Sxpolitics [PTBR]

A política sexual em março de 2019

O ataque em Christchurch

Na cidade de Christchurch, Nova Zelândia, um homem branco australiano agiu sozinho matando a tiros cinquenta pessoas que oravam em duas mesquitas da capital. A primeira-ministra Jacinda Ardern foi elogiada pelo tratamento compassivo, porém firme, ao lidar com a tragédia, em particular porque entre as medidas imediatamente propostas estava a proibição de armas semiautomáticas, entre outras ações (leia mais). O episódio reativou o debate sobre islamofobia e as motivações que levam a massacres perpetrados por homens brancos supremacistas e nacionalistas. Um personagem que aparece frequentemente nessas análises é o homem que atirou em 77 pessoas, a maioria delas crianças, na Noruega em 2011, que foi inclusive citado pelo atirador de Christchurch em seu diário. A tragédia na Noruega foi então analisada por Sonia Corrêa em um pequeno ensaio em inglês, em que discorre sobre o panorama da política sexual global da época, ao qual convidamos a ler (ou reler). Simultaneamente, no entanto, o véu usado pela primeira-ministra Arden em uma das cerimônias fúnebres reviveu, na Nova Zelândia e além, a controvérsia sobre o uso e o significado do véu (oferecemos aqui uma compilação preliminar de discussões em andamento em inglês e português).

A 63ª sessão da CSW na ONU

Desde meados dos anos 2000, quando as forças anti-feministas começaram a participar de suas sessões em números cada vez maiores, a Comissão das Nações Unidas sobre o Estatuto da Mulher tornou-se um campo de batalha. As tensões e impasses se intensificaram nos últimos anos à medida que as tendências de desdemocratização cresceram em todo o mundo. O objetivo da 63ª Sessão foi chegar a um consenso sobre “sistemas de proteção social, acesso a serviços públicos e infra-estrutura sustentável para a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas”, meta que não é facilmente atingível quando políticas de proteção social universal estão sendo ameaçadas por políticas ultra-neoliberais e “gênero” está sob forte ataque em um grande número de países. A CSW 2019 também foi um espaçoprivilegiado para observar como os governos de direita recentemente eleitos na América Latina podem ter mudado sua posição histórica em relação a gênero, direitos e saúde sexual e reprodutiva. Isso foi de fato gritante no caso do Brasil, conforme ilustrado pelos discursos da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e eventos paralelos nos quais funcionários participaram (confira nossa compilação em inglês e português). Apesar dessas adversidades, contra esse pano de fundo conturbado, a CSW 2019 apresentou um documento final robusto (leia em espanhol) reafirmando compromissos de longo prazo em relação a gênero, igualdade, direitos sexuais e reprodutivos e políticas sociais de saúde universais. Conforme observado na declaração emitida pela Caucus dos Direitos da Mulher: “A persistência feminista na Comissão da ONU sobre o Estatuto da Mulher (CSW) estabeleceu novos padrões internacionais sobre direitos humanos das mulheres para sistemas de proteção social, acesso a serviços públicos e infraestrutura sustentável. Esses ganhos foram alcançados apesar do ambiente político cada vez mais polarizado no maior encontro anual da ONU sobre os direitos das mulheres”.

#8M

Como acontece anualmente, o Dia Internacional da Mulher foi intensamente comemorado por feministas e ativistas dos direitos das mulheres em todo o mundo (confira nossa compilação em inglês e português). No Brasil, o Portal Catarinas promoveu uma cobertura feminista coletiva que registrou as marchas ao redor do país – onde a figura de Marielle se repetia – e também do México, da qual o SPW contribuiu.  No entanto, também foram registradas durante o #8M pela primeira vez em uma escala visível eventos anti-feministas na Espanha (em inglês), no Uruguai (em espanhol) e no Brasil.

