manter-se-á desgovernável. Tenho certeza de que isso vai acontecer. Até porque os que hoje cercam Bolsonaro estão interessados em ganhar dinheiro. Querem desmontar o que existe para fazer com que a lógica de mercado e financeira ganhe densidade e elimine obstáculos que freavam sua expansão ainda mais franca.
Mas conseguidos seus objetivos, não haverá por que continuar apoiando um governo medíocre, cuja retórica indigente e preconceituosa envergonha a todas e todos. Um governo em que o presidente não consegue confirmar um jantar em sua homenagem em Nova York. É humilhante. O mundo inteiro observa preocupado o Brasil. A sorte é que lá fora sabe-se que o povo brasileiro não é feito da mesma essência daqueles que hoje o governam.
Imagem: Maurice Weiss/Ostkreuz