Em novembro de 2015, no rastro das “ocupações feministas”, publicamos pela primeira vez os trabalhos da pintora negra Rosana Paulino, cujos temas centrais são o corpo feminino, a negritude e o racismo, as memórias ancestrais e marcas da escravidão.
Voltamos a publicá-lo no aniversário dos 130 anos da abolição da escravidão em 2018 e, no final deste ano, retomamos à Paulino, que nos evoca os lugares sociais histórico ocupados pelo negro e, principalmente, pela mulher negra no Brasil. Frente ao cenário político global que promete condições nefastas a todos, os marcadores de diferença de raça/cor e gênero promovidos por Paulina nos evoca a justiça social e a interseccionalidade.
Desta forma, Rosana nos faz enfrentar o lugar de extrema vulnerabilidade e precariedade que mulheres negras enfrentam para exercerem a sua autonomia corporal, como o caso da brasileira Ingriane Barbosa que marcou 2018, morta por um talo de mamona. Segundo dados do Ministério da Saúde revelados para a audiência pública sobre a ADPF 442 no STF, são realizados 800 mil a 1 milhão de abortos por ano, na população de mulheres de 10 a 49 anos.Destes, mais de 200 mil mulheres foram hospitalizadas, em 2017, por complicações do aborto e os casos graves foram de mais de 5 mil. Ocorreram 2 mortes por aborto a cada dois dias em 2016, afetando principalmente mulheres jovens, negras e com baixa escolaridade. Enquanto entre mulheres brancas a taxa de aborto inseguro que levam a óbito é de 3 a cada 100 mil, entre as negras esse número sobe para 5. Para as que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5, quase o dobro da média geral de 4,5, segundo dados de 2016.
Apesar desse quadro político, neste ano de 2018 que passou, o direito ao aborto tomou palco central na política ao redor do mundo devido à incansável luta feminista — no referendo irlandês que retirou o “direito à vida desde a concepção” da Constituição; e nos debates do Congresso e Senado argentino por uma lei ampla de acesso ao aborto livre, seguro e gratuito; e durante as audiências públicas na Suprema Corte brasileira que discutiram a ADPF 442.
Num país onde a maioria da população não se declara branca, com a história que temos, a luta pelo direito ao aborto e pela justiça racial é uma bandeira de todos. Mesmo assim, artistas negras ainda são invizibilizadas. Em entrevista à Folha de São Paulo, Paulino revela sobre o seu desconhecimento em relação à artista cubana Belkis Ayón até dez anos atrás, quando suas obras ocuparam a mesma exposição na Holanda. Belkis fez parte de um grupo de artistas cubanos que desafiou os paradigmas da arte cubana em 1980, quando confrontaram o país com as suas raízes de matriz africana. De forma similar, um movimento artístico brasileiro mais recente também traz ao debate artístico esse tema para as dimensões da violência policial, de gênero e o racismo.
Em tempos de extensa re-cristianização da cultura e de restauração conservadora, a arte de Belkis recupera as cosmologias politeístas africanas: uma tradição das sociedades secretas Ekpe e Ngbe do sul da Nigéria e Camarões, que foram trazidas para Cuba através escravidão e lá foram preservados de forma singular pela sociedade secreta de ajuda mútua Abakuá, ou Ecorie Enyene Abakuá. Belkis fez da sua arte o resgate dessas culturas de maneira transgressora. Ela revira ao avesso da história de um culto secreto masculino para reconstruir a trajetória de Sikan, ícone feminino cuja liberdade é censurada no mito de Abakuá – descrevendo as ambiguidades e opressões da sociedade patriarcal e que nos remete ao contexto político e aos motes de Paulino igualmente (leia mais sobre a artista).
Imagens: Parede da memória, de 1994/2015, Bastidores, de 1997, Assentamentos, de 2012, ¿História natural?, de 2016, Nlloro, de 1991; e Mokongo, de 1991.
Saiba mais sobre Rosana Paulino visitando sua página web ou o site afreaka