NO BRASIL

Política anti-gênero

Brasil e EUA: uma aliança global

Os EUA foram o primeiro país visitado por Bolsonaro (JMB) depois de eleito. Conforme extensivamente relatado pela mídia convencional e alternativa, uma aliança com a administração Trump em várias áreas (segurança, comércio, migração e vistos) foi o principal resultado da visita. Essa pauta – sem surpresa – também engloba o “combate à ideologia de gênero”, citado pelo presidente brasileiro em várias ocasiões, em particular durante a visita à Casa Branca, quando na coletiva de imprensa conjunta entre os dois chefes de estado, JMB definiu que os objetivos de sua administração são “O Brasil e os Estados Unidos estão irmanados na garantia da liberdade, no respeito à família tradicional, no temor a Deus, nosso Criador, contra a ideologia de gênero, o politicamente correto e as fake news”. O SPW preparou uma compilação em inglês e português sobre esse evento. 

Questões de gênero e sexualidade, como se sabe, estão no palco da governabilidade nacional em 2019. Associados a uma fórmula  esquemática de “ideologia”, elas servem seja para denunciar a “degeneração e o declínio moral”, seja para adulterar os fatos. O Ministério da Educação esteve no centro dessa turbulência em março, sendo o lócus de muitas tensões entre Olavo de Carvalho, militares e evangélicos, o que acarretou na nomeação e demissão de mais de dez funcionários do alto escalão da pasta. Além disso, medidas administrativa muito problemáticas foram tomadas na área. O então Ministro Vélez instaurou uma comissão para monitorar a “ideologização marxista e de gênero” das questões da prova, medida questionada pela Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos. E, um decreto foi publicado  com vistas a “enxugar o aparato estatal”, que reduziu em 137 mil as posições de universidades federais. Quando esse anúncio estava sendo finalizado, Abraham Weintraub foi nomeado novo Ministro da Educação. Na posse do novo ministro, o presidente declarou: “Queremos uma garotada que não se interesse por política“.

Direito ao aborto

A  Defensoria Pública da União (DPU) realizou uma audiência pública convocando a ANVISA para revisar as restrições draconianas ao acesso ao misoprostol, de modo a garantir seu acesso aos procedimentos de aborto nos casos de estupro, risco à vida das mulheres e anencefalia. A Audiência Pública provocou uma série de reportagens da imprensa, em especial dois artigos publicados na Folha de São Paulo (leia aqui e aqui), mostrando que o Ministério da Saúde não havia comprado o medicamento e outros produtos para cuidados obstétricos em 2019. Isso levou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a solicitar ao Ministério uma explicação. O SPW preparou uma compilação sobre como a audiência repercutiu em notícias e análises. 

NO MUNDO

Trabalho sexual

Há algumas boas notícias sobre os direitos das prostitutas a relatar. Para começar, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa declarou seu apoio à descriminalização do trabalho sexual. Sua posição está alinhada com a recomendação de 2017 que foi emitida pela Comissão de Reforma Jurídica.

Na 63ª Sessão da CSW, as agências internacionais da ONU PNUD e UNFPA organizaram um evento paralelo intitulado “Vamos falar sobre o trabalho sexual: abordando as necessidades de saúde e proteção das profissionais do sexo”. Esta é a primeira vez em muito tempo que representantes de organizações de prostitutas se sentam lado a lado com agências da ONU em um debate público para discutir questões políticas. Durante a 30ª Conferência Mundial da ILGA em Wellington, Nova Zelândia, foi aprovada uma resolução que estabelece a descriminalização do trabalho sexual como uma das principais prioridades do movimento LGBTTI +. 

No entanto, na mesma sessão da CSW, as trabalhadoras do sexo se protestaram por não terem podido participar de um painel sobre direitos sexuais e reprodutivos patrocinado pelos governos sueco e francês, no qual foram feitos comentários incorretos sobre a proteção de profissionais do sexo. E, na Espanha, um site amplamente utilizado por profissionais do sexo foi derrubado, uma nova medida tomada sob a política contra o trabalho sexual implementada pelo governo socialista de Pedro Sánchez.

Políticas anti-gênero

Europa

O evento mais relevante a ser relatado é o 13º Congresso Mundial de Famílias (WCF) realizado em Verona, de 29 a 31 de março, sob o tema “O vento da mudança: a Europa e o movimento global profamília”, que contou com a presença de numerosas autoridades públicas e o apoio do ministro do interior, Matteo Salvini. Como observado no comunicado divulgado pela GIFTS, uma rede recém-criada de acadêmicos e ativistas de gênero, o evento deve ser visto como um trampolim para novas iniciativas contra gênero na Itália e na Europa. O SPW está planejando uma avaliação mais completa do encontro. Por enquanto, queremos ressaltar que ele foi respondida por muitas vozes críticas (em inglês), protestos multitudinários e uma ampla cobertura pela mídia (veja compilação em inglês e português). 

América Latina

No Brasil, o Grupo de Estudos e Pesquisas Subjetividades e Instituições em Dobras (UERJ) em parceria com o LEGS – Laboratoire d’Études de Genre et Sexualité/Paris 8 realizaram a terceira edição do evento Gênero Ameaça(n)do, que tem por objetivo fortalecer uma rede pelos direitos sexuais e reprodutivos entre atores da América Latina e Europa.

No Paraguai, o Ministério da Educação emitiu uma resolução proibindo professores de escolas públicas e privadas de usar o Guia Integral de Educação Sexual por sua visão “libertária” sobre temas relacionados a gênero e sexualidade.

No Uruguai, o pré-candidato à presidência Carlos Iafigliola apresentou uma petição assinada por 70 mil pessoas ao Tribunal Eleitoral que pedia pela realização de um referendo para decidir sobre a derrogação da Lei Integral de Pessoas Trans, aprovada em 2018.

Na Argentina, estudantes do ensino médio organizaram e publicaram de maneira autônoma um guia online sobre educação sexual, a fim de desviar dos ataques contra a disciplina, impulsionados por grupos religiosos anti-gênero, que realizam batidas para monitorar as escolas de todo o país (leia em espanhol). Por outro lado, as forças conservadoras organizaram uma grande “Marcha pela vida” na cidade de Tucumán no dia 23 sob o tema “O filho ainda a nascer”, exigindo o fim das políticas de gênero e da “ideologia de gênero”, bem como um abaixo-assinado para apelar ao Congresso pela revogação de várias leis que contribuem para promover a equidade de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos.

EUA

Em março, houve sinais de que Trump vai assinar uma ordem executiva que viola a liberdade acadêmica para “proteger os estudantes e valores americanos que estão sendo atacados” em universidades por conta de discurso de ódio, sob pena de corte de financiamento federal.

Direito ao aborto

América Latina

Em fevereiro, na Argentina, após a pressão das vozes feministas e de outros atores pró-escolha, um acordo entre o Ministério da Saúde e do Desenvolvimento Social e uma ONG evangélica para criar uma linha 0800 para aconselhar adolescentes grávidas a não abortar foi suspenso.

Estados Unidos

O projeto de lei 481 na Câmara Estadual da Geórgia, proposta pelo Partido Republicano, que restringe o acesso ao aborto até seis semanas de gravidez está avançando rapidamente. A disposição insere sorrateiramente uma linguagem que redefine o status do embrião como “pessoa natural” e foi responsável por borrar as linhas entre democratas e republicanos. 

No Alabama, como relatado pelo Folha de São Paulo, um homem está processando uma clínica feminista por ter fornecido pílulas abortivas para sua namorada, que voluntariamente decidiu interromper uma gravidez contra sua vontade. O processo está sendo realizado em nome dado ao embrião, concedendo-lhe estatuto de pessoa (leia mais em inglês).

Global

Um estudo realizado pela Universidade Rutgers e publicado em novembro de 2018 que examina os impactos negativos da Regra da Mordaça de Trump na África e também na América Latina revela que, na última região, o número de abortos inseguros triplicou desde 2017. Leia o artigo de Débora Diniz e Giselle Carino sobre o tema no El País.

Direitos LGBTTI

Nos Estados Unidos, uma carta conjunta foi emitida pela ACLU, pelo Santa Fe Dreamers Project e pelo Centro de Defesa de Imigrantes de Las Américas para denunciar a violência contra onze pessoas trans e gays detidos em uma instalação do Novo México para Imigração e Alfândega (ICE).

O Sultanato de Brunei propôs uma reforma do seu Código Penal que visa reincorporar interpretações dogmáticas da lei sharia em vários domínios, incluindo a pena de morte por apedrejamento por atos de estupro, adultério e relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Michelle Bachelet, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, emitiu uma nota de advertência às autoridades de Brunei.

Políticas do Vaticano

Há muita coisa acontecendo no Vaticano. Além dos debates e medidas sobre abuso sexual que permanecem na agenda, desde janeiro vimos, por um lado, sinais de que o papa fará uma declaração contra a criminalização de relações entre pessoas do mesmo sexo e, por outro lado, mais uma vez ataques frontais ao feminismo. Durante a conferência convocada pelo Vaticano para discutir os crimes sexuais da igreja, Bergoglio declarou que “todo feminismo acaba sendo machismo de saia”. Mesmo quando Francisco tentou desfazer a afirmação em uma entrevista na Espanha, a sentença se tornou viral. Em seguida, a equipe que dirigia o suplemento feminino do L’Osservatore Romano renunciou, denunciando o aumento de uma cultura patriarcal que cultiva a figura da “mulher obediente”, o clericalismo e a censura.

Sexualidade & Arte

Para a edição de março da seção Arte & Sexualidade, o SPW compartilha os trabalhos das artistas Mickalene Thomas e Helena Almeida, cujo foco é centrado no corpo, performance e suas especificidades.

Recomendamos

Livros

Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade, por Heloísa Buarque de Hollanda – Editora Boitempo

Breve história crítica do feminismo no Brasil, por Carla Rodrigues – Caderno Ultramares

Artigos

Política anti-gênero

Populistas da Polônia escolhem os gays como seus piores inimigos – Folha de São Paulo

Eliane Brum: Quem mandou matar Marielle? E por quê? – El País

Contardo Calligaris: A sanha missionária – Folha de São Paulo

O Escola sem Partido nega a vocação da educação para a transformação da realidade – Portal Catarinas

Central no discurso de posse, combate à “ideologia de gênero” é carta marcada há pelo menos oito anos por Bolsonaro – Gênero & Número

Direitos das mulheres

Nossa humanidade está ameaçada por quem deveria protegê-la – Portal Catarinas

Quando o imperialismo mira as mulheres – El País

A história da filosofia e as obras escritas por mulheres: uma nota metodológica – Revista Cult

Violência sexual: o capítulo esquecido da ditadura militar – Vice

Identidades

O fogo amigo contra Tabata Amaral revela que a esquerda está perdida – The Intercept

Lula e Marielle, símbolos de duas esquerdas separadas nas ruas – El País

Tatiana Roque: “O problema da esquerda não é a pauta dita identitária, mas sim a lacração” – El País

Publicações

Revista Latinoamericana Sexualidade, Saúde e Sociedade Nº 30 – CLAM/IMS

Multimídia

Fotos enfeitiçantes do trabalho das bruxas da Romênia – Vice

Não perca!

Oportunidades na área de gênero – Pagu

São Paulo

Evento “Como fortalecer as democracias em tempos de crise” da Plataforma Pela Democracia no dia 15 de abril às 19h, na Praça das Artes – Espaço de Convivência | Av. São João, 281 – Centro, São Paulo (SP). Inscreva-se aqui.

Florianópolis

Lançamento do livro “Diálogos e dissidências: Michel Foucault e Jacques Rancière”, no dia 16 de abril, às 16:30h, na UFSC.

Brasília

Lançamento do Observatório do Conhecimento, no dia 16 de abril, às 18:30h na Câmara dos Deputados.

Rio de Janeiro

Lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, no dia 1 de maio, às 13:30h na Fiocruz.

I Simpósio de Saúde Integral da Mulher, no dia 27 de abril, às 8h, no Hospital Pedro Ernesto/UERJ.

“Gênero, raça e classe: diálogo sobre o corpo negro e as violências políticas”, no dia 12 de abril, às 18h, na Rua Evaristo da Veiga, 55

Peça “O Segundo Armário: diário de um jovem soropositivo”, todas as sextas-feiras de abril, às 19h, no Memorial Getúlio Vargas.

Lançamento do pôster “Direitos sexuais são direitos humanos“, no dia 16 de abril, às 18h, na ABIA.

Projeto de pesquisa “Hospedando Lélia Gonzalez”, começa no dia 17 de abril, às 19h, no Parque Lage.

 

Acesse o site do SPW.

 

 

 



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo